Os norte-coreanos passam fome?

Crédito: CEPS-Brasil.

Quando se fala em Coreia do Norte, muitas opiniões negativas sobre o país vêm à cabeça, uma vez que a visão generalizada sobre essa nação costuma ser ruim. Rotulada muitas vezes de “ditadura isolada” e país “empobrecido” e “faminto”, a Coreia do Norte carrega aqui no Ocidente o estigma de ser um país que sofre com a fome. Muitas vezes, são usados relatos ou realidades de décadas atrás na tentativa muito problemática de ilustrar um cenário da atual situação alimentar da República Popular Democrática da Coreia (RPDC). Mas, afinal, a Coreia do Norte é um país com fome?

Breve histórico agrícola

Ao longo da larga história coreana, que data de mais de 5.000 anos, em vários momentos diferentes, o povo coreano passou por momentos de grandes dificuldades econômicas, muitas vezes resultando em fome. Guerras contra invasores externos, disputas por poder local, má administração dos donos de terra ou condições climáticas desfavoráveis foram as causas de alguns momentos no passado coreano que foram marcados por períodos de fome, como, aliás, aconteceu e acontece em todo o mundo.

Com a libertação do país em 1945 da ocupação japonesa (1910), a Coreia foi dividida arbitrariamente em dois diferentes Estados: a República da Coreia ao Sul e a República Popular Democrática da Coreia ao Norte. Essa divisão teria um impacto na produção alimentar da RPDC, uma vez que a porção sul da Península Coreana é mais adequada para plantação extensiva de alimentos e o Norte, por sua vez, possui um território mais montanhoso, rochoso, menos fértil e com poucos espaços para esse tipo de atividade.

Depois de já terem destruído todas as construções possíveis, os pilotos americanos se divertiam como em um videogame bombardeando vilarejos, fazendas e plantações e alvejando o gado. Na imagem, um caça F-80 dos Estados Unidos lança bombas sobre vila aos arredores de Pyongyang, RPDC, 1952. Créditos: AvaxNews/ Getty Images.

Mesmo assim, durante boa parte da segunda metade do século XX, a RPDC desenvolveu uma boa agricultura. Em 1946, antes mesmo da fundação do Estado socialista, os revolucionários coreanos assinaram a Lei da Reforma Agrária, redistribuindo as terras, outrora de posse dos ocupantes japoneses e grandes proprietários, para os camponeses e associações de trabalhadores rurais. É importante notar como um antigo sistema feudal da agricultura que oprimia os camponeses coreanos – seja com os altos impostos ou com a total concentração da propriedade rural nas mãos de poucos – foi sistematicamente posto abaixo graças aos esforços revolucionários que tinham a missão não apenas de libertar a Coreia do seu colonizador estrangeiro, como também instituir uma autêntica revolução social modernizadora.

A Guerra de Libertação da Pátria (1950-1953) mostrou-se terrivelmente arrasadora para todo o povo coreano: o uso indiscriminado de armas de destruição em larga escala por parte dos EUA, como napalm, dispositivos biológicos e fósforo branco não apenas matou muitas pessoas, como também abateu cabeças de gado e arrasou os campos agricultáveis da RPDC. O país foi bombardeado pelos EUA com mais bombas do que toda a Segunda Guerra Mundial, para ter-se uma ideia da escala dos danos.

A mecanização do campo e a melhora nas condições de trabalho dos camponeses aumentaram o nível de produção agrícola. Na imagem, Fábrica de Tratores Kumsong, década de 1970. Crédito: KCNA.

Porém, pouco tempo depois do fim do conflito, as propriedades rurais foram coletivizadas e observou-se uma grande mecanização do campo – coincidindo com a industrialização massiva levada a cabo pelos planos econômicos de reconstrução planificada implementados pelo líder Kim Il Sung. Com auxílio técnico da União Soviética, as primeiras indústrias de produção de tratores, caminhões e maquinários agrícolas deram os seus frutos e as máquinas começaram a tomar conta das fazendas coreanas, elevando vertiginosamente o nível de produtividade. O notável avanço agrícola da RPDC, graças à planificação econômica, fica evidente no estudo do professor, historiador e pesquisador Paulo Visentini em sua conhecida obra “A Revolução Coreana”:

“Na agricultura, as três principais tarefas – irrigação, eletrificação e mecanização – avançaram significativamente. Cerca de 800 mil chongbo (1 chongbo = 2,5 acre) estavam agora com irrigação, incluindo todos os campos de rizicultura. A eletrificação rural havia prosseguido ao ponto de 92,1% de todas as aldeias e 62% de todos os lares camponeses terem eletricidade. A mecanização, apesar de prosseguir mais devagar, estava progredindo”. (p.102 – informação métrica nossa)

