SHIGENOBU e MEINHOF: a luta armada socialista-comunista e suas lições para a divagante esquerda contemporânea

Ulrike Meinhof (E) e Fusako Shigenobu (D). Crédito: Die Welt/ Japan Times.

“Eu e alguns colegas chegamos à conclusão de que a violência neste país era inevitável. Seria errado e irrealista para os líderes africanos continuarem a pregar a paz e a não-violência numa altura em que o governo atendeu às nossas exigências pacíficas com força. Foi somente quando tudo mais falhou, quando todos os canais de protesto pacífico nos foram barrados, que a decisão foi tomada para embarcar em formas violentas de luta política” – declarou Nelson Mandela durante a abertura de sua defesa no julgamento de Rivonia, em 20 de abril de 1964.

A realidade muitas vezes pode ser difícil em demasia para uma geração de jovens que poucas provações teve de enfrentar enquanto vivos e, talvez por esta razão, julga-se facilmente e se critica aqueles que acabam fazendo escolhas um tanto polêmicas, como o uso da violência, em nome da liberdade, da igualdade e outras razões que tornam a vida em sociedade viável. Engana-se quem acha que a não-violência é sempre o caminho a ser seguido. Não, em diversas vezes, ela foi o único recurso capaz de pôr fim a uma situação muito mais cruel, desumana e indigna como a que geraram regimes como o Nazismo e o Apartheid e todos os governos imperialistas e coloniais.

Nelson Mandela no início da luta armada, onde qualquer diálogo com o governo racista era impossível. Crédito: SIC Notícias.

Nelson Mandela sobre a escolha pela luta armada

Tornou-se comum a diversos engajamentos mundiais atuais, de esquerda ou não, condenar ações de gerações do passado, em especial também de comunistas e socialistas da “velha guarda”, sem antes terem o conhecimento histórico e a compreensão das dificuldades e opressão pelos quais passaram diversos líderes anteriormente. Eles apontam para Mahatma Ghandi como um exemplo, mas esquecem que o movimento pela independência da Índia iniciou décadas antes e contou com a resiliência de pessoas como Mangal Pandey, que pegou em armas em 1857, dando início a uma série de revoltas armadas que iriam aos poucos, ao longo do tempo, fomentar um ambiente para que a Índia posteriormente, em 1947, conseguisse a independência. Deve-se ainda lembrar que Ghandi promoveu a desobediência total, que em si, pode ser considerada perturbadora à ordem desejada pela elite que detem o poder.

Para Che Guevara, em muitas de suas frases, um revolucionário é guiado por sentimentos de amor. Dizia ele: “Acima de tudo procurem sentir no mais profundo de vocês qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo. É a mais bela qualidade de um revolucionário”. Como Che Guevara, ao longo dos séculos, diversas figuras de diferentes nacionalidades foram capazes de deixarem sua casa para unirem-se na luta de uma causa. Assim, ocorreu com o italiano Giuseppe Garibaldi, durante o século XIX, ou até com figuras como Ernest Hemingway, durante a Guerra Civil Espanhola do século XX, e tantos outros, sem a mesma fama, que se uniram aos socialistas espanhóis na tentativa de barrar o generalíssimo fascista Francisco Franco. Se em vida, eles foram bem-sucedidos ou não, pouco interessa. A questão que se faz essencial aqui é analisar suas atitudes, o porquê de suas escolhas, quais foram as causas pelos quais muito escolheram a luta armada e que ensinamentos eles nos trazem hoje.

As causas

Os diversos movimentos armados de inclinação esquerdista são oriundos de gerações que nasceram, ou foram criadas em um ambiente muito opressor, em especial de duas sucessivas gerações, cujos valores e atitudes resultaram em duas grandes guerras mundiais. Do final do século XIX até meados do século XX, o mundo, do ocidente ao oriente, observava uma profunda transformação na estrutura de poder internacional, com a total derrocada da aristocracia como classe dominante, para a consolidação da burguesia como nova condutora dos rumos políticos, econômicos e sociais que o Globo tomaria.

