A guerra como evento trágico em “Dunkirk”

Na Guerra, todos são igualmente alvos incógnitos e descartáveis. Crédito: IMDb.

Passados 72 anos do final da Segunda Guerra Mundial, o conflito ainda faz a cabeça de cineastas e do público. Só no passado recente nos lembramos de filmes como “Stalingrado” (Rússia – 2013), “Terra de Minas” (Dinamarca – 2015), “O Filho do Saul” (Hungria – 2016) e “Até o último Homem” (EUA – 2016). Dado que o presente é marcado pelo cinismo, pela dubiedade dos líderes, pelos sucessivos fracassos políticos em todos os espectros ideológicos, a Segunda Grande Guerra aparece, ainda, como o conflito moral que ocupa o imaginário do mundo, em especial no Ocidente. E, exatamente, no meio do impasse político e econômico representado pelo Brexit, o cineasta  Christopher Nolan lança seu épico sobre o conflito, “Dunkirk” (2017), atraindo contra si um certo tipo de crítica que, ao politizar seu filme, rotula-o como obra conservadora e anti-europeia.

O Evento histórico de Dunquerque foi fundamental para a continuação da Inglaterra na resistência ao nazismo. Ao mesmo tempo, significou uma derrota militar vergonhosa, expondo as fragilidades militares britânicas e consolidando a imagem de invulnerabilidade das forças armadas nazistas, até que estas fossem derrotadas nas batalhas de El-Alemein, em 1942, e principalmente, em Stalingrado, no ano de 1943. O filme relata bem a relação dos ingleses com o mar, refúgio e fortaleza para a ilha que sempre temeu a Europa.

Crédito: IMDb.

E Nolan traz sua maquinaria técnica para filmar o evento histórico, a não-batalha de Dunquerque, cidade do litoral belga e refúgio para aproximadamente 400 mil soldados (entre britânicos e franceses), nos primeiros meses de 1940, durante a esmagadora Blitzkrieg alemã. Sua decisão de filmar uma derrota revela a conhecida predileção do diretor pela desesperança, presentes em vários dos seus filmes. Dramaticamente falando, é sempre instigante filmar o derrotado e sua altivez moral, até a sua conseguinte redenção, caminho escolhido pelo roteiro (de Nolan) para o fim do filme.

Portanto, o tema de “Dunkirk” não significa um contraponto na carreira do seu diretor, mas sim uma evolução temática, prova inconteste do seu poder e influência na indústria, onde os propósitos definidos por ele para a sua nova obra são bastante ambiciosos.  Desde a narrativa entrecortada, que estabelece a confusão da “Névoa da Guerra” como talvez nenhum outro filme até agora, até o superlativo trabalho de direção, tudo enche os olhos (e os sentidos) no novo filme de Nolan.

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Muito se escreveu sobre a ausência de um eixo narrativo clássico para o filme, personagens bem construídos que pudéssemos investir emocionalmente na sua jornada, culpando o roteiro por essas falhas. Mas, mesmo reconhecendo que a direção de Nolan sempre foi mais acabada que o seu texto, entendo que aqui o roteiro serve bem às intenções do diretor, de criar uma imersão psicológica na guerra, nos fazendo sentir o horror de um ataque aéreo ou a angústia de estar preso no porão de um navio que afunda.

Uma guerra é o ato insano de matar jovens. Eles morrem desavisadamente, vítimas da própria inexperiência no ofício de matar. Acabam morrendo e, com isso, servem de exemplo para os que vivem. Morrem como moscas antes que saibamos seus nomes. No clássico de Samuel Fuller, “Agonia e Glória” (The Big Red One – 1980), um soldado explica porque um recruta é ignorado, maltratado mesmo, quando chega numa unidade militar qualquer durante a guerra: “para que não nos afeiçoemos a ele”. O filme de Nolan abre com essa lógica radical, quando um estampido surdo irrompe a cena (assistam em Imagem Maximum – IMAX-, apenas assistam). Um a um os jovens recrutas vão caindo. Não enxergamos os algozes, só corremos com aqueles garotos.

