
A literatura japonesa encontra-se bastante disseminada no mercado editorial brasileiro. Muitos autores japoneses estão disponibilizados em livros físicos e ebooks. Haruki Murakami, Sayaka Murata, Kanae Minato, Kenzaburo Oe, todos autores vivos, são interessantes exemplos de como escritores deste país asiático, de diversas orientações, caíram no gosto do leitor brasileiro. Talvez, parece que a pergunta correta seria: quais autores japoneses encontram-se desconhecidos no Brasil? Existem casos, mas dois são emblemáticos.
Um deles é o de Takiji Kobayashi (1903-1933), autor marxista morto pela polícia política do período Taisho, nunca foi disponibilizado, embora tenha sido traduzido experimentalmente em pesquisas de pós-graduação da área de Estudos Japoneses no Brasil da Universidade de São Paulo (USP). Ele escreveu sobre as situações de exploração dos trabalhadores do recém formalizado sistema fabril no norte japonês. Sua obra mostra exploração, sangue, suor, lágrimas e decepção. Salvo melhor juízo, encontram-se contos e excertos seus por aí, mas nenhuma versão do famoso “Kanikôsen” publicado originalmente em 1929 .
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Já Ishikawa Tatsuzô (1905-1985), profundo crítico da experiência da imigração japonesa para o Brasil, é outro exemplo. Ishikawa fala claramente sobre como alguns dos migrantes foram enganados tanto pelas autoridades brasileiras, quanto pelas autoridades japonesas, e é uma voz contrária a imagem cristalizada da imigração como sucesso e superação. O livro chama-se “Sôbô” e sua tradução foi realizada por Monica Okamoto, Takao Namekata e Mária Tomimatsu em 2008. Contudo, ficamos a pensar: quais seriam outros casos de autores japoneses esquecidos? Quem são aqueles que trabalham (melhor seria dizer: lutam) pela divulgação de outras vozes e estilos literários do Japão no Brasil? Aí entra o interessante esforço de Felipe Medeiros.

Medeiros é formado em letras-literaturas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde obteve título de mestre em ciência da literatura e, atualmente, é doutorando. Tem grande interesse por idiomas, sendo proficiente em japonês e alemão. Atua como professor de literatura, tradutor, revisor e escreve ensaios e ficção, tendo dois livros publicados: “Sven” (2013), pela editora musAbsurda e “Hebefrenia” (2020), pela Urso.
Já trabalhou como tradutor junto à Urso no livro “Raposas: contos fantásticos orientais”, publicado em julho de 2020. Nessa conversa, ele apresenta o seu mais novo projeto: a tradução de “Shôjo Jigoku: Inferno das garotas” escrito por Yumeno Kyusaku, em 1936. O projeto conta com financiamento coletivo via plataforma Catarse (clique aqui para saber mais). Confira esta e outras iniciativas de Medeiros, em entrevista concedida para a Revista Intertelas e o Grupo de Pesquisa em Mídia e Cultura Asiática Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (MidiÁsia).

Vamos começar falando sobre a sua trajetória e o envolvimento com esse campo da tradução da literatura japonesa
Antes de tudo, é uma honra estar aqui. Eu moro em Petrópolis, serra carioca, desde meus 10 anos. Nasci em São Paulo. Eu ingressei em 2011 em letras-literaturas na UFRJ, onde percebi que amo idiomas, a começar pelo latim. Depois fui aprender alemão e russo como ouvinte em cursos na faculdade e depois o japonês no Kumon de Petrópolis, sendo ensinado por Shoko Kishi e Hiroko Mochizuki, duas professoras admiráveis que sempre me deram muita energia para continuar. Em dezembro de 2019, tomei coragem de fazer a prova de proficiência de japonês e recebi o certificado N2 (por mais que minhas professoras insistissem que eu deveria fazer o N1). Acredito que foi também graças a esse certificado que se abriu a porta de traduzir o livro de Kyûsaku.
Quando e por que nasceu o interesse em Yumeno Kyûsaku?
Nesse caso, devo meus agradecimentos à editora da Laboralivros, Lua Bueno Cyríaco. Estávamos conversando sobre uma possível coletânea de contos japoneses de suspense desde o século XVIII até hoje em dia, quando ela veio com outra opção, o livro de Yumeno Kyûsaku, um autor inédito, sobre o qual ela ouvira falar em suas pesquisas. Peguei para ler e foi conexão imediata. Raras vezes tinha visto um autor que manejasse a linguagem japonesa com tanta destreza, misturando vozes, criando sentidos imprevisíveis para o leitor, ainda que todos os contos do livro venham sempre de uma voz específica.
