Do que falamos quando falamos de “Em chamas”?

Crédito: IMDb.

Lee Jong Soo, Hae Mi e Ben. Jovens coreanos, aparentemente com pouco mais de vinte e menos de trinta anos, símbolos de uma outra Coreia. Os dois primeiros nos são apresentados logo nos primeiros planos. O terceiro ficamos conhecendo logo após a conclusão de uma viagem de Hae Mi para a África. As condições em que ela e Ben se conhecem não são reveladas, mas sabe-se que ela volta como uma espécie de companheira dele. Lee Jong Soo é filho de um militar da reserva, que se encontra preso após discutir e agredir um vizinho. O rapaz se interessa por escrita e deseja tornar-se um escritor, tendo Willian Faulkner como inspiração. Hae Mi parece-nos uma menina desenvolta que aprendeu a se virar com recursos de trabalhos eventuais.

No filme, é mostrada sua profissão de promotora de vendas em algum comércio de rua da região. Ben, o mais misterioso, é um jovem rico. Quase nada se diz sobre seu passado e sobre sua família – só que são protestantes e de classe alta. Em algum momento Jong Soo cita o “Great Gatsby” de F. Scott Fitzgerald para dizer que Ben lhe faz lembrar as estranhas condições socioeconômicas dos jovens, que, na estória de Fitzgerald, enriquecem repentinamente.

Nesse trio centra-se a história com pouca participação de outros personagens; a trama aliás tem um aspecto misterioso e a trilha sonora acompanha a vontade do diretor em demonstrar mistério e gerar dúvidas em todas as ações. É como se Lee Chang Dong quisesse provocar a reflexão se todas as atitudes não seriam parte de algo mais amplo no contexto nacional e internacional, só que sem se focar em explicar história, política externa e/ou geografia política. 

Os personagens Lee Jong Soo (Ah-in Yoo) e Hae Mi (Jong Seo Jun) em “Em Chamas” (2018). Crédito: IMDb.

Em entrevista ao jornal o Estado de São Paulo, em 17 de novembro de 2018, Chang Dong fala como chegou ao material do conto de Haruki Murakami:

“A emissora japonesa NHK  fez uma proposta. Inicialmente, pensei em apenas produzir, deixando a direção para algum realizador jovem, mas acabei dirigindo por diversos motivos. A escritora Jungmi Oh, que trabalhou comigo nos últimos cinco anos, foi quem me recomendou “Barn Burning” (Queimar Celeiros) entre os 80 contos de Murakami. O conto de Murakami é sobre um homem que queima um celeiro como hobby. Apresenta um pequeno mistério sobre se ele realmente queimou o celeiro, o conto termina sem resolver isso. Me interessei pelo final ambíguo, queria expandir esse pequeno e breve mistério de forma cinematográfica, com múltiplas camadas de mistérios maiores.

Achei curioso que (William) Faulkner tenha um conto com o mesmo título, não senti que fosse uma coincidência. O “Queimar Celeiros” de Faulkner é a história de um agricultor pobre e seu filho pequeno que colocam fogo no celeiro de outro por raiva. Se o celeiro de Faulkner é objeto de raiva que causa dor da vida, o celeiro de Murakami parece que não é um objeto real, mas um produto da imaginação, ou uma metáfora. Os dois escritores estão em lados opostos no modo de contar histórias. E, apesar de “Em Chamas” basear-se no conto de Murakami, está também ligado ao mundo de Faulkner, cheio de dor, raiva e culpa da realidade.

Em outras palavras, poderia dizer que “Em Chamas” é a história de um jovem Faulkner que vive no mundo de Murakami. Como o jovem protagonista de Faulkner, que sente culpa e teme pelo incêndio provocado por seu pai, Jong Soo olha para o mundo pós-moderno liso, sofisticado e conveniente, com sofrimento e raiva herdados do seu pai. Há algo de fato errado, mas você não sabe qual é o problema deste mundo misterioso”.

