Lima Barreto: 140 anos de um legado ainda atual

O escritor Lima Barreto. Crédito: reprodução.

Afonso Henriques de Lima Barreto viveu na cidade do Rio de Janeiro em uma época de grandes transformações na história brasileira, especialmente na capital da República. Passou pela abolição da escravatura e pela fase de transição entre o término da monarquia e a proclamação e consolidação do regime republicano, na República Velha.

Sua data de nascimento e de morte são representativas, considerando a trajetória de um intelectual mulato, jornalista, cronista, escritor e funcionário público, que teve sua vida pessoal e profissional marcada pela mudança do regime político e pelas diferenças sociais de uma sociedade racista profundamente desigual e preconceituosa.  Lima Barreto nasceu em 13 de maio de 1881, exatamente sete anos antes do dia da libertação dos escravos e faleceu em primeiro de novembro de 1922, ano de realização da Semana de Arte Moderna. Esse movimento buscava a renovação e a libertação da produção artística do Brasil, criando uma arte essencialmente brasileira. Assim, observa-se a liberdade como um conceito determinante em sua vida, definindo sua personalidade e sua obra (COSTA, 2011).

Filho de um casal de mulatos pobres, com uma família numerosa, seu pai era tipógrafo, monarquista e liberal, amigo do ilustre Visconde de Ouro Preto, que seria padrinho e provedor dos estudos de Lima Barreto. Sua mãe, professora e neta de escrava alforriada, morreu quando ele ainda era jovem. Com a demissão de seu pai por motivos políticos no início da República sua família teve que mudar para o subúrbio (SANTANA, 2008).

Vislumbrando o bacharelado, o cronista estudou no Ginásio Nacional, ingressando, posteriormente, na Escola Politécnica, locais elitizados em que sofreu com o preconceito e o racismo. Autodidata em sua formação intelectual era frequentador assíduo da Biblioteca Nacional, dedicando-se aos estudos da Filosofia e à leitura dos clássicos europeus. Em 1902, teve de abandonar o curso para assumir o sustento da família, em razão da doença mental de seu pai. Aprovado em um cargo no Ministério da Guerra entrou para o serviço público, atividade compatível com o exercício das funções de jornalista e escritor (SANTANA, 2008).

Sua atuação como cronista iniciou quando ainda era estudante, colaborando com um dos principais jornais universitários e com um pequeno jornal de bairro. Em 1905, passou a escrever como profissional no jornal Correio da Manhã, redigindo uma série de artigos sobre a demolição do Morro do Castelo. Teve breve passagem em 1907 pela Revista Fon-Fon, da qual saiu por considerar uma “imprensa burguesa”, e fundou com alguns amigos a Revista Floreal, com curta duração. Em 1909, publicou seu primeiro romance intitulado “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, onde faz uma crítica ao dono do jornal e à imprensa como uma das engrenagens do poder. Com a publicação do livro é expulso do jornal, passando a ser desconsiderado e malvisto por todos os grandes periódicos da cidade (RESENDE, 2004).

A partir desse episódio passou a colaborar com a chamada “imprensa alternativa”, garantindo sua independência em relação aos poderosos e influentes da imprensa, tornando-se um intérprete e crítico contundente dos problemas e tensões sociais que a cidade enfrentava. Mesmo com suas crônicas sendo constantemente publicadas em periódicos importantes como a “Careta” e a “Revista Souza Cruz”, continuou a colaborar com as pequenas revistas que faziam oposição aos poderosos. Em 1911, no auge de sua carreira, publicou sua obra-prima “Triste fim de Policarpo Quaresma” no “Jornal do Comércio”, sob a forma de folhetim (RESENDE, 2004).

Nessa mesma época iniciou suas críticas ao processo de elitização e europeização da cidade e sua campanha contra as demolições, escrevendo para diversos periódicos. Passou a tecer críticas à escrita e ao pensamento dos conservadores, concentradas na figura de Coelho Neto. Em 1914, com o começo do primeiro conflito mundial, iniciou uma série de crônicas diárias no Correio da Noite, fazendo reflexões conceituais sobre pátria e nação, numa concepção mais ampla de união e solidariedade entre os homens. Dominando o inglês e o francês, acompanhava o cenário internacional, avaliando o surgimento do movimento comunista em 1917 e seus desdobramento no país (RESENDE, 2004).