Robert Carradine em “Agonia e Glória” (1980). Crédito: IMDb.

Numa certa sequência, os soldados estacionados na praia (em estranha ordem, quase alienados, esperando um resgate distante, longe do caos mostrado no brilhante travelling de “Atonement” – 2007, de Joe Wright) são atacados pelos temidos Stukas da Força aérea alemã. E assistimos uma sequência de pavor. O extraordinário desenho de som dá ares fantasmagóricos para os aviões e seus silvos de morte. Para onde correr?

“Atonement” (Desejo e Reparação), de 2007, dirigido por Joe Wright. Crédito: IMDb.

A mis-en-scène é meticulosamente construída e a experiência é das coisas mais aterradoras de que me lembro. A precisão histórica do filme, sempre observando o pavor psicológico de um ataque aéreo realizado por um bombardeiro de mergulho, é brilhantemente encenado. Lembremos que a Blitzkrieg era a inovação tática da Alemanha nazista, onde a cominação do emprego de muitas armas engajadas num mesmo teatro operacional provocava pânico e desolação. O ataque aéreo era a assinatura mais perversa dessa nova forma de guerra. Os Stukas representaram esse pavor, e “devemos” a ele os massacres de Guernica, Varsóvia e Amsterdã.

A câmera vai seguindo Tommy (era assim que os soldados ingleses eram chamados, desde as guerras napoleônicas), interpretado por um inexpressivo Fionn Whitehead. Sua inexpressividade e o seu faro para a sobrevivência (e para a tragédia) ocupam a maior parte da projeção. A direção escolhe o aturdimento de sons e sensações às vísceras expostas de Steven Spielberg e Mel Gibson. A fria naturalidade da cena torna tudo mais cortante, porque a banalidade de morrer naquelas circunstâncias é a violência maior de uma guerra. Após o ataque, a soldadesca levanta, organiza-se em suas estranhas filas, e espera…até o próximo ataque.

Fionn Whitehead em Dunkirk (2017). Crédito: IMDb.

E aqui, mesmo estruturado em propósitos e estilos distintos, não é errado afirmar que não existiria “Dunkirk” sem “Saving Private Ryan” (O Resgate do Soladado Ryan), de 1998. A imersão psicológica exposta no desenho de som e nos sussurros da enigmática trilha sonora de Hans Zimmer, que nos assombra em todo o primeiro filme, foi sim influenciado peta catarse de violência do segundo (em especial na assustadora sequência do Dia D). Da mesma forma, a fotografia dessaturada de Janusz Kaminski (que influenciou toda a linguagem fílmica do gênero) encontra ressonância na proposta visual que Hoyte Van Hoytema concebe para o filme de Nolan.

“Saving Private Ryan” (Resgate do Soldado Ryan), de 1998, dirigido por Steven Spielberg. Crédito: IMDb.

Os saltos e voltas provocadas pela estrutura do roteiro causa, talvez intencionalmente, a sensação da desorientação provocada pela guerra, aquilo que o general e teórico militar da guerra, nascido na Prússia, Carl Von Clausewitz chamou de “Névoa da Guerra”, expondo a mortal confusão do teatro militar. Entendendo essa lógica fica mais palatável a estrutura do filme, que é dividido em três histórias distintas, na Terra, no Ar e no Mar (talvez aqui o diretor tenha sido influenciado pelo famoso discurso de Winston Churchill, feito logo depois de Dunquerque, onde o líder britânico estabelece as regras simples da guerra dali por diante: eles resistiriam em todos os lugares, sempre…e nunca se renderiam), onde acabam encontrando-se e interseccionando num determinado momento do filme.

Se o filme acompanha os soldados como pobres diabos desafortunados, escapando de ataques aéreos e naufrágios, confere aos pilotos o protagonismo das cenas mais conscientes do filme. Mesmo diante do caos e da confusão (ressaltadas pela edição que estrutura a narrativa em três eixos distintos), suas ações são governadas pela responsabilidade e senso de entrega. Novamente recorro a Churchill, onde, num discurso, disse sobre os pilotos da Royal Air Force (RAF)“Nunca tantos deveram tanto a tão poucos”. Pois é isso.

