“O processo” e a palavra golpe, fruto da Lava Jato

Crédito: divulgação/ YouTube

Uma série de reportagens do jornal The Intercept Brasil estão revelando trocas de mensagens entre protagonistas da Lava Jato que vão ao encontro de suspeitas de muita gente, desde que a operação policial, jurídica e midiática começou, cinco anos atrás: a de que o objetivo principal pouco ou nada tem a ver com combate a corrupção. Que, por trás do discurso moralista, o que se desvendava era um esforço em destruir qualquer iniciativa de governo popular.

Os incontáveis capítulos da Lava Jato foram decisivos para criar no país um ambiente que legitimou o golpe de 2016 – o impeachment que tirou do cargo a presidenta Dilma Rousseff, sem que ela tenha cometido crime de responsabilidade (única condição em que, segundo a Constituição, cabe o impedimento). O desenrolar desse processo de destituição de Dilma foi magistralmente registrado para história pela cineasta Maria Augusta Ramos, no documentário que roteirizou e dirigiu, e lançou em 2018 – precisamente batizado de “O processo”.

Dilma Rousseff, em “O processo” (2018), de Maria Augusta Ramos. Crédito: El País.

Em setembro do ano passado, este articulista apresentou no VII Seminário Cinema Nacional em Perspectiva, promovido pela Universidade Estadual do Paraná (Unespar), uma análise sobre como a narrativa e a estética do documentário explicitavam o golpismo em curso, e sem que tenha sido necessário pronunciar a palavra “golpe”. Tratou-se de uma análise dialógica do discurso, a partir, portanto, da concepção de linguagem dos estudos do Círculo de Bakhtin (grupo de intelectuais que se reunia regularmente entre as décadas de 1910 e 1920, e que tinha o filósofo da linguagem Mikail Bakhtin como nome de maior expressão).

Para tanto, a obra audiovisual em seu todo foi considerada como um enunciado multissemiótico – ou seja, um discurso construído a partir de múltiplas semioses, com especificidades de um documentário. As relações dialógicas entre o que o documentário dizia e o que fora dele se disse (e dizia) sobre o assunto; a parte verbal (o que se materializa) e a parte não verbal (seu contexto, a valoração dada pelos falantes sobre o que se diz) foram elementos apresentados na análise.

Maria Augusta Ramos, diretora de ‘O processo’ Crédito: Hannibal Hanschke / Reuters/Globo

Nas considerações finais, foi apontado que “O processo” pode ser incluído dentro da categoria “cinema militante”, definida por Jean Claude Bernadet como um circuito de produção fora do sistema industrial, em que uma obra não é mera mercadoria; pela temática de engajamento político e social, e por serem fruto da atuação de movimentos. A pesquisa ressalva que o documentário de Maria Augusta Ramos não é obra de nenhuma organização específica, “mas é fruto de todo um movimento, constituído por incontáveis atores sociais, que durante os trâmites que culminaram com a deposição da presidenta Dilma Rousseff foram às ruas, agenciaram redes sociais digitais, tentaram as mais diversas formas de manifestação para denunciar o golpe de que se tratava aquele impeachment. O documentário de Maria Augusta Ramos parece emergir dessa mobilização ampla, plural, suprapartidária, que encontrou eco em foros internacionais”.

Cena de “O processo” (2018), de Maria Augusta Ramos. Crédito: Folha – Uol.

Não confundir cinema militante com cinema panfletário. A retórica político-partidária passa longe de “O processo”. A militância do documentário não é a favor de um partido, um grupo político. É acima de tudo em defesa da realidade factual. Com a narrativa e a estética de uma obra de arte, como se propõe uma produção audiovisual cinematográfica. Estão ainda nas considerações finais da análise as seguintes constatações:

“O conceito de que aquele processo constituía-se em um golpe foi construindo-se pela estrutura narrativa do documentário: a linearidade cronológica, as vozes reenquadradas e ressignificadas; os flagras que deram nova entonação aos discursos multissemióticos, diferente da entonação reverberada pelos meios de comunicação hegemônicos. Assistir a ‘O processo’ é revistar os episódios, reais, com outro olhar. O olhar cinematográfico da narradora.”

Crédito: guilhermekroll.com

Duas opções de estilo de linguagem cinematográfica se sobressaem também. Uma delas a ausência de entrevistas, comuns em documentários. “É uma narrativa de observação, de reprodução de fatos já relatados, porém sob o olhar específico da documentarista”, frisa a análise, para em seguida abordar a outra opção: a não identificação dos personagens, por caracteres na tela. Só os que acompanharam os desdobramentos do impeachment sabem quem é cada uma das pessoas.

Tais opções dão ao documentário um aspecto ficcional, considera a pesquisa. “É como se, ao seguir por esse caminho, a documentarista lograsse reproduzir com maior fidelidade os fatos. Afinal, a surrealidade daqueles episódios e o enredo kafkaniano daqueles fatos teriam de ser enunciados assim: como uma novela, uma obra de ficção.”

O trabalho na íntegra pode ser lido neste link: https://docs.wixstatic.com/ugd/7d3881_536448b635bb46d88c6e88872713f605.pdf (página 102)

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por Anders Noren

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