O primeiro conto é uma longa carta de um otorrinolaringologista; o segundo é uma série de cartas de uma mulher a outra; o terceiro inicia-se com 10 páginas (isso no word) de artigos de jornais e acaba com uma carta longa de uma menina. Sabe os momentos de pausa, suspensão, sobre os quais Hayao Miyazaki refere-se como ma (間)? Então, Yumeno Kyûsaku insere diversos momentos parecidos, dos quais surgem linhas e mais linhas de puro poema em prosa. Da mesma forma, consegue criar páginas de intenso suspense, deixando o leitor estarrecido. Essa união de aparentes opostos chama muito a minha atenção.
Qual a importância desse autor no conjunto da literatura japonesa?
Ele teve reconhecimento em vida, foi amigo de e escreveu sobre Edogawa Ranpo, que é muito mais conhecido no Ocidente. Da mesma forma, publicou em jornais com Unno Jûza (ou Jûzô), que, muito recentemente, foi traduzido para o português. Foi também amigo de Akutagawa Ryûnosuke e Osamu Dazai. Mas não penso que a obra de Kyûsaku limite-se àquilo que seus contemporâneos fizeram, que muitas vezes inserem-se, rapidamente, na ficção científica, no terror psicológico ou na literatura de adolescentes (com exceção, provavelmente, de Dazai).
Kyûsaku tinha esses traços e, ao mesmo tempo, os superava. Acredito que um dos motivos encontra-se no fato de também ter sido monge zen budista, de nome Goshin’in Gin’en Taidô-koji. Percebo em sua escrita uma violência que nunca é gratuita, nem intenta o simples choque no leitor. Tal como um monge não desvia os olhos das mazelas do mundo, mas as encara diretamente, para saber que existem e buscar um meio de realizar o bem para o maior número de seres, a escrita de Kyûsaku não se furta de momentos de grande violência, mas nunca pela perspectiva do(a) agressor(a), mas sim, no caso específico deste livro, pelo da vítima.
Assim, surge uma espécie de realismo que, acredito, envereda-se pelo contraditório e paradoxal. Tal realismo fez com que, até a década de 1960, sua obra fosse censurada no Japão por parecer obscena. E foi justamente essa a imagem que mais ficou dele: um autor obsceno, pornográfico, cujo último conto de “O inferno das mulheres”, “A mulher de Marte”, foi transposto para os cinemas, na década de 1970, por Kôji Shiraishi, como uma espécie de filme erótico, certamente influenciado pelo movimento dos anos 1960 conhecido por “filmes rosa” (pinku eiga).
O que espera que as pessoas sintam e vejam em suas mentes ao lerem a obra?
Eu não posso falar por ninguém. É difícil entender a recepção de uma obra, ainda mais de uma cultura distante e que tem fama de ser bizarra e esquisita. Não se trata aqui de um livro desses. Eu espero que as pessoas consigam perceber, nos contos, algo além desse estereótipo. Que as alegrias e tristezas dessas mulheres possam fazer pensar em que medida ainda as massacramos, como podemos encontrar um meio de abolir esse sofrimento desnecessário. O primeiro conto, por exemplo, é sobre uma mulher que, pela ótica do médico que escreve a carta, não só é compulsivamente mentirosa, como também é movida a isso por motivos sexuais.
O problema é que absolutamente nada do que ele conta em sua longa carta é o suficiente para corroborar tais afirmações. São achismos, envolvidos numa capa de certeza típica de homens. Isto remete, imediatamente, ao documentário “The punk singer”, de 2013, que conta a história de Kathleen Hanna. Numa das cenas finais, ela diz algo que imagino já estar nesse conto de Kyûsaku: “Eu só acho que há certa suposição de que quando um homem diz a verdade, é a verdade. E quando, como mulher, eu pego e digo a verdade, eu sinto como se tivesse que negociar a forma como eu vou ser percebida. Tipo, eu sinto que há sempre a suspeita em torno da verdade de uma mulher, a ideia de que você está exagerando”.
“Sôbô” de Tatsuzô Ishikawa é um desses livros quase desconhecidos e ao mesmo tempo importantíssimos. Podemos dizer que aconteceu algo parecido com o “Shôjo jigoku”? Se sim, o que teria feito a obra ficar eclipsada?
