O Vento e o Leão ou a infância do Imperialismo

Crédito: IMDb.

Esse texto é uma singela homenagem ao professor Luiz Roberto Lopez que me apresentou o filme e o utilizava com entusiasmo ao abordar o tema do imperialismo em aula.

Um dia tranquilo no belo litoral marroquino é interrompido pela passagem de uma cavalaria. Os gritos e a presença de uma bandeira indicam que os cavaleiros não estão em um simples passeio. Em seguida, visualizamos a cidade de Tanger. O ano indicado é 1904. Os cavaleiros adentram nas vielas estreitas causando muita confusão e apreensão na população. Seu objetivo é uma residência luxuosa, onde habitam cidadãos dos EUA e o sequestro de Eden Pedecaris e seus filhos William e Jennifer. O que se desenvolverá será uma das mais inquietantes e interessantes reflexões sobre a formação do Imperialismo dos EUA através do cinema e este breve texto busca explorar alguns destes fatores.

O filme “O Vento e o Leão” (The Wind and the Lion, 1975), do cineasta John Milius, não é uma das obras mais comentadas de sua carreira, fato no mínimo curioso para um filme que tem no elenco Sean Connery, Candice Bergen e John Huston. Sua trajetória reúne onze películas realizadas entre 1966 e 1997. Milius é bastante conhecido pela adaptação das HQs “Conan, o Bárbaro”, além de uma versão sobre o famoso gângster “Dillinger”. Analisando suas obras, percebe-se que a guerra é fator chave para a formação da nação estadunidense. E, é através de um breve episódio ocorrido no Marrocos, em 1904, que podemos perceber a formação do Imperialismo dos EUA, as disputas políticas sobre essa atuação e quais seus impactos para os dias atuais.

A construção narrativa da película confere a tônica da abordagem sobre o Imperialismo. A história é apresentada através de elipses alternando as ações no Marrocos e nos EUA. Fundamental é o contraponto entre os adversários: o sultão Raisuli e o presidente Theodore Roosevelt. Aproximadamente, podemos dizer que Milius atua como o historiador grego Heródoto, que na sua obra máxima buscou narrar os fatos de gregos e dos bárbaros para que ambos não caíssem no esquecimento.

A grande jogada de Milius é realizar analogias alternando comportamentos, ações e pensamentos tomados como bárbaros/civilizados para ambos os personagens e cenários. Exemplos são os esportes de cavalaria, a caça e a prática de lutas. No início do século XX, o Marrocos era disputado pelas potências europeias, que se lançaram com afinco no continente africano anteriormente. Já os EUA tiveram anos conturbados com o assassinato do presidente William McKinley. Roosevelt conseguiu reeleger-se e afirmou o corolário da Doutrina Monroe, apoiando intervenções externas e lançando o Big Stick como política externa.

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A defesa de cidadãos (e da propriedade) estadunidenses em qualquer parte do mundo é destacada quando Roosevelt, depois de posar para uma foto com a mão sobre o globo, decide intervir no Marrocos para resgatar a família sequestrada. Seu secretário o adverte: “Isso é ilegal”. Ao que o presidente responde: “Por que estragar a beleza da coisa com legalidades?”. A postura agressiva é reiterada quando o cônsul ameaça duas vezes os marroquinos “O senhor já ouviu falar do Big Stick?”.

Claramente um recurso metafórico para sintetizar e resumir a forma de atuação do início do século XX (interessante comparar essa cena com as posturas, falas de Trump na atualidade). As disputas entre as potências da época são ressaltadas na película pela presença dos europeus (franceses, alemães e espanhóis). Em outra cena, ao ser ameaçado pelo estadunidense, o Paxá ironiza: “Já fui ameaçado por especialistas”. Aqui, lembramos a asserção de Samir Amin ao ressaltar que até a Segunda Guerra Mundial podíamos falar de Imperialismos como elementos constituintes do sistema capitalista.

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Perry Anderson lembra que havia uma disputa entre as visões de excepcionalidade e universalismo e, que foi justamente esta disputa o motor da pré-história do império sempre desenvolvido de forma coetânea com a nação. Foi o episódio de Pearl Harbor que “unificou” esses dois “nacionalismos”, cristalizando um projeto constituído de cima para moldar o mundo à imagem dos EUA e torná-lo um lugar seguro para o capitalismo reinar. Seguindo essa linha de argumentação, podemos conectar a reflexão de Ellen Wood, que afirma que a política externa após a Segunda Guerra, em sua essência, foi pautada pela visão imperial.

Mas, trata-se de um Imperialismo que se configurou de forma diferente das versões anteriores, já que opera essencialmente por meios econômicos de coerção, atuando como supervisor de um sistema global de Estados e do livre trânsito do capital. Todo o aparato militar que surgiu daí carrega o paradoxo de que não foi criado para conquistar territórios, ao mesmo tempo em que a ausência de um objetivo claro e finito exige uma ação militar sem fim.  

