Kim Ji Young, nascida em 1982: o fim do super-heroísmo e o poder das mulheres reais

Crédito: HelloKpop.

A história dos humanos é um processo contraditório em si. Um processo dialético interminável. Isso significa dizer que construímos nosso dia-a-dia a partir da contraposição e contradição de ideias, formando novas convicções, situações e realidades. É neste processo confuso e lento que se dá a nossa história. Por isso, não é de impressionar, para quem tem clareza desta questão, que movimentos políticos, sociais, culturais apresentem contradições em si, fazendo muitos questionarem a falta de lógica e coerência deles.

No entanto, é importante enfatizar que isso ocorre com praticamente todas as questões humanas e com o Feminismo não seria diferente. Diz o movimento, que busca igualdade entre homens e mulheres. Quer acabar com ideias pré-concebidas e desfazer conceitos estabelecidos pela sociedade patriarcal, idealizadora da autoridade, da superioridade, em suma, de heróis masculinos. Mas estaria isso realmente acontecendo na prática?

Crédito: IMDb.

Percebemos que de forma geral, este movimento está funcionando muito bem para uma camada economicamente privilegiada da sociedade, normalmente branca, de países desenvolvidos do ocidente, que começam a competir com os homens por um espaço na estrutura de poder social. Há exemplos bem-sucedidos de mulheres pobres, de outras raças e culturas? Há, mas se olharmos para a realidade, elas, no momento, são exceções que só confirmam a regra. É verdade que mesmo as mulheres brancas, de bom nível econômico igualando-se em posições de poder com os homens ainda são poucas, mas já são realidade.

Contudo, fica a pergunta – teriam as trabalhadoras das fábricas de sapatos da Nike na Indonésia a mesma chance de combater e protestar por seus direitos? A multinacional certamente usa da pauta feminista para promover uma imagem positiva e vender mais, mas a realidade é que paga quase nada para as trabalhadoras dos países em desenvolvimento, onde suas fábricas estão instaladas. Assim, lucra mais.

Jung Yu Mi interpreta Kim Ji Young. Crédito: Cinema Escapist.

Outra questão: teriam as mulheres negras, ou asiáticas a mesma chance que as brancas no ambiente de trabalho em países tão culturalmente plurais como nas Américas? Vejam o quão complexa é a questão na prática. Mas vamos piorar um pouco mais. Lembro de minha tia-avó dizendo: “Não compreendo as mulheres. Antes nós tínhamos apenas o trabalho de casa para realizar. Cuidávamos dos filhos e ponto. Agora, temos que trabalhar também. É muita tarefa para uma pessoa apenas. Isso é burrice”, diria ela.

Antes de ficarem bravas com a minha cara e já falecida tia-avó – uma mulher que nasceu em 1923 – vamos tentar refletir um pouco sobre o que ela quis dizer, pois para além de uma visão conservadora, há uma questão importante em sua fala. As mulheres foram ao mercado de trabalho, porém permaneceram com as atividades domésticas e com a educação dos filhos. Estas tarefas não foram divididas com os homens e o movimento feminista até certo período pouco discutia tais situações.

Crédito: Bangkok Post.

Se formos pensar como o imaginário da sociedade atual tem das mulheres, no que se considera ideal e digno de aplauso é algo próximo ao de uma “Mulher Maravilha”, uma figura, por sinal, anglo-saxã e branca… Super-heróis, masculinos, ou femininos, ou qualquer outro gênero que queiram listar, pouco têm em comum com as pessoas reais e o seu dia-a-dia. É impossível para o humano ser um profissional, um cônjuge, pai, ou mãe, amante, modelo de beleza e saúde exemplar. Mas é justamente isso que se exige das mulheres. Como se fossemos capazes de fazer tudo sozinhas e o pior é que acreditamos nisso e seguimos este absurdo da mulher perfeita para depois apenas sofrer de ansiedade, ou depressão.