Agradeço pela pergunta, porque, ilustrativamente, não conhecia o autor e a obra. Devo admitir: quem dera Yumeno Kyûsaku fosse desconhecido como Ishikawa. Há tradução dele pela Ateliê (que o reeditou em 2019) e é relativamente fácil comprá-lo por um preço viável na Estante Virtual. Yumeno Kyûsaku foi quase esquecido de verdade. No total, eu e a editora encontramos apenas oito textos. Apenas em espanhol e francês há livros completos de Kyûsaku traduzidos (respectivamente, “El infierno de las chicas”, em 2014, e “Dogra Magra”, em 2003).
É difícil entender por que ele foi esquecido, ao mesmo tempo que se mantém um tanto conhecido dentro da cena artística japonesa, através de autores como Junji Itô, Shintarô Kago e Suehiro Maruo. Também os animês “Jigoku Shoujo” e “Bungou Stray Dogs” têm clara influência dele. Não saberia, então, apontar um motivo para que Osamu Dazai e Yukio Mishima sejam tão conhecidos entre nós, mas Kyûsaku não. É algo a ser pesquisado mesmo. Talvez por falta de interesse? Talvez porque não houve tempo ou interesse de traduzir? Talvez por uma imagem consolidada no erótico ou pornográfico, que, a meu ver, tem pouquíssimoa relação com sua obra efetiva? Não sei.
O livro está pronto, não é mesmo? Pretende algo mais com esse autor? Cursos, pesquisas? Qual é o projeto?
Se depender da editora Laboralivros, eu começaria agora mesmo a traduzir “Dogura Magura”. No entanto, meu doutorado é sobre um romance de 2006 de um autor dos EUA, Thomas Pynchon, totalmente diferente. Acho que se houver esse projeto, o livro demorará um pouco para sair, tanto por ser maior, quanto por meu tempo ser menor. Até o momento, o “algo mais” é terminar a revisão e entregar até junho um livro que, espero sinceramente, despertará uma nova onda de publicação de autores japoneses esquecidos no Brasil e outros países.
Dá um spoilerzinho aí para a galera. Sobre o que fala a história em linhas gerais?
Posso dizer ainda que são contos independentes, ligados apenas pelo fio do “inferno das garotas”. Aliás, aqui vale mencionar outra coisa. Eu entendo e respeito a cultura do spoiler, mas algo que me chamou muita atenção nesse livro é que, já em 1936, Kyûsaku tinha minado essa ideia. É que seus contos têm a mania de contar o final logo na primeira página. Por isso que não faria diferença eu dizer aqui como acaba, porque o próprio autor já explicitou. Ao contrário da poética de Edgar Allan Poe e de Edogawa Ranpo, não existe, em Kyûsaku, a ideia de criação de um ambiente que leve a um clímax que deve chocar o leitor.
O clímax está já no início: tal pessoa suicidou-se, tal pessoa assassinou aquela outra. Por isso que disse, anteriormente, ser pouco interessante, em minha opinião, ler este livro sob a ótica do puro terror psicológico, justamente porque a matéria desse terror está colocada já no ponto de partida. Então, a questão que fica para os leitores é: o que está sendo contado? Se o importante não está no fato de que alguém fez algo inusitado, então o que é importante nesses contos? Num livro que já se revela todo de cara, acho que é esse o spoiler possível.

O que Felipe Medeiros quer no futuro?
No futuro próximo, quero lançar esse livro do Kyûsaku, minha primeira tradução literária, e terminar de escrever minha tese de doutorado. Quero muito continuar refletindo sobre tradução, porque vocês verão que uma questão desse livro está na forma com que eu o traduzi. Não quis enganar o leitor de que ele está diante do original, como tanto almejam tradutores comerciais, assim como não quis dizer, como os irmãos Campos, que se trata de uma criação minha. O importante para mim foi apresentar ao leitor não só o texto, como o idioma japonês. Niponificar o português.
Pegar a sintaxe, as figuras de retórica, os sentidos do japonês e transpor para o português de alguma forma artística, que, obviamente, tenha sua motivação no texto de origem. Tentar transformar os verbos de respeito e modéstia, os honoríficos substantivos, em algo mais ou menos palpável em nosso idioma. Mas que fique claro: não quero criar normas, mas apenas experimentar com os idiomas, comigo mesmo e o leitor. Não facilitar totalmente o trabalho de construir uma ponte entre culturas, mas apresentar, também, a estranheza de outro mundo, de outro modo de compreender esse nosso mundo pela linguagem, ou melhor, pelas linguagens que o habitam. Espero ter sido capaz de fazer isso para os queridos leitores.
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