Apesar de beber muito, continuou escrevendo, dedicando-se a observar a cidade em seus itinerários diários do subúrbio até a Avenida Central. Com a saúde fragilizada pela bebida, sofre de alucinações que o levam a duas internações em hospital psiquiátrico.  Aposentado por invalidez do serviço público, em 1918, sentiu-se mais livre para expressar suas opiniões publicamente. Assim, com publicações constantes em vários periódicos e pela sua capacidade muito particular de escrever, com humor, críticas contundentes, Barreto passou a ter a atenção da imprensa e de intelectuais críticos da República Velha (RESENDE 2004).

Considerando-se um literato, detentor de um currículo qualificado de publicações, apresenta sua candidatura à Academia Brasileira de Letras em três oportunidades, sem obter sucesso algum. Sua última tentativa, em 1921, pleiteava a cadeira vaga pela morte do também cronista João do Rio. Lima Barreto morre em 1922, deixando uma obra da maior relevância para a Literatura e para a História.

O cronista Lima Barreto 

O escritor faz de suas crônicas uma crítica contumaz e provocativa sobre as mazelas políticas e sociais da República Velha. Ele dirige-se às classes dominantes, mas representa a voz dos marginalizados, especialmente da população negra, segregada por uma sociedade racista e preconceituosa. O autor tem uma relação visceral com a cidade do Rio de Janeiro e com o seu cotidiano. É um observador permanente das cenas de rua, das trivialidades, dos encontros e desencontros de uma cidade repleta de contrastes sociais e em constante ebulição e confronto de interesses, de espaços e de pessoas.

No início do século XX, a então capital da República passa por um processo de remodelação e reordenação urbana, que sob o olhar do cronista é profundamente contraditório. De um lado busca a ordem, o progresso, a civilidade e a modernidade e baseia-se em princípios de liberdade colocados a serviço de uma elite letrada e burguesa; mas por outro, exclui, segrega, desqualifica e oprime as classes populares jogadas nos subúrbios e nas favelas.

Lima Barreto transita, convive e expressa em suas crônicas a representação desses dois lados, criticando e denunciando um projeto político que organiza e divide o espaço urbano por critérios de classe. Questiona esse ideal civilizatório que não consegue assimilar as diferenças e cria uma periferia afastada do convívio urbano, entendida como incapaz e desqualificada. Para o autor, as autoridades desconsideram a contribuição da população pobre para a construção da almejada modernidade e não promovem qualquer iniciativa que possibilite a sua integração e a melhoria das suas condições de vida.

Crédito: reprodução.

Sua crítica política, social e cultural, embora seja a representação da memória dos acontecimentos de uma época, apresenta-se atemporal, pela atualidade de suas opiniões e reflexões. Lima Barreto faz de suas crônicas não apenas um instrumento de militância política, capaz de contestar as instituições de poder e opor-se às vontades dos poderosos, mas de compreensão das problemáticas da cidade, das nuances, das mudanças e transformações percebidas nas vivências e convivências diárias. O escritor expressa em sua obra dois espaços e realidades sociais distintas, que se tornam atores em meio ao cenário de modernização da cidade do Rio de Janeiro.

Sobre a crônica “A Biblioteca”

Considerando esse cenário de crítica e representação histórica, escolheu-se apresentar alguns enfoques sobre o conteúdo da crônica “A Biblioteca” de Lima Barreto, publicada no jornal Correio da Noite em 13 de janeiro de 1915. No título do texto já se evidencia a temática escolhida pelo autor. O cronista trata como núcleo de sua abordagem a mudança da sede da Biblioteca Nacional para a Avenida Central, ressaltando o contexto da reforma urbana efetuada na cidade do Rio de Janeiro, no início da chamada República Velha.