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Outro fator importante neste contexto foi a presença dos EUA na América Central com a construção do Canal do Panamá. Numa cena em que discursa num vagão de trem, durante sua campanha para presidente, Roosevelt afirma que ser for preciso construirá o canal com as próprias mãos. Mais tarde, quando comemora o aniversário com a família ele pede para cortar o bolo, que tem um mapa do continente americano desenhado na sua cobertura. Roosevelt corta o bolo justamente sobre o Panamá, numa alusão ao poder dos EUA que se configurava para a região.

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Nessa alternância de personagens, Raisuli é mostrado como um devoto do islã capaz de decepar cabeças de traidores, mas também como um estrategista político e militar. Ele joga xadrez com sua prisioneira e, metaforicamente, com seus adversários. Seu ato de sequestrar a família estadunidense tem a intenção de provocar o Sultão, desvelar sua submissão aos europeus e insuflar uma revolta pelas tribos. Sua visão geopolítica reverbera com maestria o contexto de produção do filme, após a crise do petróleo e a ascensão da importância do Oriente Médio e do Islã no mundo:

“Não sou um bárbaro. Sou um douto e um líder para o meu povo. […] Sou tratado assim porque faço guerra aos europeus”. Vê o homem junto ao poço? A forma como tira a água? Quando um balde fica vazio, enche-se o outro. Com o mundo, passa-se o mesmo. De momento, estão repletos de poder. Mas esbanjam-no, desperdiçando-o…e o Islã está a assimilar as gotas que caem do vosso balde. 

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Entretanto, se o embate entre dois grandes oponentes aparenta equilíbrio há um fator apresentado que demarca uma diferença substancial. A industrialização e a maquinaria de guerra dos europeus transformaram as formas de combate para guerreiros como Raisuli. Nas palavras do personagem: “Os europeus têm armas que disparam muitas vezes e governam a Terra. Não há nisso honra alguma. Nada fica decidido com essa atitude”. A impessoalidade de Roosevelt que demanda suas ordens e somente encena duelos como passatempo é contraposta a coragem do berbere que parte com a espada em punho para resgatar sua refém diante de uma fuga inesperada.

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A intervenção militar realizada no Marrocos pode ser vista como uma metáfora dual. Por um lado, mostra o caráter embrionário do Imperialismo. Por outro, carrega um tom de deboche pela precariedade das tropas se comparadas ao poder militar dos dias atuais. Realizado na metade da década de 1970, “O Vento e o Leão” sinalizava os desafios do poder imperialista e o perigo de ser comandado pelo descomedimento. Contudo, a opção do presidente era clara e a síntese do império é dada por ele, que rechaça a águia como símbolo americano e pede a construção da estátua de um grizzly, o urso pardo, verdadeiro símbolo da nação para ele. Vale citar as palavras do personagem: 

“Estamos habituados a animais que se assustam perante homens armados. O grizzly americano não teme coisa alguma… nem homens, nem armas, nem a morte. O grizzly americano é o símbolo do caráter americano. Na força, na inteligência e na ferocidade. Um pouco cego e descuidado, por vezes… mas corajoso, sem sombra de dúvida. E outra característica a acrescentar às anteriores: a solidão. O urso leva uma vida solitária… indomável, inconquistável, mas sempre sozinho. Não tem verdadeiros aliados, inimigos apenas, mas nenhum como ele. O mundo nunca gostou de nós. Pode respeitar-nos… podem até vir a temer-nos, mas nunca gostarão de nós. Pois somos demasiado audazes… e um pouco cegos e descuidados por vezes. O grizzly americano encarna o espírito da América. Ele devia ser o nosso símbolo e não aquela ridícula águia. Mais não é que um abutre apelintrado”.

Após ver seu plano naufragar ante a traição dos europeus e ser salvo com a ajuda da estadunidense e o apoio dos soldados, Raisuli escreve para Roosevelt. Sozinho, junto ao seu urso o presidente lê as palavras do seu oponente:

“O senhor é como o vento e eu como o leão. O senhor forma a tempestade. As areias ferem-me os olhos e o chão agita-se. Rujo em desafio, mas o senhor não me ouve. Mas há uma diferença entre nós. Eu, como o leão, devo permanecer no meu lugar. Enquanto o senhor, como o vento, nunca saberá qual é o seu”.

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Diante disso indagamos: quantos leões existem nos dias atuais e qual o lugar do império estadunidense no mundo?

Título: O Vento e o Leão
País: Estados Unidos
Direção:  John Milius
Roteirista:  John Milius
Elenco: Sean Connery, Candice Bergen, Brian Keith
Duração: 1h59min
Lançamento: 26 de junho de 1975 (Reino Unido)
Idioma: inglês
Legendas: português

Livros consultados para este artigo:

AMIN, Samir. O imperialismo, o passado e presente. Tempo, vol 9, n 18, 2005.

ANDERSON, Perry. A política externa norte-americana e seus teóricos. São Paulo: Boitempo, 2015.

FURTADO, Filipe, John Milius, o herói americano e o campo de batalha. Revista Contracampo, n 49. 

WOOD, Ellen. O império do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.

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por Anders Noren

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