É importante lembrar que o burguês é o indivíduo que não possui sangue nobre, tendo atingido status com o seu trabalho, ou com a exploração do mão-de-obra alheia. Mesmo sendo desprezada por décadas, a burguesia conviveu e financiou por longo tempo os luxos das nobrezas e das monarquias, no intuito de aos poucos ter proximidade com o poder e, quem sabe, fazer parte deste grupo seleto. Na base desta pirâmide está a classe trabalhadora, cujo destino está desde já estabelecido para que siga sustentando aristocratas e burgueses, abdicando de sua liberdade e melhores condições de vida.

A pirâmide da estrutura social. Crédito: ueaphilosophy.com

Na Primeira Guerra Mundial, travada, na realidade, entre parentes reais que desejavam expandir os seus domínios sobre o mundo (Alemanha contestava que também tinha direitos a obter colônias, em um mundo divido principalmente entre inglese e franceses. Assim também reclamavam os EUA e o Japão). Contudo, imperadores, reis e rainhas após levarem o mundo a uma mortandade tamanha, finalmente, entraram em total desgraça. Subiu ao poder o burguês, mas que logo se deparou com a contestação de seus subalternos por melhores condições de vida e que reivindicavam um outro mundo, sem classes. É preciso salientar que falamos de uma época em que empresários abertamente debatiam quantas horas uma criança de 10 anos, ou mais deveria trabalhar, operando uma máquina. Alguns apontavam para 16h, outros achavam que menos seria melhor.

A vitória dos socialistas anti-imperialistas na Rússia, que definitivamente aniquilaram a família real daquele país, é um dos vários motivos importantes que originaram a Segunda Guerra Mundial. Com a vitória da União Soviética sobre 80% das forças nazistas alocadas a leste da Europa, e sua colaboração aos movimentos e guerrilhas comunistas e socialistas existentes em vários países da Ásia, auxiliando na expulsão dos japoneses dos territórios antes invadidos e desmantelamento do império japonês.

Representação artística dos bolcheviques, ca. 1920. Crédito: Museum Center at 5ive Points.
Garotos trabalhando em fábrica localizada em Macon, na Geórgia (EUA). O trabalho infantil só começou a ser eliminado no país em 1938. Crédito: hypescience.com
Um jovem motorista da Mina de Brown. Trabalhava diariamente das 7:00 às 17:30. Virgínia Ocidental, EUA. Para mais fotos sobre trabalho infantil na época clicar na foto. Crédito: historyplace.com

“Tempos modernos” (1936), dirigido por Charles Chaplin – o operário que vira máquina.

“O Encouraçado Potemkin” (1925), dirigido por Sergei Eisenstein – a revolta e o grito por liberdade dos oprimidos.

Com uma ampla rede de espiões e agentes, Stalin descobre um plano dos Estados Unidos para atacar o território soviético com várias bombas nucleares e promover uma aniquilação da URSS, como ocorrera em tempos recentes com o Japão. Por estas e outras, que os soviéticos prontamente desenvolveram o seu sistema próprio de bombas nucleares, promovendo um equilíbrio de poder bélico e trazendo uma nova conjuntura política para o mundo. No entanto, os norte-americanos passaram ao status de potência através da acumulação de ouro e outras riquezas de uma Europa em guerra, que pagava por armamentos e comida com suas reservas de barras douradas. O mundo do pós-Segunda Guerra tem os EUA substituindo a Inglaterra e a França como líder do mundo ocidental, invocando o fim do imperialismo tradicional, juntamente com a URSS, mas ao mesmo tempo dando início a uma outra forma de influência e exercício de poder sobre outros países. Contudo, o objetivo de ser líder supremo do mundo é barrado com a existência de um bloco socialista e comunista.

Ao mesmo tempo, um terceiro mundo, colonizado em especial por europeus durante décadas, levanta-se sedento por autonomia. Trata-se de algo novo que pegou tanto EUA, quanto União Soviética de surpresas, os fazendo procurar respostas e novas formas de adaptação para este novo cenário internacional que começava a ser desenhado: o de uma África, Ásia e Oriente Médio independentes. O quadro político geral caracterizou-se entre o apoio soviético a forças nacionalistas e anti-imperialistas, mas de inclinação socialista, e dos EUA aliando-se a nacionalista capitalistas que mantinham estreito relacionamento com antigas forças conservadoras, não muito propensas a garantir uma distribuição de seus recursos com os mais pobres de cada país em questão.

Crédito: Quora.