O autor faz uma crítica política, social e cultural, satirizando os reflexos da remodelação da capital, cujo projeto conduzido pelas elites dirigentes atendia apenas aos interesses e expectativas da classe dominante, excluindo e segregando as camadas pobres e analfabetas, especialmente a majoritária população negra. No primeiro parágrafo, ironiza a atuação da diretoria da Biblioteca, enfatizando seu cuidado com a publicação mensal da estatística sobre a frequência dos leitores e o tipo de obras consultadas.

Biblioteca Nacional, Rio, 1910. Crédito: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.html

Diante de um cenário excludente, observa a preocupação e o trabalho dos dirigentes voltados para uma minoria letrada. A seguir, assume uma situação de autoexclusão, expressando que pouco frequenta a instituição, sobretudo após a mudança da sede para a Avenida Central. Critica o novo espaço e ambiente urbano que concentra prédios imponentes como um palácio americano, inspirados em modelos estrangeiros, que servem como representação dos princípios republicanos de ordem, progresso e civilidade.

Quando fala sobre sua alma de bandido tímido, contrasta sua posição de homem do povo, estarrecido de admiração diante da suntuosidade da construção que considera desnecessária frente às prementes necessidades educacionais da população. No parágrafo seguinte, utilizando típicas expressões da antiga sociedade romana como patrício, cliente, sestércios e espórtula, faz uma alusão sobre a constituição e organização da república brasileira nos moldes da antiga república romana: oligárquica, autoritária, hierarquizada, excludente, violenta, golpista, implantada de cima para baixo.

Posteriormente discorda das curiosas concepções do Estado, que privilegiam a imagem, a estética, o estilo arquitetônico grandioso e intimidador da sede da Biblioteca, em detrimento de sua finalidade educacional e cultural pública, que pressupõe disponibilidade e acesso para todos. Novamente usando uma linguagem figurada, reporta-se a locais e ricas indumentárias da elite francesa para descrever os luxuosos ambientes da nova Biblioteca, inspirados no modelo parisiense. Ressalta a situação de constrangimento que estão submetidos os pobres e trabalhadores no caso de acesso à instituição. De maneira saudosista e irônica retrata a velha biblioteca: melhor, mais acessível, mais acolhedor e sem a empáfia da atual. Reafirma seu apreço pela instituição, justificando seu distanciamento com a leitura constante de suas notícias.

Mais ao final do texto trata, de maneira sarcástica e figurada, as informações sobre a estatística de leitores do dia. De forma crítica e provocativa, o autor comenta sobre o número de leitores e as obras consultadas. Questiona e ironiza o desinteresse dos leitores pelas obras nacionais e a preferência da maioria por temáticas não acadêmicas, demonstrando uma mentalidade provinciana e inculta desses frequentadores.

Comenta a procura por obras em holandês, fazendo uma associação com a situação dos estrangeiros, principalmente os imigrantes, em razão das precárias e inadequadas condições de tratamento que recebiam das classes dirigentes. Encerra a crônica criticando a falta de capacitação e qualificação dos professores, em um momento em que o sistema educacional passava por mudanças e adequações. Associa a falta de interesse dos educadores nas obras em grego, por tratar-se de uma língua culta, base do conhecimento e da civilização.

Giulia Faco (pseudônimo da autora)
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas (PUCRS), com especialização em Comunicação Social, Administração e Relações Públicas (PUCRS). Pesquisadora independente em história e cultura

 Referências

BARRETO, Lima. A Biblioteca. In: BARRETO, Lima. Toda Crônica. Rio de Janeiro: Agir, 2004, p. 337-339.

COSTA, Anderson Borges. Lima Barreto: Um Vadio das Letras Brasileiras. São Paulo: Revista Lumen Et Virtus, n 4, VOL II, maio de 2011.

RESENDE, Beatriz. Sonhos e mágoas de um povo. In: BARRETO, Lima. Toda Crônica. Rio de Janeiro: Agir 2004 p.9-23.

SANT’ANA, Cristina Nunes de. O Cronista Político Afonso Henrique de Lima Barreto. Niterói: Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense-UFF,2008.

 

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por Anders Noren

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