A soma de todos os Ryans: o personagem de Tom Clancy na Guerra Fria 2.0

A paisagem bucólica compõe o cenário onde duas crianças se divertem. Logo, o que transcorria como um dia agradável numa residência do Líbano é interrompido por um bombardeio, explosões, gritos e mortes. Da tragédia sobrevivem dois irmãos cujas cicatrizes deixarão marcas muito mais profundas que as queimaduras superficiais. A legenda informa que o episódio ocorreu em Beeka, Líbano. Ano de 1983. Ainda estávamos na Guerra Fria, o mundo se encontrava polarizado em dois sistemas antagônicos. O Oriente Médio já registrava diversos episódios de conflito, atentados e guerras.

O Líbano foi palco de uma guerra civil iniciada em 1975. Em 1982, Israel inicia uma ofensiva militar para expulsar militantes palestinos do Líbano. Em 1983, ano do contexto apresentado na cena, atentados contra embaixadas dos EUA inserem um novo panorama. Neste ano, também surge o Hezbollah, que se constituirá um ator importante nesta região. Do Líbano o cenário mudo para os EUA e vemos Jack Ryan (interpretado por John Krasinski) remando nas águas tranquilas da capital. O personagem trabalha como analista no setor de terrorismo financeiro da CIA, entretanto, sua primeira aparição no meio audiovisual ocorreu no crepúsculo da Guerra Fria quando esta ameaça não era a maior preocupação da agência de espionagem mais famosa do mundo.

Carlton Cuse (D) e John Krasinski (E).

Que reflexões podemos realizar deste novo “Jack Ryan”, imerso na Guerra Fria 2.0? A trajetória literária de Ryan, personagem de Tom Clancy, é mais vasta que no meio audiovisual. São dezesseis livros lançados entre 1989 e 2013. Neste período foram lançados cinco filmes: “Caçada ao outubro vermelho” (The Hunt for Red October, 1990); “Jogos Patrióticos” (Patriot Games, 1992); “Perigo real e imediato” (Clear and Present Danger, 1994); “A soma de todos os medos” (The Sum of All Fears, 2002); e “Operação sombra: Jack Ryan” (Jack Ryan: Shadow Recruit, 2014). Somente a última película não foi realizada com base em uma adaptação literária. O primeiro filme ainda retrata as disputas sistêmicas da Guerra Fria e do imaginário de uma tragédia nuclear. O comandante de um submarino soviético (Sean Connery) decide desertar, mas a desconfiança dos EUA pode ocasionar um conflito mundial.

O segundo filme, realizado após a dissolução da URSS, desloca a ação para uma ameaça a família do agente (Harrison Ford) após ele ter evitado um atentando em Londres durante suas férias, O terceiro filme apresenta o combate às drogas na Colômbia como mote da ação. A quarta e a quinta obra retomam o envolvimento da Rússia como protagonista de ameaças do cenário internacional, articuladas com outros grupos interessados em atacar o território dos EUA. É da película de 2014 que parte a ação dos oito episódios da série Jack Ryan, lançada em 2018 pela Amazon.

Este slideshow necessita de JavaScript.

Ryan trabalha no setor da CIA que investiga transações financeiras que podem financiar o Terrorismo. Sua área de cobertura é o Iêmen. Ao analisar transações, envolvendo grandes somas com moedas eletrônicas, ele acredita que um grande ataque terrorista contra os EUA está sendo planejado. E mais: seu autor pode ser um novo Osama Bin Laden. Seu superior (Wendell Pierce), recentemente transferido e rebaixado de posto, desconfia das descobertas de Ryan e pede mais evidências. Ryan, contudo, age pelas costas de seu chefe e consegue bloquear as contas e autorizar uma diligência investigando suspeitos no Iêmen, o que resulta na prisão de um saudita e de um libanês. Deslocado para acompanhar o interrogatório in loco, Ryan se vê no meio de um ataque a base secreta da CIA.

A caçada ao fugitivo Mousa Bin Suleiman (Ali Suliman) será o mote dos episódios da série. Diversos fios são abertos pela narrativa com assuntos que merecem uma análise mais atenta, A série reflete o deslocamento da ameaça terrorista da Al Qaeda pós-Afeganistão para o ISIS (Ou ISIL, Slamic State on Iraq and Levant). A base de atuação de Mousa é a Síria, mas o personagem circula pelo Iêmen e Europa. Mousa prega a união de todos pela construção de um novo Império. É acusado por um aliado de misturar Xiitas, Sunitas e Salafitas entre seus combatentes. “Vamos lutar ao lado de apóstatas? Não vou permitir” afirma o personagem. Neste ponto, entender a formação do ISIS ajuda a compreensão dos acontecimentos mencionados na série.