Cena do filme “Em Chamas” (2018). Crédito: IMDb.

Ao longo de pouco mais de duas horas, o filme cansa, mas aprisiona o observador na descrição seca da realidade sul coreana, em que riqueza e desenvolvimento caminham ao lado da exploração e da informalidade. Podemos também dizer que as relações humanas são postas a prova, pelo tom em que se desenvolvem, longe de um estilo tradicional, marcadamente eurocentrado. O amor não é aquele do enamoramento, mas sim aquele do prático, do ocasional. Nisso somos levados a primeira cena-chave; o primeiro sexo.

Na verdade, sugerir como primeiro sexo é algo nosso. Jong Soo e Hae Mi repentinamente se encontram e ela o leva a sua casa, um espaço muito pequeno, próximo ao nosso conceito de quitinete em que quarto e cozinha são o mesmo cômodo e o banheiro é separado só por uma porta ou uma cortina. Ali, eles trocam informações secas e logo partem para a consumação. Hae Mi parece conduzir Jong Soo. Sugere-lhe o uso de preservativo, ao que o rapaz tenta colocar – daí notamos a inexperiência significante típica da primeira experiência sexual da maioria das pessoas, além da insegurança no ato de a tocar que ele demonstra.

Cena do filme “Em Chamas” (2018). Crédito: IMDb.

No entanto, não é aí que notamos o primeiro sexo; a cena prossegue. Quando ocorre a penetração, a câmera desloca seu olhar como que significando o olhar de Jong Soo, e o direciona para a parede, pondo-se a contemplar um feixe de luz. Esse brilho é na verdade um reflexo da luz do sol que bate numa torre ao longe, que se torna o que vemos. A diminuição da intensidade, lenta, nos sugere o desenrolar do sexo, repentinamente cortado e outra cena começa. Outra coisa importante nesse momento é a ausência intencional de sons que pareçam não naturais. É uma realização privada, consentida, sem glamour desses jovens.

Notamos a interessante construção até se chegar ao momento da transa. O encontro repentino, o dar a conhecer esse espaço privado (por parte de Hae Mi), a inabilidade de Jong-soo e o tom intimista que o diretor quis dar ao suspender sons e visualizações da cena. Partimos de uma pista do próprio diretor para a interpretação dela, quando sugere:

“Acho que o problema da juventude é mundial. Por fora, o mundo parece cada vez mais sofisticado, conveniente e até maravilhoso. Entretanto, no interior, os jovens se tornam cada vez mais impotentes e instáveis. Os empregos estão diminuindo, e os aluguéis, subindo de forma insana. A desigualdade econômica está crescendo e não enxergamos uma possibilidade de mudança. No entanto, parece que tais desigualdades não são vistas como problemáticas. O mundo se tornou um enorme mistério, como se não conseguíssemos distinguir um serial killer de uma pessoa boa e gentil”.

Cena do filme “Em Chamas” (2018). Crédito: IMDb.

Nessa colocação que ocorreu durante a entrevista concedida a Carlos Heli e publicada pelo jornal O Globo, Chang Dong critica nossos tempos. As incompletudes e a falta de um caminho são o ponto mais marcante em sua enunciação. Os dois representam a juventude que em meio ao caos, e as inconsistências emocionais ainda encontra fôlego para o desenvolvimento de relações interpessoais, muitas delas pautadas por um envolvimento instrumental – aquele do situacional, das distâncias bem definidas. Se fizermos um aumento da escala, podemos supor que ambos representam parte da juventude, que, para o diretor, é afetada por este estado de mistério social, em que se assume uma faceta pública, um habitus, capaz de mascarar a realidade dos dramas materiais com os quais os jovens deparam-se.