Pelas décadas seguintes, a RPDC apresentará um galopante nível de desenvolvimento econômico, principalmente entre as décadas de 1950-1980, sendo mais rica que a vizinha Coreia do Sul e com taxas de crescimento muito mais altas. A agricultura da RPDC seguirá o mesmo ritmo e o país chegou a ser, na época, líder global em exportação de alguns tipos de grãos. O Sul, ao contrário, experimentava uma péssima situação econômica e grandes distúrbios sociais, uma vez que desde 1945 estava amordaçado por sucessivos regimes militares.

A situação vai mudar no início dos anos 1990. A queda da URSS e de todo o Bloco Socialista simbolizaram o desaparecimento do mercado externo da Coreia Popular e o fim das importações de produtos que não eram produzidos internamente. Aproveitando-se da frágil situação interna e ambicionando destruir a RPDC de dentro para fora – cumprindo então uma tarefa pendente na agenda ianque desde 1945 – os EUA cercaram o país e aplicaram imensas sanções econômicas por meio da ONU. Tais sanções estão em curso até hoje e impedem o país de comprar alimentos do mundo: uma estratégia de guerra semelhante a um cerco militar. Climaticamente, durante esses anos, a RPDC experimentará terríveis períodos alternados de grandes inundações e secas, que irão dizimar boa parte das terras agricultáveis.

A impossibilidade de adquirir petróleo no mercado comum fez a Coreia do Norte recuar para os tempos da tração animal, prejudicando a produção agrícola. Crédito: UN.

A combinação catastrófica de interesses hostis externos e grave situação econômica interna formarão a “tempestade perfeita”: o período dos anos 1990 até o início dos anos 2000 ficou conhecido como Árdua Marcha, um período de grandes dificuldades em todas as áreas. A fome foi algo real e vitimou pessoas na Coreia Socialista durante a Árdua Marcha e ela não foi uma mera obra do acaso, uma vez que os bloqueios econômicos aplicados pelos EUA e o impedimento do acesso da RPDC à economia mundial constituíram armas sociais, econômicas e psicológicas usadas pelos estadunidenses para corroer e desintegrar a ordem e existência do pequeno país socialista.

Sem poder comprar petróleo do restante do mundo, não há como mover os tratores e máquinas agrícolas. Sem tratores e máquinas, não há extensa produção agrícola, exigindo o uso arcaico de técnicas manuais que há décadas não eram praticadas. Logo, a fome foi uma consequência de diversos fatores combinados e instalou-se uma dura crise alimentícia com milhares de perdas humanas.

A fome aqui deve ser encarada como uma grande tragédia causada não por deliberada vontade de uma suposta maléfica ditadura dinástica coreana, mas sim como uma política pensada nos gabinetes governamentais e nos quarteis de guerra do Ocidente para arrasar completamente uma nação e condená-la à morte só porque ela não atende aos seus interesses. Da mesma maneira, a situação complicada desse período – abertamente admitida e narrada pelos próprios norte-coreanos – não deve ser alvo de piadas e sarcasmos como muitos veículos midiáticos ou pessoas gostam de fazer.

Um desgaste no setor agrícola – ainda mais com esse tipo de proporção – prolonga-se por várias colheitas e tem um grau de recuperação muito lento. A Coreia Socialista, mesmo assim, por volta do início dos anos 2000, já havia superado parte do grave problema da Árdua Marcha graças à intensa mobilização ideológica e laboral interna, fruto do trabalho político de Kim Jong Il, e também pelo fato de não ter ocorrido uma segunda guerra na Coreia – uma possibilidade real e muito inflamada pelos EUA e Coreia do Sul, porém rechaçada pela RPDC com o desenvolvimento militar baseado na política Songun.

Mesmo com níveis crescentes de produção alimentar desde o fim do período agudo da crise, a RPDC ainda passou muitos anos com problemas relacionados à agricultura, que muitas vezes exigiram racionamento de comida e redistribuição interna rigorosa para garantir ao menos o mínimo de abastecimento. Talvez os mais recentes anos na história da RPDC tenham sido os mais amenos para a produção agrícola do país, que recuperou um bom ritmo graças ao emprego de novas técnicas de cultivo aliadas ao desenvolvimento de uma indústria química nacional de fertilizantes. Mas isso não exclui problemas de percurso.

