
Em virtude da comemoração do 75º aniversário da vitória soviética na Batalha de Berlim e a derrota do Nazismo, o Ministério de Defesa da Federação Russa, que nos últimos anos tem se mobilizado na salvaguarda da memória da Grande Guerra Patriótica, liberou uma série de documentos sobre este importante momento da Segunda Guerra Mundial. Ordens de batalha, relatórios de abastecimento, assim como comendas de premiações por bravura localizam-se nestas fontes históricas inéditas, disponibilizadas no site Финальный Аккорд Великой Войны (Em portugês Documentos finais da Grande Guerra). Documentos localizados hoje no Arquivo Central de Documentos do Exército, sediado em Moscou.
A Batalha de Berlim, um dos momentos finais da Segunda Guerra Mundial, bem como um episódio de contínuo baixo destaque no ocidente por motivos ideológicos e políticos, não deixa de ser um símbolo do poderio soviético no combate pela soberania e autodeterminação dos povos. Hitler, ’’embebedado’’ pelo sangue derramado no caminho do estabelecimento de sua ordem da ’’raça superior’’, jamais imaginou que os soviéticos venceriam a outrora toda poderosa e dita’’profissional’’ Wehrmacht, chegando mesmo a pendurar a bandeira sob o Reichstag em um dos mais simbólicos atos políticos do século XX.
O revisionismo histórico por parte da atual produção historiográfica, e que atinge os meios comuns de telecomunicação no ocidente, tem levado por isso a uma série de embates em defesa da memória e da concretude histórica representada pela Segunda Guerra Mundial, em especial o papel da União Soviética, mas que também atinge outros atores, como o papel das guerrilhas Partizan nos países ocupados pelo eixo, e mesmo de países como Brasil e China, cujo papel sempre foi ’’diminuído’’ dentro da coalizão anti-hitleriana, apesar de suas relevantes atuações para a derrota do eixo. Tais revisões afetam sobretudo a imagem da Wehrmacht na guerra, que a despeito de representar interesses expansionistas e criminosos da Alemanha nazista, é tratada como um exército profissional que ’’obedecia ordens’’, o que obviamente retoma os debates existentes no Tribunal de Nuremberg.
Isso se tornou ainda mais comum após as recentes e crescentes acusações de crimes cometidos pelo Exército Vermelho na Alemanha, cujas bases para tal hipótese não existem, onde possuem como fonte única, portais midiáticos de época e antigos membros leais a Hitler, responsáveis por difundir muitas dessas histórias no período final da guerra. Na Batalha de Berlim, as ’’hordas asiáticas’’- título de boa parte das campanhas difamatórias- tem não apenas se tornado uma frente de batalha que busca construir uma memória negativa dos soviéticos na libertação da Alemanha, como em toda a guerra. Uma memória inclusive racista.
Toda esta situação tem levado os russos a desenvolverem ao longo das últimas três décadas uma intensificação de sua campanha pela salvaguarda da memória da guerra. As frentes dessa verdadeira ’’batalha pela memória’’ vem principalmente do povo comum que se organiza todos os anos no dia 9 de maio para relembrar e discutir os atos heroicos de seus veteranos de guerra na luta por sua existência.
O governo russo, hoje orientado por uma ideologia diferente, mas que reconhece a importância da sólida união dos povos da União Soviética para a vitória, busca impulsionar essa política de memória a nível Estatal, em especial em razão da atual crise existente na ordem mundial, onde a autodeterminação dos povos e a soberania são cada vez menos respeitados. O fascismo, cuja referência segue as violações citadas, também marcado pelo racismo e o anticomunismo, tem difundido-se.
A liberação de arquivos do período corresponde a uma destas frentes, onde se evidenciam não apenas ordens dos generais soviéticos ou relatórios, mas também os atos heroicos, o papel do Exército Vermelho para o restabelecimento da vida comum, bem como documentos históricos que atestam a real capacidade combativa e profissional dos soviéticos, muitas vezes diminuídas ou desvalorizadas. Alguns destes casos é possível ver em meio aos documentos recentemente liberados sobre a Batalha de Berlim.