O ator Ali Suliman interpreta Mousa Bin Suleiman

O grupo surgido após a Guerra ao Terror, iniciada com a invasão do Afeganistão, é abordado pelas lentes das mídias ocidentais como irracional e bárbaro. Este ator pode se desenvolver graças a uma complexa rede de conexões e as diversas medidas (políticas, militares e econômicas) adotadas pelo Ocidente. Seu auge ocorreu após a batalha de Mosul, em 2014, aonde o grupo chegou a controlar um vasto território com mais de oito milhões de pessoas. Sua ascensão apresentou ao mundo um novo ator não estatal constituindo uma nova unidade política.

As fraquezas das estruturas estatais nos moldes ocidentais ficaram expostas. A dissolução das oposições seculares e de cunho socialista constituiu um fator de vital importância, somado ao empreendimento de políticas neoliberais que desestabilizaram a região e coadunou o poder econômico para um número reduzido de famílias e clãs. O personagem preso com Mousa no Iêmen era saudita. Ironicamente os estadunidenses perguntam “o que um saudita faz no Iêmen?”.

A Arábia Saudita teve um papel fundamental para a expansão do ISIS na região. Principal difusor do Wahabismo, uma versão mais fundamentalista do islã surgida no século XVIII e que considera Xiitas e Sufistas como não muçulmanos, a monarquia árabe fomentava a perseguição e o combate a grupos xiitas em outros países do Oriente Médio. Como sintetiza Patrick Cockburn: “O ISIS é filho da guerra. Seus membros buscam redesenhar o mundo a partir de si mesmos, por atos de violência. Sua combinação tóxica, porém eficaz, de crenças religiosas extremas com capacidade militar é produto da guerra no Iraque desde a invasão norte-americana em 2003 e da guerra da Síria, desde 2011”.

Cenas de Jack Ryan de Tom Clancy.

Na produção televisiva o papel dos EUA neste processo é ocultado. Outro fator que a série não esquece é a presença europeia neste espaço geopolítico. O imperialismo europeu foi atuante no Oriente Médio desde o final do século XIX. O território sírio ficou sob influência francesa que dividiu o território e gerou muitas revoltas. O país constitui-se numa sociedade multiétnica e multiconfessional o que se afasta do estereótipo islâmico projetado pela mídia. A presença russa na região está constituindo-se num fator fundamental para os desdobramentos do conflito, contudo a série não toca na influência russa em nenhum momento. Na atualidade, inúmeros jovens europeus migram para se juntar ao ISIS e, os refugiados dos conflitos têm, em sua maioria, a Europa como destino.

A série retrata o drama e o sofrimento destas pessoas, contudo eleva o peso dos traficantes e aliciadores. Confrontados com a atuação dos agentes da CIA, estes se tornam os “vilões” diante dos “mocinhos” estrangeiros num ambiente onde tem pouco poder de interferência. Um dos personagens ensaia uma aula de relativização sociológica ao afirmar que se tivesse nascido numa boa cidade poderia estar do outro lado. “Geografia é destino. O mundo é a forma, nós somos o barro” afirma. Isto reforça a construção do protagonista como o bom moço que enfrenta os inimigos externos e o próprio sistema. Seu chefe logo não tardará a lembra-lo que o trabalho deles não funciona sem concessões. A responsabilidade europeia também é recordada num diálogo com policiais franceses. Eles lembram que na Europa um estrangeiro não é considerado europeu ao contrário do que (supostamente) ocorre na América. As elipses da narrativa conectam essas falas com a trajetória de Mousa na Europa.

Cena de Jack Ryan de Tom Clancy.

Em diversas cenas ele e seu irmão sofrem com o preconceito e a falta de integração. Mesmo com qualificação Mousa não consegue emprego, é alvo da desconfiança da polícia nas ruas. Sua prisão numa dessas abordagens será um fator decisivo para sua radicalização e mudança de postura diante do ocidente. Esta anteposição ocidente e oriente também é reforçado na abordagem dos personagens femininos. Cathy (Abbie Cornish), a namorada de Ryan, é uma mulher independente e focada na sua carreira na área médica. Hanin (Dina Shihabi), esposa de Mousa, vive sob a guarda do marido. É na cena em que Mousa conta para os filhos como conheceu sua mãe que esta visão fica mais destacada. Ele ressalta que ela era menor de idade e valoriza sua postura ao recusar a oportunidade de “comprar” Hanin de seu pai.