Trata-se, pois, de uma quebra no sujeito:  abandono intencional dos referenciais sociais no ambiente privado, somado a sustentação de um eu público incólume, que finge, simula bem-estar. Não sem razão, a situação posterior a ser desenvolvida é a ausência de Hae Mi já em viagem: ela está fora do lugar (Coreia) e designa Jong Soo para cuidar de seu espaço e do seu gato. O relacionamento dos dois parece longo, mas entrecortado por momentos de proximidade e distanciamento anteriores que não são demonstrados.

O personagem Lee Jong Soo (Ah-in Yoo). Crédito: IMDb.

O estado de ausência após a cena do sexo é entrecortado por variadas experiências solitárias de Jong Soo, desde a ida ao tribunal para acompanhar uma das audiências de seu pai até outros momentos sexuais (masturbação) enquanto se encontra no espaço de Hae Mi, os quais demonstram um jovem que precisa ser o que a sociedade lhe pede – embora, aparentemente, não o queira –, mas, ao mesmo tempo, deixa-se ser afetado pelo imprevisível, pelo impulso no espaço da privacidade.

Jong Soo recebe um telefone. Hae Mi informa o horário do retorno e lhe pede uma carona. Ela estava em um aeroporto queniano quando uma bomba explodiu e por isso o retorno demorou mais que o previsto, mas estava bem e pede a ele para ajudá-la. Ao chegar e encontrar sua amiga, Jong Soo é surpreendido pela inserção de Ben no diálogo. Hae Mi o conheceu em meio ao caos do bombardeio e Ben interage discretamente com Jong Soo. O plano mostra o interior do carro de Jong Soo e Ben conversa longamente com sua mãe, enquanto todos dirigem-se a um restaurante para comer algo que seria feito com tripas de carne bovina. Durante a refeição, vemos que há um envolvimento entre Hae Mi e Ben, que se oferece para pagar a conta de todos e levá-la em casa. Logo após isso notamos que são companheiros. Nada tão sólido, mas pontual.

Cena do filme “Em Chamas” (2018). Crédito: IMDb.
O personagem Ben ( Steven Yeun). Crédito: IMDB.

Passadas estas coisas, a cena em que somos apresentados ao silêncio humano inicia-se em 1:03:57 de filme, aproximadamente a metade, e vemos algumas possibilidades interpretativas pelo que se segue. Hae Mi e Ben vão visitar a casa de Jong Soo, um celeiro velho e malcuidado, com uma vaca. Depois de alguns minutos em que Hae Mi conta coisas do seu passado, ela mesma começa a falar da proximidade da casa de Jong Soo com a Coreia do Norte e o entardecer aproxima-se.

Todos assentam-se na varanda, contemplando um começo do pôr do sol, com petiscos e vinhos, quando a câmera volta-se para as costas de todos e enfoca o sol caindo ao longe.  Embebidos e drogados, com a droga foi oferecida por Ben, todos encontram-se risonhos e ele liga o aparelho de som de seu carro, que começa a tocar a música “Générique” de Miles Davis para embalar o momento. Hae Mi começa a dançar, livremente, loucamente, ao som do trompete de tons menores e contínuos. Tira a roupa na altura dos seios e inicia uma dança amparada pela música, e uma pantomima acontece.

Cena do filme “Em Chamas” (2018). Crédito: IMDb.

Ela reforça nossa tese de uma expressão de ideias política no campo da estética, o que configura uma ética­-estética. O símbolo final da dança é uma pomba, tradicional símbolo pela paz, que aqui é feita em direção à fronteira com a Coreia do Norte, mas é observada mais de perto pela bandeira da Coreia do Sul, hasteada à esquerda. Seria um indício da posição de Chang-dong sobre o conflito? Hae Mi chora e sua dança torna-se menos consciente, aparentemente mais louca, e ela some do plano, deixando somente a bandeira sul-coreana a tremular ao vento. Essa cena encerra-se em 1:11:47, com um grande circuito feito pela câmera que olha para o horizonte, que demonstra uma paisagem rural, pacata, silenciosa e em vias do anoitecer. Quais os objetivos desses elementos estéticos?