São muitos os exemplos, mas pode-se salientar aqui o movimento impulsionado por Ho Chi Minh que almejava reunificar o Vietnã e lutar pela independência. Contudo, seus compatriotas do sul, ainda que pudessem compartilhar uma ideia de autonomia, mantinham uma visão de estreitos laços de submissão tanto com franceses, quanto com norte-americanos, que aos olhos do líder socialista era algo inviável. Na África do Sul, já independente, Nelson Mandela liderava uma guerrilha recente antiapartheid, apoiada apenas por Cuba e União Soviética, com recursos de todos os tipos. Tratou-se de um período em que europeus e norte-americanos acusavam Mandela de terrorismo e confabulavam sem problema algum com um sistema político racista e de estreito relacionamento com as antigas forças imperialistas.

Durante estas guerras travadas no terceiro mundo, a Europa Ocidental, assim como a Alemanha Ocidental e o Japão passaram a apoiar e a serem aliados dos Estados Unidos e suas ações pelo Globo. As gerações que nasceram, ou cresceram durante a Segunda Guerra, tendo uma real experiência de vivenciar um conflito de tamanha proporção, já não suportavam mais esta situação de constante violência por poder e acumulação de riquezas. Neste cenário, é que os movimentos de extrema-esquerda surgem no seio das sociedades capitalista, trazendo grande contestação e enfrentando, ainda que de forma, às vezes, bastante ingênua estas estruturas centenárias de poder.

Cadáver de uma civil vietnamita morta por soldados americanos durante o massacre de My Lai. Crédito: Getty Images.
As crianças vietnamitas fogem de suas casas na aldeia de Trang Bang, no Vietnã do Sul, depois que aviões do Vietnã do Sul, aliados dos norte-americanos, acidentalmente lançaram uma bomba de napalm na vila, localizada a 42 quilômetros de distância. Crédito: Pinterest/ Getty Images

“Corações e Mentes” (2005), dirigido por Peter Davis – a resiliência do camponês vietnamita.

SHIGENOBU e MEINHOF no documentário “Filhas da Revolução” e suas contribuições para a luta armada internacional

Na Alemanha Ocidental surge o grupo Fração do Exército Vermelho (RAF), ou popularmente conhecido como grupo Baader-Meinhof, em parte fundado e criado por uma mulher Ulrike Meinhof e por Andreas Baader. No Japão, uma estudante, filha de um seguidor da extrema-direita imperialista japonesa, Fusako Shigenobu entra para movimentos estudantis e após funda o Exército Vermelho Japonês. Ambos os grupos, incentivados pelos acontecimentos no terceiro mundo, em especial por Cuba de Fidel Castro e Che Guevara, iriam promover diversas ações armadas, visando derrubar o governo de seus países e implementar um sistema socialista.

Iriam também lutar lado a lado de causas que ultrapassavam as suas fronteiras, como foi o caso dos japoneses que estiveram ao lado dos palestinos, agrupados na Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), em fronts de batalha contra Israel. O caráter contestador das ideias socialistas e comunistas, que advoga em prol do empoderamento feminino, tendo a URSS fornecido iguais poderes às mulheres nas forças armadas e na sociedade civil em 1917, pode explicar em parte a atuação feminina nestes grupos de esquerda.

Neste quadro de acontecimentos históricos, um filme que pode servir de fonte de estudo: o documentário “Filhas da Revolução” (2011), dirigido pelo irlandês Shane O’Sullivan. Esta produção aborda as trajetórias de Ulrike Meinhof e Fusako Shigenobu, através do olhar de suas filhas. Com depoimentos de figuras históricas importantes como a de Leila Khaled, integrante da FPLP. Shigenobu nasceu em Tokyo, em 1945, sendo testemunha de um Japão que se recuperava dos destroços da guerra e que se via em forte domínio dos Estados Unidos. Seu pai era professor e tornou-se também um major do Exército Imperial Japonês despachado para Manchukuo, um estado fantoche do Japão implantado na China, que recebera o apoio da elite pertencente à dinastia Qing chinesa, derrubada posteriormente pelos comunistas. O governo foi abolido com o fim da guerra em 1945.