Um deles, é a copia do discurso de instrução de cessar fogo do general responsável pela defesa da Berlim, Helmuth Weidling, enviada ao Exército Vermelho em 2 de maio de 1945. O general Weidling, havia recentemente assumido o comando da defesa da capital alemã- seu antigo superior, o general Hans Krebs havia tirado a própria vida-, e ao proclamar a rendição buscou por fim a um conflito, que ele mesmo descreve como sem sentido, visto que todos os líderes foram-se, e ele, assim como os berlinenses, foram deixados a sós. O cessar fogo concretizou a liberação de Berlim, declarada oficialmente pelo Exército Vermelho no mesmo dia com a consecução das negociações de cessar fogo.
Outro episódio de caráter simbólico desta batalha foi a tomada do Reichstag (Parlamento do Reich), onde se destaca a atuação do sargento Ilia Yakovlevitch Siyanov, um comandante do 756º Regimento de Fuzileiros. Este regimento, adentrou no edifício central da política alemã às 18 horas e 30 minutos, do dia 30 abril, convertendo-se na primeira unidade militar soviética que conseguiu o feito durante a batalha. Uma realização que valeu a premiação de Herói da União Soviética.


Esta iniciativa do sargento Siyanov resultou na prisão de 300 alemães e morte de cerca de 150, além de ter cumprido a importante missão de tomar o Reichstag. A exemplo deste ato de heroísmo, outros realizados na Batalha de Berlim estão igualmente publicados junto com as respectivas premiações neste site que conta ainda com fotografias da cidade naqueles dias.
Um importante aspecto a se lembrar, e ressaltar sobre a Batalha de Berlim, que a despeito das acusações feitas ao Exército Vermelho de crimes, como uma série de estupros, ou fuzilamentos da população em massa, algo constantemente difundido nas ultimas décadas na literatura e cinematografia ocidentais, a solidariedade e cooperação é o que marcam a fase posterior da batalha. Entre estes documentos históricos também se encontram instruções sobre a relação que deveria se dar entre os membros do Exército Vermelho e combatentes capturados, bem como a população local.
Na carta reproduzida abaixo, enviada do Alto Comando Soviético, existiam instruções para a construção de hospitais de campanha na cidade em virtude da batalha. Em 7 de abril, o Estado Maior da 1º Frente Bielorrussa emitiu um decreto sobre assistência médica aos prisioneiros alemães, assim como a população civil que sofria de infecções e disenteria. Neste período, foram erguidos 3 hospitais com uma capacidade de 5 mil pacientes em cada.


Em outros documentos, é possível encontrar a assistência material dada à população de Berlim, até então grande refém das consequências da aventura nazista. A fome e o desabastecimento de uma das cidades mais populosas da Europa durou muito pouco, pois desde cedo os soviéticos trabalharam para manter aproximadamente 3 milhões de pessoas alimentadas.
Segundo números fornecidos pelo historiador soviético A. Grechko, foram dados pelos soviéticos aos berlinenses cerca de 105 mil toneladas de grãos, 18 de carne, 4.500 de óleo, 6 mil de açúcar, 50 mil de batata (Para racionar em um período de 5 meses), 4 mil de sal e 350 de café (Para racionar em um período de um mês). Crianças de até 12 anos recebiam diariamente 200 gramas de leite, assim como os trabalhadores de acordo com sua categoria recebiam diariamente de 500 à 600 gramas de pão, 60 à 80 de cereais e macarrão, 65 à 100 de carne, 15 à 30 de óleo, 20 à 25 de açúcar.

Importante lembrar que este suporte dado à população de Berlim ocorreu em um grave momento para os soviéticos, pois o país não apenas se encontrava em reconstrução, como passava por dificuldades econômicas devido a este processo do pós-guerra. Contudo, observando a situação mais grave entre a população alemã, assim como em outros países do leste europeu, completamente colapsados em virtude da guerra, a União Soviética ainda assim se esforçou, fornecendo ajuda material e humana para a normalização da vida social. Esta solidariedade foi o que fundou posteriormente a pedra angular para o nascimento das diversas democracias populares no leste europeu, que abrange inclusive a futura República Democrática Alemã (RDA).
Para além dos documentos citados, existem vários outros que podem ser acessados gratuitamente no site Финальный Аккорд Великой Войны, lançado a apenas uma semana. Uma verdadeira oportunidade histórica imperdível para conhecer mais detalhes sobre os bastidores da vitória soviética na Grande Guerra Patriótica.
Referências:
Финальный Аккорд Великой Войны. 2020. Disponível em: http://berlin75.mil.ru/.
RIA NOVOSTI. Minoborony rassekretilo dokumenty ob osvobozhdenii Berlina. 2020. Disponível em: https://ria.ru/20200502/1570878348.html.
A. A. Grechko. A Missão Libertadora das Forças Armadas Soviéticas na Segunda Guerra Mundial. Editado por Ciência e Paz, Rio de Janeiro, 1985.
Deixe seu comentário