Primeiro, a existência da crítica do establishment, no tocante a questão coreana. Hae Mi dança pela Coreia, pela paz, pela unidade e pela resolução de conflitos, em grande medida causadas pelos interesses econômicos internacionais, que afetam o amplo espectro das relações internacionais sul-coreanas, mas também o cotidiano, entendo-o como um somatório de disciplinarização. Ela dança porque é necessária outra forma de intervenção, não a política, no tratamento do conflito, e avisa que a crise avançou para além da política.

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De certo, Hae Mi sugere ao dançar o elogio das inquietações nossas, enquanto expectadores: ela sugere que razão e emoção estão intimamente relacionadas, entrelaçadas, atravessadas uma na outra, e mais: emoções conduzem tanto a intenção, quanto justificações. Que a intenção da vida precisa urgentemente ser maior que a intencionalidade do sistema – do neoliberalismo na Ásia. Metaforicamente, o sentir, o pensar e o agir de Hae Mi são confusos, pois nos representam, mas sobretudo o sentir precisa de humanismo para que possa interferir no agir social e político. Essa nos parece ser uma das principais conclusões de Lee Chang Dong, que ele visa disseminar neste filme.

Em segundo lugar, assim como no sexo, o impulso aqui dá a tônica da luta contra o panóptico. Hae Mi traz à tona o problema maior de Byung Chul Han, quando supõe que esse regime de dominação, a psicopolítica neoliberal, “se ocupa da emoção para influenciar ações”; o próprio regime capitalista desde antes se centra em estudos da produção de valor e desejo, como sugere a muito tempo Arjun Appadurai.

A questão é que o emocional desgastado de Hae Mi tornou-se sua ferramenta da crítica a esse uso das emoções. A dança é feita tirando-se a roupa para supor alguma liberdade no processo crítico. Aqui Chang Dong distancia-se de Murakami, pois há possibilidades do indivíduo questionar e, aparentemente, burlar as novas técnicas do poder (o que não acontece na obra murakamiana). Nesse sentido trata-se ainda mais de uma luta contra a violência política, que tem o emocional como campo privilegiado de suas ações.

Deste modo, tornam-se duas cenas-chaves, atravessadas por diversas ideias e conceitos críticos na afirmação de uma provocação em quem vê, pois este é convidado também a sentir e a refletir à questão. Ambas abrem o caminho para as questões políticas que orbitam essa estética, a vida do próprio diretor, Lee Chang Dong foi membro do grupo de intelectuais e políticos responsáveis pelo ministério da cultura de seu país, e, arriscamos, a nossa própria, pois a experiência de expectador de “Em chamas” nos permite uma tentativa de defesa da dor, da raiva, da dúvida – e essas precisam ter lugar na nossa experiência de ser no mundo, muito mais do que os constantes elogios dos quadros neoliberais.

O diretor sul-coreano Lee Chang Dong. Crédito: IMDb.

“Burning” (2010), “Em chamas” em português. Este é o mais recente filme de Lee Chang Dong (1954 -), um dos diretores sul coreanos mais conhecido no cenário internacional. Tornou-se símbolo de uma estética específica desse cinema, o paradigma estético-expressivo, ou seja, a existência de vários signos, e símbolos, críticos na forma do movimento, e dos planos, é sua marca. O diretor tem uma filmografia anterior, com destaque para o filme “Poesia” (시, Si) lançado na Coreia do Sul em 2010, onde abordou a questão do abandono parental e emocional de idosos, mostrou-nos cenas não convencionais da sociedade coreana, rompendo as nossas idealizações eurocentradas e orientalistas.

Naquele filme, uma senhora, “Mija” (interpretada por Yoon Jeong Hee, 1944 -), é diagnosticada com a doença de Alzheimer. Embora questione a médica, fria e impassível diante da anciã, sai dali com algumas variações emocionais, resoluta de que era necessário enfrentar o futuro e não o temer. A história torna-se emocionante em vários aspectos. Somos apresentados a um neto, por quem ela se torna responsável. A mãe tornou-se profissional de alguma área não identificada que lhe exigiu mudar de cidade e de estado, para muito longe, obrigando a idosa a ser o referencial do menino, apesar da já avançada idade. Note-se a frieza do jovem, recém ingresso na adolescência, com relação a avó e o conjunto de práticas libertinas e escusas cometidas por ele no enredo.

