
Você conhece a puroretaria bungaku, a literatura proletária do Japão? Hoje vamos falar de um de seus maiores expoentes: Takiji Kobayashi, autor de Kanikosen. Eram os tempos mais duros da política japonesa. Os gabinetes estavam sob controle dos militares e a economia dando sinais de recuperação lenta. A famosa Era Taisho entrou na história marcada pelos governos conservadores e mais militarizados e pelo expansionismo japonês, dirigido por autoridades militares que tomaram os principais órgãos administrativos.
Ao mesmo tempo, cresciam as desigualdades sociais e muitos escritores, pintores e personalidades embarcaram no projeto de contestação a elas: surgia aí uma demanda por uma produção artística que levasse em contato as demandas da sociedade e dos menos favorecidos. Esses artistas eram das mais variadas matizes políticas e propunham mudanças e uma revolução.
Por volta de 1928, as principais revistas do país continham textos desses autores e autoras e o processo de perseguição começou. A visibilidade alcançada tornou-se uma arma mobilizada contra essas vozes dissidentes: muitos foram mortos, outros presos, violentados e em alguns casos utilizados como exemplo para a população do que poderia vir a ocorrer se alguém tomasse as mesmas ideias.
Nesse contexto, vemos o Takiji Kobayashi. Nascido pouco antes desses fatos, no ano de 1903, Takiji viveu em um Japão marcado pela crise. Com o país recuperando-se da inflação, muitos japoneses são estimulados a se deslocarem para outros países. O Brasil recebeu muitos por volta de 1908 e se tornou símbolo dessa campanha Estatal pela imigração.
Poderia pensar que ele acompanhou as primeiras notícias e decidiu envolver-se minimamente com as questões desse projeto, pois dentre os seus temas destacam-se as táticas repressivas do Estado japonês, as roubalheiras institucionais e a crise na qual se encontravam trabalhadores no contexto da tomada de decisão. Segundo os elementos retomados por Takiji no seu principal livro Kanikosen, sobre o qual falaremos adiante, boa parte das motivações para que trabalhadores migrassem estava no fato de que o Estado teria aplicado golpes comerciais no campo, impulsionando crises e deslocamento.
No entanto, pouco sabemos sobre sua vida ou de seus contemporâneos mais próximos. Sabemos somente que sua morte prematura em 1933 foi uma ação de Estado: ele foi preso e torturado pela polícia e sua morte fez com que muitos autores dessa escola – que já se identificavam pelo nome de escola proletária – recuassem nas suas publicações.

Takiji, aparentemente, era querido e endeusado pelos pares por conseguir esse misto de ação política, requinte estilístico e boa recepção entre leitores. Sua obra principal, o Kanikosen, encontra-se pouco veiculada até hoje e possui uma tradução publicada para língua portuguesa por iniciativa de Portugal. Uma tradução paralela circula no Brasil através da pesquisa de André Felipe de Sousa Almeida, que pesquisou a vida e a obra do autor e propõe uma tradução do livro em sua dissertação de mestrado. Talvez André Felipe seja aquele que nos fornece um quadro mais completo sobre a obra de Kobayashi.
A repercussão de seu trabalho no Japão tem haver com a sua formação, marcada por um trânsito entre as ciências econômicas e os estudos sociais à moda japonesa. No período de 1921 e 1924, Kobayashi frequentou a Escola Superior de Comércio de Otaru, instituição que sediou os trabalhos de estudantes orientados pelos estudos de economia política. Ali se encontrava a descendência de classe média que almejava formar os filhos para os empreendimentos, embora muitos desses fossem simpatizantes de teorias políticas ligadas ao socialismo, recém ingresso no Japão.

Eles se reuniram na associação de jovens – Shinjikai – que por volta de 1922 deu lugar ao Partido Comunista do Japão. A reunião teve pouco fôlego, sendo perseguida pela polícia política do imperador e abafada pelos impactos do terremoto de Tóquio em 1923, mas publicou um volume de textos conhecido e impactante: muitos deles encontram-se na revista chamada Os semeadores, de 1921, e se tornaram marcantes por defenderem a Revolução Russa (1917).
Outros foram reunidos em revistas menos circuladas: A Bungaku sekai (Mundo Literário) e a Shinkô Bungaku (Nova Literatura), originais de 1922. Especialmente, esses autores protestaram contra diversas ações do governo, mas também contra determinados acontecimentos públicos. Por volta daquele mesmo ano do terremoto de 1923, a sociedade japonesa estava orientada pelo estado de choque e temos registro (ver o livro Os japoneses de autoria de Célia Sakurai) de que vários coreanos e chineses residentes no Japão foram acusados de estarem projetando uma invasão no meio do caos. Muitos foram perseguidos e mortos cruelmente, enquanto o governo desviava os recursos necessários para reconstrução de Tóquio. Esse grupo de autores conseguiu publicar alguns textos com críticas contundentes e como reação do governo, muitos foram caçados e mortos na sede da Aliança Juvenil Comunista.