Crédito: alchetron.com

A jovem Shigenobu cresceu neste ambiente familiar, tornando-se bacharel em economia política e em história pela Universidade Meiji. Através do movimento estudantil que protestava contra o aumento das mensalidades chegou ao ativismo esquerdista geral dos anos 1960. Ao fundar o Exército Vermelho do Japão com Tsuyoshi Okudaira foi ao Oriente Médio para criar filiais internacionais do grupo, em 1971. Os conflitos internos levaram à divisão do Exército Vermelho e parte dele uniu-se à Esquerda Revolucionária Maoista do Partido Comunista Japonês, criando o Exército Vermelho Unido. A líder revolucionária permaneceria 30 anos no Oriente Médio. Ela resguardava a visão de que era necessária uma Solidariedade Revolucionária Internacional, na qual se fazia fundamental a cooperação dos movimentos revolucionários mundiais e sua conduta conjunta direcionada a uma revolução socialista global. Shigenobu dedicou boa parte de sua luta à causa palestina no Líbano.

Ao integrar a luta da PFLP, em vários de seus livros comentou: “o propósito desta missão era consolidar a aliança revolucionária internacional contra os imperialistas do mundo”. Shigenobu foi presa em 2000 e condenada a 20 anos de prisão em 8 de março de 2006, sob as acusações de uso de passaporte falsificado, ajuda aos membros do Exército Vermelho Japonês na obtenção de passaporte falso e tentativa de homicídio involuntário, planejando e comandando a ocupação e tomada de reféns na embaixada francesa em Haia, na Holanda, em 1974. Shigenobu declarou-se culpada das duas primeiras acusações. Entre as testemunhas que apareceram em sua corte para a defesa estava Leila Khaled, conhecida pelo sequestro de 1969 do vôo 840 da Trans World Airlines (TWA), e membro do Conselho Nacional Palestino.

Leila Khaled, militante da Frente Popular para a Libertação da Palestina. Crédito: Pakistan Defence.

Mesmo sem provas conclusivas sobre o envolvimento de Shigenobu na ocupação armada da embaixada que resultou no ferimento de dois policiais, ou na intenção de tentativa de homicídio, o juiz condenou-a por possível conspiração com membros do seu grupo para ocupar o local. Ela vive hoje na prisão Médica de Hachiōji, após ter retirado um câncer intestinal. Sua filha, fruto de um relacionamento com um libanês, Mei Shigenobu é uma jornalista no Japão dedicada à apoiar a causa da mãe. Em seu livro “Decidi dar à luz a você sob uma macieira”, único livro que não versa sobre o processo revolucionário, Shigenobu fala sobre a maternidade e o relacionamento com a filha, que teve uma criação atípica, na clandestinidade de quem luta junto aos pais em um movimento revolucionário.

Diferentemente de Shigenobu, Meinhof teve uma vida familiar bastante conturbada. Ela nasceu em Oldemburgo em 1934. Ainda bastante jovem perdeu pai e mãe, diagnosticados com câncer. Após completar o secundário, mergulhou nos estudos de filosofia, sociologia, pedagogia, literatura e língua alemã em Marburg, onde se envolveu em movimentos reformistas universitários. Em 1957, ao conhecer o marxista espanhol Manuel Sacristán, entrou para a União Socialista Alemã de Estudantes, que era contrária à política de rearmamento do Bundeswehr e da propostas de construir um sistema armamentista nuclear proposto pelo governo de Konrad Adenauer.

Em 1958, Meinhof filiou-se ao Partido Comunista da Alemanha – ilegal na época- e integrou o grupo de colaboradores da revista Konkret, de linha política esquerdista e independente. Com o editor da revista, Klaus Rainer Röhl teve duas filhas gêmeas, Regina e Bettina. Em 1962, durante sua gravidez, foi diagnosticada com um tumor cerebral, mas decidiu realizar uma operação após o parto, temendo afetar o desenvolvimento das filhas. Assim, há quem argumente, em uma clara tentativa de reduzir o papel opressor do governo alemão ocidental, que sua radicalização tenha começado a partir deste incidente pessoal. Porém, a dura repressão do governo alemão a manifestações de estudantes, resultando na morte de Rudi Dutschke, seu amigo próximo, também são elementos que provavelmente explicam a mudança de atitude de Meinhof que de reformista passou a revolucionária.