Destas a mais gritante e tônica do filme é o estupro seguido de assassinato de uma jovem da sua escola, cometido por ele e seus amigos. O estupro em si não é mostrado (somente alguns relances e mesmo esses não são precisos), como se a câmera não pudesse mostrar a situação desta mulher. Talvez, esse elemento sinalize uma crítica subjacente a questão das violências contra a mulher na sociedade coreana. Daí em diante, somos apresentados a perseverança da avó contra a doença e sua luta emocional pela vida social do neto. Paramos por aqui.

Por que mencionar tantos fatos do filme precedente? Encontramos em “Em Chamas” uma continuação da questão sobre os estados psicossociais dos indivíduos no ambiente do nosso tempo contemporâneo. Nos parece possível afirmar que Chang Dong queria dar movimento, cor e visibilidade – mesmo desavisadamente – a tese da psicopolítica da filosofia de Byung Chul Han, quando este supõe haver “beleza” pró “dominação” na situação contemporânea, marcadamente neoliberal. Não podemos afirmar a intenção do diretor em se fazer voz fílmica do autor, mas sugerimos esse encontro de ideias como um tema a ser desenvolvido nessa análise do filme “Em chamas”.

Crédito: Instazu.com

Convém uma sinalização do que estou pensando com o conceito de estético-expressividade e sua relação com o cinema, e os estudos sobre cinema, o qual vários pontos que utilizo neste texto foram analisados porGisálio Cerqueira Filho e Gizlene Neder. Começo pelo destaque aos postulados frankfurtianos iniciados com Walter Benjamin (1892-1940, suicídio em trincheiras espanholas fugindo o holocausto): o cinema é uma imagem submetida a esfera pública, ao olhar público, dotada de sentidos e de representações, as quais são, no limite, o espaço da ressignificação de conceitos do recorte (os planos) e das ideias recortadas (as cenas). Na recepção há o encontro (confronto, eventualmente) entre as visões de mundo e as ideias de quem dirige e a ética de quem assiste. Ambos os elementos, portanto, respondem a uma lógica, a uma determinada expressão, que, na prática cinematográfica, é uma interpretação, que pode ou não ser apreendida pelo observador.

Logo, o filme em si é um espaço de manifestações da subjetividade autoral e a sua exibição origina a arena dos sentidos narrativos que o compõem. Nesse espaço, quem vê é afetado, e essa afetação gera resultados que podem ser investigados nos termos da produção de sentidos (“quem viu?”, “por que viu?”, “quais ideias guardou do que viu?”, etc.). Em síntese: um filme é, ao mesmo tempo, um produto cultural que circula, mas que abriga conceitos, eles mesmos em disputa. Após serem reconhecidos como filmes, todos são classificados: em documentário, românticos, ficção-científica, suspense, históricos, cult (mencionamos para uma provocação pontual, amparada na leitura do conceito de camp de Susan Sontag: ele é, resumidamente, uma estratégia de gosto, cujo fim é a crítica a exclusividade de uma determinada apreciação) ,dentre outras categorias. 

“O objetivo do ‘Camp” é destronar o sério. O ‘Camp’ é brincalhão, anti-sério. Mais precisamente, Camp envolve uma nova e mais complexa relação com os ‘sérios’. Pode-se levar a sério o frívolo, frívolo sobre o sério”. Crédito: AZ Quotes.

Mais ainda: cada grupo possui os elementos constitutivos do cliché, da repetição, da intertextualidade fílmica que, tenazmente, segue estabelecendo pertencimentos e desautorizações de enquadramento, às vezes categóricas. Nem sempre um filme menos preocupado com o cliché é autorizado a pertencer a categoria que se propõe; eis a origem de alguns embates na história. Embora não seja nosso objeto, mencionamos essa questão de fundo para sinalizar a evidência deste mesmo paradigma estético-expressivo. Aqui pensamos que “Em chamas” representa uma mensagem sobre a política no agora, através dos elementos constitutivos do suspense.

A despeito da possibilidade de alguma posição formalista manifestar-se com relação ao problema da imagem como mensagem, como representação de algo, pensamos a película pelo seu poder de mobilizar. Se o pós-estruturalismo pensava as implicações subjetivas de certos usos de forma e conteúdo para o texto (a literatura)- como o trabalho analítico de Roland Barthes sobre Sade e Fourier, sobre como se aproximam em forma, mas não em conteúdo- poderíamos supor a existência de uma mesma preocupação para este cinema em específico. Lee Chang Dong tem uma forma, o cinema de suspense, para criticar a política e o marcos deste século: o individualismo, o triunfalismo e o consumismo.

Por sua vez, a arena dos sentidos refere-se a outra preocupação, atribuída a um sem número de autores no decorrer da história da análise fílmica: o quanto estão mobilizados os conceitos, as ideias, na autoria? Para onde direcionam o olhar? Uma pista está com a etimologia da palavra “diretor”: ao passo que um prefaciador “fala antes de”, um diretor “guia para algum lugar” – ou para alguma visão. A figura pública do diretor de cinema ainda precisa de estudos um pouco mais preocupados no tocante a essa produção asiática, especialmente. Existe bastante impregnações da política em diretores mais antigos, como é o caso, e mesmo uma interpretação da sociedade em produções mais recuadas no tempo, algumas clássicas e mais conhecidas, mas ainda pouco presentes no imaginário brasileiro.

Despontam as referências ao cinema japonês, que vem tratando a questão da identidade e da sociabilidade, a exemplo do artigo de J. Vieira “Quem sou eu? O Cinema japonês contemporâneo e a identidade em xeque”, e menos o cinema coreano, aqui representado em “Em chamas”. Trata-se de uma arena de performances as mais variadas: dos atores, objetivamente, do diretor, subjetivamente, e nossa, enquanto expectadores. A partir daí pensamos a existência de um elogio crítico a inadequação como o fio condutor da narrativa desta obra, a qual é mobilizada para nos convencer de uma falência eminente da humanidade em meio ao neoliberalismo, que se faz psicopoliticamente. Ou seja, a dominação a partir de novíssimas técnicas de poder e disciplinarização da interioridade, vide o crescimento galopante da aventurado coach e do empreendedorismo, que vem sendo tratado como elogio do sucesso e da meritocracia.

Lee Chang Dong e Yoo Ah In no set de “Em Chamas” (2018). Crédito: IMDb.

Todavia, o que é “Em Chamas” nesse conjunto de enunciações sobre o sentido da vida contemporânea? Trata-se de uma reflexão sobre a ausência de sentidos humanistas no viver, exatamente quando a sua estética trabalha na produção de possíveis inquietações, e afetações, via a proposição de que nos apropriemos dos seus elementos narrativos. Deste modo, destacaremos o desencantamento do sujeito com o alargamento da crise da esfera pública, para esboçar uma resenha crítica desta narrativa.

No entanto, precisamos refletir sobre o nascimento de “Em Chamas” e sua ascendência. Trata-se de uma adaptação livre do conto “Queimar celeiros” de Haruki Murakami. (Adotamos esse nome em substituição ao nome usado pela tradução do filme, pois se encontra publicado em língua portuguesa incluso em “O Elefante Desaparece”). Murakami é escritor japonês bastante conhecido pela sua peculiaridade na história da literatura japonesa.

Alguns de seus críticos o qualificam como não pertence ao campo da literatura japonesa, defendendo a tese de que sua composição e estética não respondem ao cânon ou não possuem aspectos típicos dessa tradição, sobretudo a preocupação com os conceitos mais antigos (wabi, sabi, yūgen e os demais). Kenzaburo Oe é o mais famoso polemista, debatedor e crítico, muito embora Murakami, nos parece, não se preocupe em polemizar ou em defender um lugar nipônico para sua escrita. Ele não quer fazer parte de um campo literário, de uma vinculação que possa delimitar sua escrita. Seria até mais factual pontuar a sua excentricidade em relação a fama como escritor: não conceder tantas entrevistas, não participar de tantos concursos e muito menos emitir opinião como um intelectual público tradicional.

Seus temas não são tão variados, mas as formas pelas quais desenvolve as suas histórias, recheando-as do fantástico e de referências a um sem número de autores não japoneses (Faulkner, Stendhal, Raymond Chandler, Kafka, Fitzgerald, Carver, para citar alguns mais presentes), buscam desenvolver suas opiniões pessimistas sobre o indivíduo contemporâneo (recomenda-se a leitura do livro “Encontro com 40 grandes autores”, de Ben Naparstek, com tradução de Elisa Nazarian). Vale dizer: Murakami não acredita na recuperação do sujeito em vários de seus livros, a tal ponto de não os nominar em suas estórias, ou mesmo dar-lhes contornos felizes.

Crédito: Dália Negra.

É de certa forma curioso que o Japão, que durante anos representou uma utopia de viajantes, sobretudo no que diz respeito ao ideal do progresso da civilização, a aos dados do setor tecnológico tenha possibilitado o pessimismo em sua literatura contemporânea. Ambos, progresso civilizacional e progresso tecnológico, são pautados numa objetividade tal que, mesmo Lévi-Strauss, no clássico “A outra face da lua”, teve dificuldade em mapear a presença do sensível e do lógico, preferindo defender a sua junção na história da sociedade japonesa – algo ainda otimista, pois ele o faz como elogio ao Japão.

A questão murakamiana preocupa-se em como podemos resistir objetivamente a lógica produtivista e a prédica do individualismo. Para o autor, na maioria das vezes, é necessária uma fuga do mundo, pela via da morte ou pela via da viagem. Chang Dong toma posse desse material e como reafirmação parcial do argumento murakamiano, propõe a manutenção de relacionamentos interpessoais na esfera pública como fuga dessa crise. Se o indivíduo é atravessado pelo poder econômico dominador, suas estratégias e instituições conveniadas, a saída mais próxima é a junção dos oprimidos para que se crie consistência psicológica o suficiente para se resistir a essas investidas.

Crédito: Fnac.

Murakami, por sua vez pensa o tema da crise pessoal e nela o sujeito precisa ser forte o suficiente para abandonar as suas funções sociais e empreender viagens, mudanças e mesmo suicídio para ou sobreviver ou se reinventar para além do seu lugar social, notoriamente opressor e pessimista. Ambos concordam com a existência da morte, no sentido de deixar de ser-no-mundo, como uma missão incontestável, embora o escritor defenda a existência de mecanismos mortais na sociedade produtivista (japonesa) que levam o sujeito a morte, ao desligamento e a viagem que é fuga; já o diretor pensa essa presença ao nível da subjetividade na globalização, dotando seus personagens de alguma agência na escolha do caminho.

Há que se mencionar: “Em Chamas” não pode ser visto como uma adaptação fidedigna do conto para o cinema, pois muitos elementos foram inseridos no filme a despeito do argumento da crise do sujeito ser um fato e as soluções para tal parecerem sombrias, uma postura pouco próxima do texto murakamiano. Portanto, seguimos arriscamos a análise inicial a partir de duas cenas destacadas para efetiva visualização das propostas de Lee Chang Dong: as quais chamamos de o primeiro sexo e o som do silêncio humano. Ambas não se encontram no conto, que, no entanto, recomendamos como leitura paralela.

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por Anders Noren

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