O filme “Kim Ji Young: Nascida em 1982” (2019), dirigido por Kim Do Young, baseado no livro de Jo Nam Jjoo, de forma indireta, incita tal debate. Estrelada por Jung Yu Mi que vive Kim Ji Young na trama e Gong Yoo, que interpreta seu marido Jung Dae Hyun, esta produção cinematográfica não se curva de assuntos espinhosos, ainda que o faça de forma sutil e muito sensível. A personagem principal trabalha em uma agência de relações públicas. Porém, um dia casa e tem uma filha, tendo que deixar o seu emprego. A vida segue o seu curso normalmente, até que, de repente, Kim Ji Young começa a falar como sua mãe, sua irmã mais velha. Do nada, transforma-se e passa a ser outra pessoa. Estaria ela possuída? Sofreria ela de dupla personalidade? O que teria acontecido?

Gong Yoo vive o marido de Kim Ji Young, Jung Dae Hyun. Crédito: IMDb.

Antes de mais nada é importante salientar que o interessante de um filme que aborda tal temática, de tantos que já foram feitos sobre o mesmo assunto ao redor do mundo, é a sua capacidade de levar um tema polêmico como este para situações cotidianas, para o ambiento privado e íntimo do lar, onde a correlação de forças entre marido e mulher definitivamente ocorre. Alguns diriam que tal situação na Coreia é diferente de outros países do ocidente, onde as mulheres não são necessariamente obrigadas a deixar seus empregos.

Primeiro, que tal contexto do filme pertence à década de 1980, onde tal situação ainda ocorria. Muito mudou na Coreia rapidamente em alguns poucos anos. No entanto, muito ainda dos velhos costumes permanecem. E pior, com as transformações sociais, as coreanas passaram a acumular tarefas, assim como qualquer mulher dos países no ocidente.

Crédito: Medium.

É interessante perceber que aqui não se contempla a ideia utópica da maternidade idílica, paradisíaca, como muito afirmam por aí, mas também não temos o inferno na Terra. A personagem principal luta diariamente com as dificuldades de criar uma criança, com o trabalho exaustivo que demanda. No entanto, diferente da maioria, Kim Ji Young rebela-se de forma bastante inusitada, inconsciente, através da “incorporação”, ou no deixar falar uma voz que ela nem sabe que tem.

Ela enfrenta quem a julga, quem almeja dizer-lhe o que deve fazer ou não, confrontando até os mais velhos, situação complexa em uma sociedade como a coreana tão hierarquizada e tão submissa à ideia de respeito aos mais velhos, mesmo que os idosos usem disso para oprimir, ou livremente extrapolarem seus direitos sobre os mais jovens. Tal atitude dela intriga seu marido, que busca compreender e ajudá-la. Uma figura já digamos diferente, com uma mente mais aberta do que os homens da sua época. A maioria provavelmente já teria saído e abandonado a família, como até hoje, é normal.

Crédito: IMDb.

O diferencial nos protestos desta nova persona que Kim Ji Young assume é que ela deixa claro não ser obrigada a assumir todas responsabilidades que lhe são impostas como naturais. Afinal, ela também tem anseios para além da casa e da família e assim praticamente obriga seu marido, mãe, irmão e tal a auxiliarem-na. Fica claro, por exemplo, a falta de atenção do pai, que facilita tudo para o irmão dela e o mima, enquanto Kim Ji Young para ele praticamente não existe.

O interessante aqui é justamente esta atitude de não incorporar a heroína e tentar fazer tudo sozinha, mas transformar o seu ambiente e as pessoas ao seu redor. A dupla de atores principais tem atuações primorosas, de pessoas comuns que tentam lidar com seus problemas mais íntimos em meio a uma sociedade que pouco compreende, ou quer compreender.

Crédito: The Seoul Story.