Ela participou de várias ações do grupo. De roubos a banco a atentados à bomba, e foi a responsável pela produção intelectual e disseminação das ideias da RAF, escrevendo manifestos e tratados. Em 1 de junho de 1972, foi presa, em uma série de atuações da polícia alemã ocidental. Após dois anos de audiências, Meinhof, já então na prisão de segurança máxima, junto com os outros líderes da RAF, recebeu a condenação sozinha de oito anos de reclusão na tentativa de libertar Andreas Baader, em 1970, que fora preso antes dela. Em agosto de 1975, foi acusada junto com Baader, Ensslin e Raspe por 4 homicídios, 54 tentativas de homicídio e formação de organização criminosa.

Entretanto, foi encontrada morta em sua cela, enforcada por uma toalha, cena que gera dúvidas até hoje sobre a possibilidade de homicídio, e não de suicídio como constatava no laudo oficial das autoridades. Meinhof escolheu o caminho da revolução sem arrependimentos e deixou tal mensagem clara inclusive a sua mãe adotiva Renate Riemeck, uma ativista cristã fervorosa pela paz, que em carta tentou argumentar com a filha que desistisse da luta armada. Meinhof reescreveu a carta a partir da posição de uma mãe escrava que pede à filha para abdicar do direito de lutar pela liberdade e contentar-se em ser uma obediente e exemplar escrava. Foi o último contato que ela teria com a família, após decidir romper todos os laços com o passado.

As filhas de líderes revolucionárias e a nova conjuntura internacional

Diferentemente de Mei Shigenobu, uma das filhas de Meinhof, Bettina Röhl, que aceitou participar do documentário, parece ter uma grande revolta contra as atitudes pouco afetuosas e maternais da mãe. Assim como todos os entrevistados, ela condena as ações da líder da RAF, assim como a ideia ufanista que muitos da sociedade alemã ainda resguardam do já não existente grupo revolucionário. As diferentes e profundas perspectivas das duas descendentes de líderes revolucionárias presentes neste documentário auxiliam na constatação de dois cenários. Para além da clara constatação de que Ulrike Meinhof tenha decidido colocar a luta revolucionária acima de tudo, abandonando as filhas, algo que seria aceitável para homens, mas ainda não o é para as mulheres, está o grande ativismo neoliberal alemão atual, que após a unificação tenta realizar um revisionismo histórico impondo uma visão bastante parcial e pouco contextualizada sobre os movimentos armados de esquerda da Alemanha.

Tal atuação anticomunista e socialista foi intensificada com o desmantelamento da União Soviética. As ações atingiram até um nível físico cruel, pois Meinhof chegou a ter o cérebro retirado por inteiro para estudo, mesmo sem o consentimento da família. Contudo, ainda que o cenário anticomunista esteja posto, o vácuo ideológico dele originado, somado a não inclinação dos alemães ocidentais neoliberais em pagar e apoiar a integração total de seus compatriotas do oriente, percebe-se que o país ainda possui um longo caminho para uma unificação plena, no que diz respeito a questões culturais, sociais e econômicas. Portanto, a uma tendência das regiões mais deprimidas economicamente do leste a apoiar movimentos extremistas neonazistas, algo bastante próximo que se observa em toda a Europa.

Já no país natal de Shigenobu, o Partido Comunista Japonês, fundado em 1922, vem experimentando um acentuado aumento no seu número de filiados nos últimos anos. Os japoneses inseridos em um contexto turbulento como o asiático; em que o poder norte-americano vem sofrendo declínio acentuado e a presença cada vez mais atuante de outros atores como a China, o Vietnã, a Coreia do Norte vem crescendo, cria-se um novo cenário para grandes transformações futuras que possam surgir internamente desta sociedade tão arraigada ao conservadorismo e tradições. Somado à experiência de movimentos revolucionários em andamento nas Filipinas, no Laos, na Indonésia e até na própria Índia e as consequências provenientes das crises econômicas e políticas que o Japão vem experienciando, as transformações possíveis de uma população que sofre com uma cultura rígida de horas de trabalho, pode ser terreno fértil para diversas iniciativas progressistas se assim for aproveitado pelas lideranças locais.