Atualidade

As notícias recentes dão conta de que cada vez mais fábricas e complexos agrícolas têm sido inaugurados, de forma a contornar as já conhecidas restrições e sanções comerciais. Também tem-se acompanhado a construção de estufas e pomares em grande escala e complexos pecuários, além de uma expansão da indústria pesqueira – tudo com o objetivo de diversificar a dieta dos habitantes do país e melhorar a qualidade nutricional. Dessa forma, a crise alimentar outrora existente é hoje praticamente inexistente.

O Comitê de Coordenação Nacional do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Coreia do Norte (NCC) informou à comunidade internacional que a RPDC produziu uma colheita recorde no último ano (2019) de mais de 6,6 milhões de toneladas, revertendo a tendência de declínio desde 2016. Em um artigo publicado na Revista Opera, usando números fornecidos pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), é possível comprovar que a Coreia Popular é praticamente autossuficiente em sua totalidade, mas não sem problemas:

“De acordo com a FAO/PMA, enquanto a produção total norte-coreana é de 5,03 milhões de toneladas, a demanda total do país é de 5,37 milhões de toneladas. A Coreia do Norte enfrenta uma escassez de safras, portanto, de 340 mil toneladas. Expresso em termos de autossuficiência em grãos, sua relação produção/demanda é de 93,67%”.

Para grau de comparação, o mesmo artigo menciona que o nível de autossuficiência da vizinha Coreia do Sul é de apenas 23,1%. Apesar dessas indicações positivas, não se desconhece nem se nega que a Coreia do Norte requer apoio contínuo da comunidade internacional no que diz respeito a déficits de produção e à desnutrição de parcela da população – em torno de 45%, segundo a FAO. O alarmante número, porém, deve ser alvo de uma análise e contextualização mais criteriosa antes de chegar-se a uma conclusão precipitada.

Inicialmente, quando se fala na atual possibilidade de “fome” na Coreia Popular, lidamos com dois conceitos – subnutrição e desnutrição – que necessitam ser separados e elencados. Subnutrição é o consumo insuficiente de nutrientes, já a desnutrição é uma condição em que ocorrem problemas de saúde devido a falta ou excesso de nutrientes.

Então aqui, em termos gerais, é preciso entender a desnutrição apontada pela FAO é interpretada como deficiência básica de calorias, proteínas, vitaminas, minerais e não fome propriamente dita. Um exemplo é a falta de vitamina C na mesa da população coreana, causada pelo fato do país não produzir e nem conseguir importar tipos alimentícios ricos nessa vitamina. Tal deficiência não significa grave situação para 45% dos norte-coreanos, uma vez que qualquer número levemente abaixo do mínimo calculado de nutrientes necessários, mesmo que seja muito pouco, já é taxado como tal. O artigo citado também traz outros dados que deixam margem para contestar o número (ou o conceito) de 45% de desnutrição fornecido pela FAO:

“Segundo o relatório especial acima mencionado da FAO/PMA, o consumo médio anual per capita de alimentos na Coreia do Norte é de 174 kg. A projeção da FAO para o consumo global de alimentos per capita no período 2013/2014 foi de 151,7 kg. No caso da China, sua dieta nutricional nacional, divulgada em janeiro de 2014, sugere um consumo anual de alimentos per capita de 135 kg. E no caso da Coreia do Sul, segundo o NSO, sua taxa de consumo per capita de alimentos em 2011 foi de 126,7 kg. A média diária per capita é de 476 g no Norte e de 346 g no sul”.

Tais números, portanto, mostram que se come mais no Norte do que no Sul e até mesmo na vizinha China. Mais uma vez, faz-se necessário recordar que desafios alimentícios na RPDC são agravados por desastres relacionados ao clima e também pelo já mencionado bloqueio econômico sofrido pela nação, que a isola de fora para dentro. O próprio Programa Mundial de Alimentos (World Food Programme – WFP) diz:

“A República Popular Democrática da Coreia (RPDC) continua a enfrentar uma ampla gama de desafios de segurança alimentar e nutricional , que se somam à prolongada situação humanitária no país. A agricultura anualmente deixa de atender às necessidades de alimentos, devido à escassez de terras aráveis, falta de acesso a equipamentos agrícolas modernos e fertilizantes e desastres naturais recorrentes.