Os atores que interpretam papeis secundários fornecem o suporte necessário para que o casal de atores principal possa dar sua melhor performance. A química profissional entre Jung Yu Mi e Gong Yoo não precisa de grandes apresentações. Velhos conhecidos de outras produções como “Invasão Zumbi” (2016), de Yeon Sang Ho e “Silêncio” (2011) de Hwang Dong Hyuk, eles deixam claro que juntos na tela têm muito a dizer, a mostrar e comover o espectador.

A direção de Kim Do Young traz a sutileza e complexidade psicológica que o enredo necessita, sustentado na escrita do roteiro adaptado que ela compartilha com Yoo Young A e com a autora do livro Jo Nam Joo. Não há falas demais, nem explicações desnecessárias, nem discurso ativista na história. A diretora deixa através das cenas e das atuações que a trama flua e por si deixe que as questões e suas polêmicas livremente sejam manifestadas ao espectador. Deste filme, pode-se pensar o quanto estamos realmente transformando o nosso cotidiano.

A atriz Jung Yu Mi (esq.) e a diretora Kim Do Young (dir.) durante o set de filmagem. Crédito: Cinema Escapist.

Os homens de nossa época estão cientes do papel que têm na criação dos filhos e nas atividades domésticas? O meio de trabalho ainda tão masculinizado e pouco preparado, até fisicamente, para as mulheres que engravidam, ou têm filhos, está sendo modificado? Mulheres grávidas têm a necessidade de alguns cuidados sim, como o meio de trabalho adaptou-se às necessidades delas? Isso não seria importante levar em conta, em especial em uma sociedade com problemas graves de natalidade? E quando as crianças nascem há creches nas empresas para os pais, ambos, trabalharem e estarem próximos dos filhos? Existem benefícios para formar uma família?

São questionamentos que nem o Feminismo hoje realiza ou leva como uma bandeira integral sua. Se há falta de igualdade nos âmbitos empresariais mais sofisticados, imagina nas fábricas, na realidade das trabalhadoras braçais, de “chão de fábrica”, como diz o jargão popular. Reflexões deste tipo são necessárias. Assim, Feminismo sem consciência de classe e atenção às questões mais particulares do mundo feminino torna-se, na opinião desta autora, ineficaz para as massas.

Crédito: Reel Good.

Talvez o que muitos grupos dentro do Feminismo, não todos obviamente, estejam fazendo sem saber é apenas incorporar à estrutura masculina do sistema algumas mulheres, que acabam virando chefes com medidas praticamente iguais, ou tão opressoras como a de um chefe homem. E até isso o filme em questão salienta. A chefe de Kim Ji Young é compreensiva com ela, com seus problemas, não a descarta nem por medo de competição, nem pela sua aparente falta de produtividade e utilidade momentânea…

Aqui também temos um apelo à saúde não apenas física, mas mental, emocional dos empregados como algo primordial para que a estrutura do trabalho, do sistema empresarial possa funcionar melhor. Na busca da superação das várias desigualdades que o sistema atual produz, o universo feminino e suas questões particulares necessitam ser observados por todos e estarem no centro do debate. Só assim antigos padrões e injustiças serão realmente superados.

Fonte: Texto originalmente publicado no site do Koreapost
Link direto: https://www.koreapost.com.br/colunas/cine-coreia/kim-ji-young-nascida-em-1982-o-fim-do-super-heroismo-e-o-poder-das-mulheres-reais/

Título: Kim Ji Young: nascida em 1982
Título em coreano: 82년생 김지영 (82nyeonsaeng Kimjiyoung)
País: Coreia do Sul
Direção: Kim Do Young
Roteirista: Jo Nam Joo (livro), Yoo Young A, Kim Do Young
Elenco: Gong Yoo, Jung Yu Mi, Kim Mi Kyung
Duração: 1h58min
Lançamento: 23 de outubro de 2019
Idioma: coreano
Legendas: inglês

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por Anders Noren

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