O Partido Comunista Japonês hoje é um dos principais partidos com esta inclinação política no mundo, e um dos quatro mais significativos dentro do Japão, possui entre 320 a 415 mil membros. Sua nova estratégia baseada na construção de uma sociedade democrática, abandonando o militarismo, também pode ser um fator que tenha promovido a imagem junto à uma nação que absorveu que a escravidão pacífica é melhor que qualquer guerra. O partido visa pôr fim ao tratado de cooperação militar mútua entre o Japão e os Estados Unidos e desmantelar todas as bases militares dos EUA presentes no país. Deseja que o Japão assuma uma posição neutra e não-alinhada; e defende que as disputas internacionais sejam resolvidas por meios pacíficos, com negociação e diplomacia. Acreditam que é preciso parar de centrar as relações diplomáticas no G8 e nos EUA e dar mais ênfase à ideia de integração regional. Sobre a Segunda Guerra Mundial e o passado colonial, o Partido Comunista acredita ser necessária um resgate da memória e propagar mais desculpas pelas ações do Japão no passado. Vale lembrar que os comunistas foram declarados ilegais em 1930, por se oporem à invasão da China e à participação do país na guerra.

As lições para a esquerda atual: frágil e sem rumo

Por fim, o filme “Filhas da Revolução”, apesar de estabelecer quadros bem definidos de Europa e Ásia através do olhar destas jovens jornalistas, não chega a grandes conclusões, nem defende um lado, ou outro. O que se percebe é que a visão de ambas as jornalistas, cujas vidas estão fortemente ligadas às histórias extraordinárias de suas mães, fazem parte de embate ideológico que não acabou com o fim da Guerra Fria, mas tomou novas formas mais sofisticadas, difícil de serem percebidas e compreendidas para a maioria menos desinformada e intelectualizada. O revisionismo de uma falsa esquerda travou um combate bastante duro, mas talvez não tão eficaz como se pensa, pois, ao levar a Alemanha para um extremo direitista pode estar criando terreno bastante frutífero para futuros combatentes socialistas.

É importante ainda lembrar que apesar da escolha alemã em liderar uma União Europeia com políticas bastante neoliberais e desumanas, resultando em uma Europa cada vez mais avessa ao poder deste país, o Estado alemão toma medidas que vão em direção contrária, com um teor bastante socialista como a universalização da educação universitária, realizada nos últimos anos. Assim, no quadro geral, ainda que o mundo atual demande outras formas de resistência e combate ao imperialismo e as injustiças sociais, nada seria possível sem ações anteriores extremas de quem abdicou de tudo, escolhendo um caminho duro de luta e morte, em favor do bem de todos.

Afinal, nem todas as mortes provocadas por todos os movimentos de extrema-esquerda ao redor do mundo e durante os anos de União Soviética é capaz de ultrapassar a faixa de mortos que o sistema capitalista atual gera a cada ano, direta ou indiretamente. A fome é uma das principais causa de morte no mundo segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) e somente no ano passado 820 milhões de pessoas encontravam-se em condições extremas de pobreza. Neste ano de 2019, a Oxford Committee for Famine Relief (Oxfam) registrou que apenas 26 pessoas no mundo têm a mesma fortuna que as 3,8 bilhões mais pobres. Este e outros elementos, o revisionismo histórico de esquerda e seus grupos de poder, muitas vezes vacilantes para alinharem-se com quadros neoliberais, parece desconsiderar cada vez mais, perdendo força e seu propósito de existência.

Para ler melhor a reportagem clique na imagem. Crédito: jornaleconomico.sapo.pt

Como Fusako Shigenobu expressou em um trecho, publicado pelo Japan Times, de uma de suas muitas cartas escritas da prisão, salientando que apesar de não ter arrependimentos sobre suas crenças políticas, ela admite que muitas de suas ações possam ter contribuído para a apatia dos japoneses e de muitos esquerdistas pelo mundo atualmente. Contudo, segue a afirmar: “o mundo está tornando-se cada vez mais homogêneo”, disse ela. “Você poderia dizer que o mundo está maduro para a revolução, em termos materiais. Enquanto a humanidade continuar a ser negada, a revolução humanista global certamente ocorrerá em uma geração futura. Eu brindarei a isso na vida após a morte”.

Fonte: texto originalmente publicado no site do Tribuna da Imprenssa Sindical
Link direto: http://www.tribunadaimprensasindical.com/p/internacionais.html

Filme de Propaganda do Exército Vermelho Japonês

Entrevista com Karin Bauer autora de “Todos falam sobre o tempo… Nós não: os escritos de Ulrike Meinhof”, no canal Talkingsticktv.

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por Anders Noren

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