
Existe uma espécie de imagem canônica que está no nosso inconscientemente quando pensamos no Rio de Janeiro: a existência de dois mundos, um de muita riqueza e poder, que se concentra na “zona sul”, e outro, de pobreza e violência – um poder paralelo – que é a “zona oeste”, a periferia, as favelas, as comunidades. Parece que o Rio divide-se entre esses dois mundos e os cariocas transitam entre as duas realidades, que, na verdade são uma só. Isso tem relação com o problema histórico da desigualdade social, fruto de anos de omissão do setor político.
No caso, nenhum governo no estado do Rio enfrentou a questão populacional com seriedade. Alguns até cooperaram (e cooperam) no sentido de fazer crescer essa desigualdade, apoiando projetos muito pouco efetivos e cortes em setores estratégicos. As denúncias estão aí para quem quiser ver… Talvez, alguns se lembrem da série de filmes “Tropa de Elite” (2007), que apesar de todos os problemas que contém, faz boa amostragem da complexidade dos conceitos rico/pobre, sul/oeste, segurança pública e corrupção, palavras que criam uma geografia moral, mais do que um delimitação espacial e são pouco efetivas na elaboração de políticas públicas. Percebam que a imagem mais comum é a da violência na zona oeste e a da cultura e desenvolvimento na zona sul, numa lógica doentia que adoece quem vê.
Mortes de pessoas tornaram-se números para a segurança pública e para a saúde. Todo dia ficamos sabendo de um novo setor deficitário, enquanto vemos, no mesmo jornal – às vezes, na mesma capa! -, notícias de lançamento de livros, pessoas bonitas, e festas como se nada estivesse acontecendo. Ele, diz o perfil no site da Companhia das Letras, “trabalhou como ‘homem-placa’, atendente de lanchonete, garçom em bufê infantil e barraca de praia. Em 2013 e 2015, participou das oficinas da Festa Literária das Periferias, (a Flup). Publicou alguns de seus contos na revista Setor X e foi convidado duas vezes para a programação paralela da Flip.”
Por sua vez, “O sol na cabeça” (2018), de Geovani Martins, uma série de contos seus reunidos em livro, é um dos mais recentes esforços dessa cena da periferia que decidiu assumir-se como tal, a despeito da propaganda midiática corrente. A mídia é insistente em colocar a violência como único assunto deste lugar, mas, na contramão, vemos o esforço do autor em contar um pouco da “vida daqueles debaixo do sol do meio dia”. Seu esforço foi tão bem sucedido que seu livro já conta com uma versão em francês e seus direitos autorais estão sendo negociados para outros países desde o lançamento, em 2018″.

Vejamos o nome dos contos: “Rolézim”, “Espiral”, “Roleta Russa”, “O caso da borboleta”, “A história do Periquito e do Macaco”, “Primeiro dia”, “O rabisco”, “A viagem”, “Estação Padre Miguel”, “O cego”, “O mistério da vila”, “Sextou” e “Travessia”, que fecha o volume de 120 páginas. Geovani conta neles como é viver desde a periferia. Ele não esconde as necessidades de vinculação entre as zonas; ao contrário, as analisa e constrói personagens em função desses encontros e desencontros ocasionais.
Por exemplo: encontramos a vida do trabalhador que sai de Padre Miguel para o centro, através das baldeações, com destaque para o trem e a simbologia da Central do Brasil. Vemos a história por trás de vendedores de bala dos coletivos, o que nos faz pensar de maneira mais humana sobre eles. Vemos as sexualidades não binárias e como elas se desenvolvem no contexto da favela. Trata-se de uma espécie de comentário que quer nos informar sobre a existência daqueles que sentem de maneira diferente e imploram por reconhecimento e respeito.
Também aparece a figura do bandido! Não, ele não é o bandido que precisa ser mostrado morto com comemorações midiáticas inescrupulosas. Geovani é preciso em pontuar que bandido bom não é bandido morto e nos convence de que a bandidagem merece outro tratamento a partir da história de um crime, contado pela perspectiva do ladrão.
Vemos o mistério que é a religiosidade nas comunidades. Geovani, de certa forma, ilustra a mistura. Achamos interessante que o quadro que pinta não é uma crítica a uma ou outra religiosidade, mas uma mostra de como as crendices populares, as histórias de família, o neopentecostalismo e as religiões de matriz-afro estão muito mais integradas no espaço das comunidades, trazendo interessantes composições de família, para além do que se pensa.
Além disso, ficamos conhecendo, também, as iniciações dos jovens periféricos, portadores de uma relativa independência por força de ausências parentais. São jovens, meninos e meninas, que descobrem sozinhos sabores, drogas, o sexo, prazeres, as possibilidades de ir e vir, a partir de uma vontade pouco criticada que lhes estimula o gosto pela vida, independente da tristeza inicial de não ter pai, mãe ou mesmo qualquer referencial de família. São muitos temas emocionantes!
Logo, Geovani Martins, “O sol na cabeça”, é uma boa leitura nesse momento, por ser potente para criar novas imagens e empatias em todo nós. Ainda: dependendo da sua região, estereótipos te acompanham e isso não está em seu poder. Porém, e se alguém usasse essas mesmas imagens, para compor histórias de vida desse lugar periférico? É isso que faz Geovani Martins, escritor original, de Bangu, em “O sol na cabeça”.
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