Secas, inundações, tufões e ondas de calor continuam a afetar o país todos os anos, causando lixiviação do solo, erosão, deslizamentos de terra e danos às colheitas e infraestrutura. Mesmo desastres menores podem reduzir significativamente a produção agrícola e a disponibilidade de alimentos (…)”

Longe de querer condenar sua própria população à fome, não tentar resolver o problema ou não “contar a verdade” para o resto do mundo, a RPDC é o principal parceiro de cooperação para a implementação das políticas auxiliares do Programa Mundial de Alimentos (PMA). Segundo relatórios do Programa, o já referido Comitê de Coordenação Nacional do Ministério das Relações Exteriores fornece pessoal nacional, ativos (como fábricas de transformação de alimentos, armazéns e escritórios) e serviços (transporte do porto para as fábricas e distribuição para instituições apoiadas pelo PMA). O apoio estimado do governo local na forma de logística e assistência técnica chega a 7 milhões de dólares por ano.

Uma curiosidade nada feliz, mas que prova que não há falta grave de alimentos na Coreia, é que desde o ano 2000, o número de pessoas com obesidade vem crescendo. O país também é um dos maiores produtores proporcionais de vegetais e frutas frescas do mundo e a principal produção nacional é de batata. Sobre os 340 mil toneladas de déficit de produção mencionados um pouco antes,

“A FAO/PMA afirma que a Coreia do Norte é capaz de compensar 300 mil toneladas de sua escassez por meio da importação comercial e, portanto, requer 40 mil toneladas de ajuda internacional”.

O país consegue importar quantidades limitadas de alimentos permitidos pelas sanções econômicas impostas pelos EUA, União Europeia, Japão, Coreia do Sul e Conselho de Segurança da ONU e as 40 mil toneladas de ajuda internacional configuram então uma minúscula fração do que a RPDC tem de déficit (que ela já resolve por conta própria comprando com o seu dinheiro do resto do mundo). Nota-se uma frequente tentativa de exagerar a ajuda internacional como meio de fazer parecer que a Coreia precisa desesperadamente de doações para viver – o que é, claramente, uma grande distorção.

Portanto, é possível ver que ao longo da história a RPDC prosperou em vários momentos ao socializar seus campos e aumentar a produção agrícola, ao mesmo tempo que logo depois enfrentou situações adversas causadas por agentes externos que fizeram a agricultura recuar, mas jamais desabar por completo. Mesmo com grandes desafios até hoje para garantir a completa segurança nutritiva do seu povo, a RPDC segue sendo um Estado socialista independente que se baseia em suas próprias forças e procura, criativamente, melhorar sua produção e defender-se das maquinações e ataques de grandes potências.

A Coreia Popular pode não ser um paraíso com excesso produtivo, mas está completamente longe da imagem irreal de um “país faminto e miserável governado por pessoas que abertamente usam a fome como política”. Na verdade, quem faz isso são justamente aqueles que usam o estigma triste da fome como artífice político de guerra. E um país que possui grande produção agrícola e que mesmo assim convive com milhões de famintos pelas suas ruas é uma nação muito conhecida por nós – o Brasil. Se estamos preocupados com os direitos humanos na RPDC e o fim definitivo da fome, temos que apoiar ativamente a derrubada das sanções econômicas desumanas que causam não apenas problemas na agricultura, como também na medicina e em áreas vitais da população daquele país.

Fonte: Texto originalmente publicado no Centro de Estudos da Política Sogun – Brasil
Link direto: https://cepsongunbr.com/2020/10/21/os-norte-coreanos-passam-fome/

Gabriel Tanan e Lucas Rubio, em cooperação com Alice Rodrigues
Pesquisadores, articulistas e membros do Centro de Estudos da Política Songun – Brasil

Referências bibliográficas

VISENTINI, Paulo G. Fagundes; PEREIRA, Analúcia Danilevicz; MELCHIONNA, Helena Hoppen: A revolução coreana – o desconhecido socialismo Zuche. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2017. Disponível para leitura aqui.

Dados consultados em Resolutions – United Nations Security Council. Disponível em: <https://www.un.org/securitycouncil/content/resolutions-0>. Acesso em setembro de 2020.

Norte ou Sul: Que Coreia enfrenta uma “crise alimentar”? Disponível em: <https://revistaopera.com.br/2019/07/11/norte-ou-sul-que-coreia-enfrenta-uma-crise-alimentar>. Acesso em outubro de 2020.

Dados diversos consultados nos sites da Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO) e do World Food Programme (WFP). Disponíveis em: <http://www.fao.org/countryprofiles/index/en/?iso3=PRK> e <https://www.wfp.org/countries/democratic-peoples-republic-korea>. Acessos em outubro de 2020.

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por Anders Noren

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