Após Dunquerque, a Luftwaffe (força área alemã) partiu sedenta para destruir a capacidade industrial e militar dos ingleses. Durante longos meses, a “Batalha da Inglaterra” foi travada nos frios espaços aéreos das cidades britânicas (majoritariamente Inglesas), entre jovens pilotos de ambos os lados. E ai, graças a obstinação da RAF, o país não caiu, assim como todo o ocidente. Nolan presta incontida homenagem aos homens da RAF, fotografando o Sptifire de Farrier (Tom Hardy, econômico até mesmo em função do papel que interpretava), em especial na sequência final, onde o piloto conduz heroicamente o avião vazio de combustível até o pouso na praia de Dunquerque. É o momento do gozo emocional, onde a trilha dissonante e onipresente de Hans Zimmer liberta-se das suas funções narrativas (chega a antecipar, com seu ruído, os ataques aéreos dos aviões alemães), ensaiando um motivo melódico; a fotografia de Hoytema torna-se mais quente do que qualquer outro momento do filme.

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Por fim, toda a mis-en-scène trata a guerra como um evento trágico, quase como um efeito de perversidade da natureza. Não se menciona a palavra “Nazista” nem mesmo uma única vez. Não se enxergam alemães, mas somente as máquinas controladas por eles. Mesmo no final do filme, alguns poucos soldados num quadro desfocado são vistos. O filme não quer o apoio da simbologia maléfica do nazismo, o que não deixa de ser uma opção bastante interessante, que dá coerência narrativa e propósitos à obra.

Essa ausência do discurso político deixa o filme de Nolan potencialmente acrítico, naquilo que nos acostumamos entender como mensagem antibelicista. No entanto, ao mostrar a guerra como uma sucessão de angústias e pavores psíquicos, onde a morte é uma consequência naturalizada e aceita, o diretor consegue imprimir, com a sua obra, uma experiência imersiva única, e por vezes apavorante, da guerra como tragédia humana, mesmo que, para isso, abra mão conscientemente da emoção e de personagens mais próximos do espectador para nos fazer entender que, numa guerra, só podemos protagonizar nossos medos e instintos de sobrevivência.

Fonte: texto originalmente publicado no site do O Beco do Cinema
Link direto: https://obecodocinema.wordpress.com/2017/08/01/a-guerra-como-evento-tragico-em-dunkirk/

Título: Dunkirk
País: EUA, Reino Unido, França, Países Baixos
Direção: Christopher Nolan
Roteiristas: Christopher Nolan
Elenco:  Fionn Whitehead, Barry Keoghan, Mark Rylance e outros.
Duração: 1h46min
Lançamento: 21 de julho de 2017
Idioma: inglês, alemão e francês 
Legendas: português

Um comentário em “A guerra como evento trágico em “Dunkirk”

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  1. Ótimo texto. O filme é inteligente desde a primeira cena. Uns 5 ou 6 soldados caminham entre ruas vazias a procura de comida ou para matar a angústia de ficarem enfilerados na praia. De depende um ataque inesperado, tiros, homens caindo. Apenas um soldado escapa, quase é morto por seus próprios compatriotas. A câmera se move junto com o solado por uma rua, fitando a sua cara de terror, e quando o mesmo chega a praia, há um mar de homens enfilerados a espera do resgate. Estão ali apenas esperando.
    As batalhas aéreas são muito boas, a troca constante entre a primeira e a terceira pessoa coloca o telespectador pilotando junto na cena. E o constante estresse de ter caças alemães chegando contantemente dão o tom dos embates. Um pequeno spoiler, acredito que o evento histórico mais relevante foi o fato de mais de 300.000 homens serem resgatados por “marujos de fim de senama”.

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por Anders Noren

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