Passados alguns anos, em 1924, Takiji conseguiu um emprego no Banco Colonial de Hokkaido em Sapporo e essa residência mais ao norte do arquipélago será decisiva na construção do enredo de Kanikosen. Ali ele alinhou o trabalho com a sua visão política, vindo a ser licenciado pouco tempos depois. Durante sua estada disseminou textos em uma revista fundada com colegas da central sindical dos bancários, mas após a saída retornou para Tóquio onde tentou encontrar-se com os “herdeiros” do projeto editorial da Os semeadores e ingressar em curso superior de economia. Sem conseguir, retornou para sua ocupação e continuou a produção.
Seus escritos renderam-lhe contatos no universo dos autores. Shiga Naoya (1883-1971) endereçava-lhe cartas, todo o campo da literatura proletária conhecia-lhe e na ocasião de sua ida definitiva para Tóquio. Em 1930, a perseguição começou. Sua vida como bancário fez ter conhecimento sobre a situação dos agricultores ao norte do Japão. Seus dotes artísticos acabariam sendo-lhe úteis entre 1926 e 1927, quando variados movimentos grevistas despontam no Japão.

Mas, sobretudo na região de seu trabalho, com a greve de Isono, tornou-se ativista. Sua escrita elaborou cartazes, pelo estudo deu aulas nas paralisações e alguns de seus textos que trataram do movimento foram publicados em revistas. Curiosamente, seu ativismo só se manifestou mais fortemente no ano de 1927, quando filia-se a Federação de Artistas Trabalhadores e Agrários.
Com o aumento da perseguição esse órgão fragmentou-se em outros menores, uma constante em movimentos de esquerda do Japão. No entanto, a sua permanência na militância e o aumento de textos publicados acabou marcando a sua trajetória para além dos grupos e ele passou a ser uma referência: Takiji passou a ser perseguido e até investigado pela polícia secreta. Após a “fama”, Kobayashi inicia o projeto mais marcante de sua produção, Kanikosen.
Segundo André, uma tradução possível é O navio-fábrica caranguejeiro. A despeito da perseguição que se passa em sua vida, a qual culmina na apoteótica morte em 1933, Kobayashi desenvolveu uma tese sobre a vida dos trabalhadores no Japão que assumiu como missão relatar. Segundo ele, havia uma situação de extrema exploração do trabalho que contrastava com o cenário nos pólos de Osaka e Tóquio, mostrado ao Ocidente, que só existia pela falta de organização política da classe trabalhadora.
Para tanto Kobayashi apresenta-nos uma fábrica dentro de um navio, o Hakukô-Maru, especializado em pesca e processamento de caranguejos. Sua área de exploração é o mar de Okhotsk, no limite com os mares soviéticos. No seu interior, pescadores, operários, foguistas e tripulantes juntam-se num espaço mínimo para dar conta da “missão de abastecer o glorioso Japão com o trabalho do fornecimento de alimentos”.
Evidentemente, falamos de um navio com variados grupos: os tripulantes oficiais e diretores, o encarregado, normalmente conhecido como capitão, e os demais tripulantes que na sua maioria são oriundos da crise dos campos. O primeiro a ser apresentado é o explorador, capitão Asakawa, que comanda os rumos do navio de acordo com as ordens que lhe são dadas pelos dirigentes dos zaibatsu do setor. Zaibatsu é um conglomerado de famílias, as quais administram uma ou mais empresas em um determinado setor. Aqui não temos referência direta a nomes, talvez por conta da própria perseguição pela qual passou o autor. Qualquer letra escrita por ele poderia ser uma referência a pessoas ou personalidades daquele momento.
De certa forma, essa elipse é bem mais explícita do que se supõe, pois é possível identificar o império, os órgãos públicos e as liberdades concedidas às empresas no tocante a lei do trabalho, todos em acordo sobre esse conjunto de situações. Asakawa usa de requintes de crueldade, como chicotes e afogamentos, para impor a sua vontade sobre os comandados. Estes são jovens trabalhadores expropriados de suas antigas atividades, os quais pensam estar trabalhando para fortalecer o império e suas famílias. Kobayashi é bem potente ao demonstrar que muitos tinham consciência crítica sobre o que estava havendo, mas pouca ou nenhuma força para lutar por melhorias nas condições de trabalho.
Alguns são mortos no processo, pelo próprio Asakawa ou por doenças causadas pela falta de uma alimentação adequada. Na história temos uma morte por beribéri, por exemplo, acompanhada de outras por espancamento ou mesmo afogamento (homem ao mar…). Ficamos sabendo que alguns dos homens vem do continente após sucessivos fracassos em empreendimentos incentivados pelo próprio governo! Outros criam ainda ter para onde voltar depois de uma etapa no trabalho, como para família ou para a realização de esperanças juvenis de riqueza e sucesso social. Por conta disso, nove dos trabalhadores do navio lideram… uma greve! Este evento que encerra o livro é o símbolo de que a força dos trabalhadores está na luta política.
Após as páginas e Kanikosen ganharem o Japão, a perseguição contra o autor aumento largamente. Sua obra foi censurada e com a vitória do projeto liberal, relegada a segundo plano – junto de outros autores críticos – vindo a ser reavaliada por volta dos anos 1970. Mas apesar disso retomemos Takiji. Ele, como dissemos, é morto em 1933, prematuramente aos 30 anos, mas se consagrou como um daqueles escritores que critica frontalmente os mitos sobre o Japão, que apagam essas situações históricas de opressão e reificam a cultura como que ausente de erros.
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