O recorte de gênero fica claro pela reação de angústia e tensão da filha adolescente contraposta a admiração do jovem Samir. Outro ponto que a série aborda é a atuação dos Drones como armas de ataque na região. A base de comando com os pilotos está localizada em Nevada, nos EUA. Numa sala escura preenchida com monitores e joysticks os pilotos espionam e recebem autorizações para executar pessoas ao redor do mundo. A placa no teto da sala “One shot, one kill” atesta a eficiência e a “limpeza” do processo. Contudo, a morte de uma pessoa indicada como alvo equivocado pelo serviço de inteligência leva o piloto a uma crise de consciência.

Ele viaja até a Turquia e toma um táxi até a cidade síria onde matou um inocente! Num diálogo ausente de reciprocidade ele tenta entregar uma quantia de dinheiro ao pai do inocente assassinado. Neste ponto a narrativa da série deixa uma ponta solta descartando o personagem. O trauma do piloto da série é um fato corrente com operadores de drones na atualidade. O uso destas aeronaves não tripuladas iniciou na guerra dos Balcãs. Missões de espionagem tiveram início depois de 2000 e logo os aviões passaram a voar armados e executar missões de ataques no mundo. Após o 11 de setembro alterou-se a forma de conduzir guerras ao redor do mundo pelos EUA.

A Casa Branca ganhou mais poder, inclusive se retirando do Estatuto de Roma (que reconhecia a legitimidade de um tribunal internacional de justiça) para não ser julgada por seus atos no mundo. Paulatinamente, o executivo foi ganhando poderes para realizar guerras ocultas no globo sem fiscalização. O JSOC (Joint Special Operations Command) surgiu após a fracassada ação no Irã em 1979. Reunia os melhores homens das forças Delta e Seals. Realiza operações sob sigilo absoluto diretamente subordinado ao presidente. Suas ações são marcadas pelos três As: achar, atacar e acabar. Ganhou um braço de inteligência e passou a atuar dentro do país.

Cena de Jack Ryan de Tom Clancy.

Assim, a CIA, que atuava dentro dos moldes da espionagem tradicional, transforma-se numa máquina assassina operando caçadas humanas após a Guerra ao Terror. Suas missões secretas respondem diretamente ao presidente e se organizam de modo mais dinâmico do que aquelas realizadas pelas forças armadas. Agora os agentes se tornaram soldados e estes também se tornam agentes. Sai de cena o porrete do imperialismo clássico e entra o bisturi dos tempos modernos, entretanto estas cirurgias não ocorrem sem sangue. Além das mortes, criam tensões, inimigos e a insatisfação na esfera dos aliados. Desse modo, o bom mocismo do perfeito escoteiro Ryan serve para relativizar e humanizar a atuação imperialista.

Este slideshow necessita de JavaScript.

Em nenhum momento a atuação, a vigilância, a quebra de leis em outros países é questionada. A naturalização do poder imperialista está na essência do que pode ser narrado. A série constitui uma ótima representação do mote “o mundo é campo de batalha” desta nova fase imperialista. Após a eliminação do inimigo seu chefe é transferido para Moscou e deixa uma passagem de presente para Ryan. Indício do retorno do velho inimigo que estava encoberto durante a Guerra ao Terror? No final da narrativa literária Ryan acaba se tornando presidente. Nada mais oposto e irônico do que o temos na atualidade.

Título: Jack Ryan de Tom Clancy
País: EUA
Criadores: Carlton Cuse, Graham Roland
Episódios: 16

Livros consultados para este artigo:

COCKBURN, Patrick. A origem do Estado Islâmico. São Paulo: Autonomia literária, 2015. ESCOBAR, Pepe. Império do Caos. Rio de Janeiro: Revan, 2016.

JOHNSON, Chalmers. As aflições do império. Rio de Janeiro: Record, 2017.

MANN, Michael. O império da incoerência: a natureza do poder americano. Rio de Janeiro: Record, 2006.

MAZZETTI, Mark. Guerra Secreta: a CIA, um exército invisível e o combate nas sombras. Rio de Janeiro: Record, 2016.

SCAHILL, Jeremy. Guerras sujas: O mundo é um campo de batalha. São Paulo: Companhia das Letras: 2014.

Deixe seu comentário

por Anders Noren

Acima ↑

Descubra mais sobre Revista Intertelas

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading