Parasita: uma crítica à desigualdade sistêmica, sem pretensões revolucionárias

Crédito: IMDb.

Muito já se falou sobre o filme “Parasita” (2019) de Bong Joon Ho no Brasil. Há quem acredite que se trata de uma situação nova e que a mídia brasileira, assim como o mercado audiovisual nacional, começa, finalmente, a ver os filmes produzidos na Coreia com outros olhos. Infelizmente, não é exatamente isso.

Todas as obras cinematográficas que não pertencem ao centro de poder cultural mundial do  audiovisual, ou seja, que não são feitas em Hollywood, ou em países da Europa Ocidental consagrados por suas cinematografias, a exemplo da França, apenas encontrarão uma atenção maior do Brasil, justamente, quando premiadas por franceses, alemães, italianos e norte-americanos. Quando receberem o aval dos festivais que estes países organizam e que ditam regras ao mercado distribuidor e exibidor de vários países.

Certamente alguém protestará dizendo que autora está equivocada, mas infelizmente, a extensa linha de intelectuais brasileiros ainda é muito direcionada a assumir como verdadeiras as opiniões dos países que consideram como “civilizações mais avançadas culturalmente”. Em outras palavras, estes países estariam incumbidos do poder de dizer o que é bom e o que não é bom na cinematografia mundial. Isso faz parte da colonização mental que o imperialismo cultural exerce nas pessoas através de uma série de ferramentas culturais, entre elas o cinema, que aos poucos molda e atrai corações e mentes para a sua esfera de influência. O Brasil e muitos outros países encontram-se nesta situação.

O diretor Bong Joon-ho segura o prêmio da Palma de Ouro no 72º Festival de Cannes conquistado por seu filme “Parasite”. Crédito: France 24.

Esta constatação faz-se importante, porque se “Parasita” não tivesse recebido prêmios, mesmo sendo um bom filme, jamais teria a repercussão que teve por aqui. Esta coluna do Koreapost é dedicada a assistir e refletir sobre o que é produzido naquele país asiático. Muitos foram as obras já vistas, entre boas e ruins, e a realidade é que muitas produções cinematográficas sul-coreanas já poderiam estar no debate e análise dos diversos intelectuais brasileiros, ou de seus profissionais culturais, se não fosse o escravismo cultural que ainda nos assola. Lembro aqui que há alguns anos atrás “Old Boy” (2005) de Park Chan Wook, que venceu o Grand Prix de Cannes também recebeu uma atenção especial, assim como “Em Chamas” (2018), de Lee Chang Dong que ganhou o prêmio da crítica do mesmo festival.

A Coreia do Sul parece que já entendeu que deve passar pelo crivo europeu e norte-americano se quiser chegar em peso às telas de países como o Brasil e assim estrategicamente faz o seu lobby para tanto. Sim, há uma política enorme por trás dos futuros ganhadores dos festivais… Mas porque “Parasita” foi o escolhido para ser o primeiro filme a ganhar a Palma de Ouro, levando esta obra a uma possível estatueta do maior prêmio mundial, fornecido pelo centro do império cultural do cinema: o Oscar de Melhor filme? Porque em um período de grande crise do capitalismo mundial e que o seu centro encontra-se ameaçado, produções como o “Parasita”, ou o estadunidense “Coringa” (2019), de Todd Phillips e até o brasileiro “Bacurau” (2019) de Kleber Mendonça Filho Juliano Dornelles apresentam uma grande crítica a este mesmo sistema, sem que o ameacem diretamente.

Da esquerda para a direita o produtor Joon-dong Lee, os atores Steven Yeun, Jong-seo Jeon, Ah-In Yoo, e o diretor Chang-dong Lee comparecem ao Festival de Cannes para a exibição de “Em Chamas”. Crédito: IMDb.

É como se estivessem dizendo: “Veja é preciso corrigir estes erros, ou tudo vai ruir. Consertem estas coisas, mas não necessariamente precisam trocar esta estrutura por outra nova”. E isso mesmo quando se tem a noção de que a causa real dos problemas sociais é esta tal estrutura sistêmica econômica e política vigente… Contudo, diferentemente de um Coringa, ou um Bacurau, não há revolta real, orquestrada dos personagens que sofrem com a desigualdade em “Parasita”. Algo que é possível de encontrar em outras produções passadas sul-coreanas…

Como exemplo, pode-se até mencionar uma produção bastante comercial e recente, mas que possui crítica e em si observa o “fim deste mundo”, o chamado apocalipse para os religiosos: “Invasão Zumbi”(2016), de Yeon Sang Ho, em que os mortos vivos atacam as pessoas saudáveis, como animais sedentos por comida. Seriam eles muito diferentes dos milhões de desempregados desesperados e raivosos, com razão obviamente, que saem às ruas em protestos na Europa, no Oriente Médio, na Ásia e agora mais recentemente na América do Sul?

A submissão dos personagens em “Parasita” é tácita e até desconfortante, o que não se vê em “Coringa” e “Bacurau”. Os ricos são uma espécie de modelo a seguir e são vistos de forma positiva, até considerados ingênuos pelos pobres… E, acima de tudo, “Parasita”, agora se equiparando às produções estadunidense e brasileira, não propõe algo como uma sociedade baseada em valores diferentes e em que todos pudéssemos viver de forma mais justa e menos desigual. Uma que fosse alternativa real e não como a que sempre é apresentada: o retornar ao modo tribal de se viver. Mais uma constatação do caráter não revolucionário de “Parasita” é o que ocorre no final. Os acontecimentos que se desencadeiam ao término da trama são resultados apenas de impulsos psicológicos, de pessoas que no calor de uma discussão, de uma briga, ou atormentadas por um trauma agem sem pensar, para depois se arrependerem do que fizeram.

Cena de “Parasita” (2019), de Bong Joon Ho. Crédito: IMDb.

Filmes deste tipo agradam aos grandes poderes e seus centros culturais, e, provavelmente, isso esteja até no plano estratégico de uma Coreia que visa buscar o mercado internacional, produzindo filmes com apelo global e que não necessariamente queiram ameaçar o sistema. Afinal, diferentemente do irmão do norte, o sul faz parte desta engrenagem global econômica. Dito isso, seria uma inverdade afirmar que “Parasita” é um filme fraco. Ele tem um poder de persuasão política bastante incisivo e que trata questões importantes que as linhas progressistas e de esquerda hoje em dia não querem considerar.

Problemáticas que os mais antigos progressistas, socialistas e comunistas do século XX não se esquivaram de debater como a falta de politização e digamos “imbecilização” da classe trabalhadora, levando com que dentro do seu estrato social acabe a perpetuar as mesmas injustiças que sofrem dos ricos e da classe média. O termo marxista talvez mais próximo que podemos encontrar para tal situação chama-se “Lumpesinato”: uma espécie de classe social que está abaixo do proletariado. Seriam frações sociais miseráveis do ponto de vista de suas condições de vida e de trabalho que, além de serem destituídas de recursos econômicos, são também desprovidas de consciência política e de classe, sendo suscetíveis a servir aos interesses da burguesia. Creio que não apenas os miseráveis, mas os pobres pelo mundo sofrem desta passividade…

De uma forma mais simples, os que durante o século XX lutaram por um mundo mais igual e sem pobreza salientariam aos líderes e intelectuais de hoje que não adianta aumentar a renda e o poder de consumo das massas, sem ao mesmo tempo, promover a sua conscientização política. E este é o quadro que encontramos em “Parasita”, onde Ki Taek (Song Kang Ho) é um pobre e desempregado pai de família.

Ele mora com sua esposa Choong Sook (Jang Hye Jin), o filho Ki Woo (Choi Woo Sik) e a filha Ki Jung (Park So Dam) em um apartamento úmido e infestado de insetos, em uma área de baixa renda de Seul. Um dia Ki Woo leva seu amigo Min Hyuk (Park Seo Joon) para uma loja de bebidas nas proximidades e descobre que seu amigo (que está indo estudar no exterior) vai abandonar uma vaga de professor particular.

O amigo de Ki Woo pede para que ele assuma o cargo, enquanto estiver no exterior. Logo, Ki Woo entra na vida da rica família Park e um plano começa a ser articulado por ele e seus familiares para saírem do sufoco econômico que se encontram, custe o que custar. Mesmo que isso seja “parasitar” na renda e no estilo de vida dos abastados Parks, que por sua vez também são “parasitas” do sistema, obtendo uma fortuna que não sabemos exatamente de onde sai… Contudo, a família de Ki Woo e seu desespero faz com que se tornem praticamente desumanos e pouco civilizados a ponto mesmo de tentar destruir a vida de quem, igual a eles, sofre os mesmos problemas sociais e econômicos como a governanta Moon Gwang, interpretada pela grande atriz Lee Jung Eun. Ela que será o personagem a promover uma reviravolta radical no andamento da narrativa, trazendo resultados inesperados.

A trama criativa, com pontos de virada que trazem novas situações, tornam o conjunto do enredo intrigante e envolvente ao espectador, deixando o suspense, o drama social e psicológico presente até o fim, sem esquecer a crítica que serve de base para a formação desta história. Isso somado a uma cenografia com locações que se alternam entre o bairro pobre e o rico, e a casa pobre e rica que passam a ter uma importância tal para o desenvolver dos acontecimentos, que não seria uma inverdade classificar estas residências, em especial a da família Park como também personagens atuantes na história.

A fotografia com posicionamentos, enquadramentos e movimentos de câmera que não são certamente revolucionários, mas saem do comum que se pratica, dão um ritmo dinâmico ao filme, da mesma forma que auxiliam a manter a harmonia entre os momentos de tensão e de calmaria. Diversas referências de outros cineastas são possíveis de serem detectadas, mas uma que chamou atenção desta autora foi a da cena final, em que a violência lembra a do japonês Takashi Miike e de seu fã ocidental Quentin Tarantino.

Por fim, não se pode terminar sem falar da interpretação que se destaca pelo seu conjunto. Todos os personagens, principais e secundários, têm importância na medida certa para a história. Nenhum fica sem significado, ou esquecido ao longo do caminho. Esta característica lembra um pouco do norte-americano Robert Altman, cujos filmes com relação aos atores e personagens destacavam-se pelo seu conjunto, sendo difícil ressaltar um ou outro. Para que esta fórmula seja bem-sucedida é preciso contar com o trabalho de atores que saibam imprimir a interpretação ideal, sem concorrer com os demais.

Portanto, o chefe da família Park (Lee Sun Kyun), assim como sua esposa Yeon Kyo (Cho Yeo Jeong), o filho ainda criança Da Song (Jeong Hyun Jun) e a filha adolescente Da Hye (Jung Ji So) atuam como pessoas totalmente desconectadas com o mundo a sua volta, vivendo em uma bolha artificial que criaram para si, onde podem viver em um mundo seguro e perfeito. Eles praticamente desconhecem problemas maiores que apenas a saúde do filho e seu comportamento. Uma bolha em que podem adquirir e descartar pessoas facilmente e onde os faz também serem vítimas da malícia e astúcia humana, em especial de quem está fora da bolha, tentando sobreviver à guerra. A passividade desta família de ricos é tão grande que desconhecem a casa onde vivem e o que ocorre nela quando estão fora, e mesmo quando estão nela.

Já a família “parasita” pobre de Kin Woo enquadra-se perfeitamente na situação de quem está tão pressionado pelas suas dificuldades econômicas que perdeu em grande parte a capacidade civilizatória que compete à humanidade. Tornaram-se sobreviventes, desesperados pela falta de emprego, de perspectivas, fazendo bicos e tendo empregos temporários para terem “um teto”, mesmo sendo uma espelunca que os mantém abrigados. Contudo, até isso se perde com o tempo, levando as atitudes da família a serem mais impensadas ainda.

Pessoas que atingem uma condição assim não tem tempo para grandes reflexões políticas, por isso se tornam eternamente submissas a este sistema. Tornam-se individualistas ao extremo, ainda que atuem pelo bem de suas famílias, mas em detrimento da condição de outros. Não seria de espantar, pois os valores que aprenderam, mesmo nesta situação difícil, é de que devem preocuparem-se com os seus. A situação não é diferente para os endinheirados Park. Não existe evolução social, se não se leva em conta àqueles muitos que não têm relação sanguínea alguma com você. Todos dependemos uns dos outros.

Ainda é importante salientar que as situações apresentadas em “Parasita”, em especial quando uma chuva forte cai na cidade, lembram e muito os problemas que enfrentamos dia-a-dia nas cidades brasileiras, o que aponta para uma última questão. Existem pobres em todos os cantos do Globo, inclusive no mundo desenvolvido. A diferença está nos níveis de pobreza que são encontrados nos países e que estão relacionados ao desenvolvimento econômico e social que cada nação conseguiu atingir.

A Coreia do Sul, assim como o próprio Estados Unidos são países considerados desenvolvidos, mas que entre o grupo de nações desenvolvidas apresentam índices sociais preocupantes, podendo até em uma situação ou outra encontrar semelhanças com os problemas enfrentados no mundo emergente e subdesenvolvido. Por isso, não existe situação ideal.

As mudanças de um país para melhor, assim como do mundo em geral, exigem uma reflexão política importante que levará a novas soluções econômicas e sociais. Desta forma, os que mais sofrem com as desigualdades sistêmicas, ou compreendem que elas existem são os aptos a realizar estas transformações, pois dificilmente quem vive no conforto do topo da pirâmide social vai querer modificar este contexto. “Parasita” possibilita tais reflexões e até a sua crítica não revolucionária, algo parecido que se vê em Coringa e Bacurau, pode ter um efeito interessante, pois ao não dar respostas, convidam o espectador a procurá-las.

Fonte: Texto originalmente publicado no site do Koreapost
Link direto: https://www.koreapost.com.br/colunas/parasita-uma-critica-a-desigualdade-sistemica-sem-pretensoes-revolucionarias/

Título: Parasita
Título em coreano: 기생충 (Gisaengchoong)
País: Coreia do Sul
Direção: Bong Joon Ho
Roteirista: Bong Joon Ho
Elenco: Kang Ho Song, Sun Kyun Lee, Yeo Jeong Jo, Jang Hye-Jin, Choi Woo-Sik, Park So-Dam, Lee Jung-Eun
Duração: 2h12min
Lançamento: 7 de novembro de 2019 (Brasil)
Idioma: coreano
Legendas: português

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por Anders Noren

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