
Os resultados do referendo constitucional mais uma vez comprovam como a Rússia, bem como, o fenômeno Vladimir Putin é mal compreendido no ocidente. Uma compreensão equivocada oriunda mais de questões advindas de conhecimento das dinâmicas históricas da sociedade russa, do que necessariamente dos gestos feitos pela figura mais importante do país até o momento presente do século.
Nas democracias liberais do ocidente, cujo discurso de liberdade política é associado a um eleitoralismo vazio, assim como uma sociedade civil abstrata (Imprensa, empresários e profissionais liberais), chega-se mesmo a construir índices para uma medição de democracia entre Estados e sociedades completamente díspares. Pasmem, que existam textos comparando os níveis de democracia, a partir de rotatividade de organizações políticas do poder, usando um conceito universal!
Índices que curiosamente consideram os 70 anos de eleição do Partido Revolucionário Institucional (PRI) no México uma ditadura. Contudo, consideram uma democracia os anos de chumbo na Itália das décadas de 1960 e 1970, quando milicias neofascistas- diga-se de passagem apoiadas pelas famosas máfias criminosas do país e com sede nos Estados Unidos- perseguiam líderes comunistas italianos, que em resposta pegam em armas, pondo o país em uma espécie de obscura guerra civil.

Alexei Druzhinin/AP/https://www.npr.org/
A Federação Russa, Estado multinacional e multiétnico, cujas dimensões continentais agregam os mais diversos povos, traz uma proporção de gigantismo e monumentalidade à política do país que poucos compreendem. Infelizmente, a velha tese construída ao longo do século XIX sobre o Estado russo enquanto um ’’prisioneiro de povos’’ continua, ignorando-se as transformações ocorridas durante a Revolução Russa, bem como o fracasso da imposição de um Estado ultraliberal russo na década de 1990- sim as heranças soviéticas fazem parte de uma contradição importante e considerável da Rússia de hoje!
Aqui está um importante ponto desta análise. Sem compreender a complexidade da política no país, bem como o processo histórico ocorrido nas últimas décadas, é impossível entender em que tipo de realidade insere-se o atual referendo. Uma análise que pode ser dividida entre o equivocado, o correto e o real. Comecemos pelo equivocado.
Antes de tudo, convém dizer que a atual constituição russa foi outorgada em outubro de 1993, durante a mais grave crise política após o fim da União Soviética, quando o país estava tomado pelas massas populares, que protestavam contra a constituição que estava sendo imposta por Bóris Iéltsin. A Duma de Estado– Parlamento russo– em apoio a este movimento rechaçava a constituição, assim como havia pedido o impeachment do então presidente de maneira praticamente uníssona em setembro.
Embora a União Soviética tenha deixado de existir fisicamente em janeiro de 1992, as lideranças políticas comunistas do país, que ainda eram uma considerável força, lutavam junto com boa parte da população, não apenas contra a ’’terapia de choque’’, mas pela manutenção de uma série de direitos sociais e políticos herdados do período socialista. Estas forças políticas, assim como a população em marchas e mobilizações quase que diárias, eram chamadas frações ’’totalitárias que agonizavam’’ contra a modernidade liberal. Bóris Iéltsin, aquele quem havia apunhalado o líder reformista soviético, Mikhail Gorbatchiov, vivia uma ’’lua de mel’’ com o ocidente, e era considerado o Campeão da Democracia!
Tanto o The Washington Post, quanto o The New York Times consideravam, em outubro de 1993, Bóris Iéltsin, um democrata moderado, mas que com sucesso havia derrotado o último suspiro dos comunistas russos– título inclusive do artigo publicado no segundo jornal, em 5 de outubro daquele ano, quando a Duma de Estado fora bombardeada a mando de Iéltsin para conter a ’’rebelião comunista’’. No mesmo período, o homólogo do The Washington Post no Brasil, o jornal O Globo publicou em sua capa: “Iéltsin bombardeia Parlamento, prende rebeldes, mas ainda enfrenta resistência”.
Nesta mesma edição fizeram questão de reproduzir as palavras de apoio à repressão no país por parte do então presidente estadunidense, Bill Clinton– grande patrocinador político e financeiro de Iéltsin. Curioso ressaltar que na própria memória do ocidente sobre o período pós-soviético, essa crise constitucional foi minimizada, ou mesmo apagada. Como fez a BBC na publicação da biografia de Iéltsin em 2007- ano de sua morte-, ao mencionar superficialmente a crise:
Dois anos depois (Fim da União Soviética), a jovem democracia novamente esteve em risco. Conservadores fecharam-se dentro do Parlamento e tentaram tomar o controle da TV estatal.
Mas, com tanques, tropas leais a Iéltsin tomaram o prédio, os rebeldes entregaram-se e novas eleições foram realizadas.
Bom. Voltemos ao tempo presente. O referendo constitucional é levantado como mais uma bandeira propagandística contra a Rússia. Fala-se em ’’Путинская Конституция’’ (Putinskaya Konstitutziya)– Constituição de Putin em russo- no melhor estilo liberal de descrição de um regime despótico, onde as ’’pessoas manipuladas’’ por um líder autoritário, votam pela sua permanência no poder, mesmo que ’’percam suas liberdades’’, pois são parte de um povo que não é liberal e vê na democracia (liberal) uma ameaça.
Uma visão ideológica abstrata, e completamente equivocada da realidade, pois a reforma não apenas contou com uma ampla discussão na Duma de Estado, como desde o início indicou possuir uma alta taxa de aprovação entre as forças políticas no país dos mais amplos espectros- exceto os liberais cosmopolitas Ksenia Sobchak e Aleksei Navalni-, ainda que o Partido Comunista tenha retirado-se posteriormente do processo- algo omitido também no ocidente, pois abre feridas passadas.


Importante é ressalvar que as eleições presidenciais russas ocorrem apenas daqui a 4 anos- um período onde muita coisa pode acontecer. As eleições mais próximas são as de alguns oblasts e Repúblicas Autônomas em setembro deste ano, e as parlamentares em setembro de 2021. Logo não é correto afirmar que essa constituição é uma manobra de Putin apenas para sua permanência no poder- que pode até ser um objetivo secundário, mas não o primário-, e muito menos que o país é um regime déspota oriental. Diferente do “Campeão da Democracia” (Gorbatchiov), Putin não dissolveu o parlamento e outorgou uma constituição como em 1993, e possui um alto apoio de boa parte da sociedade.
Alías, o resultado do plebiscito foi semelhante ao das eleições presidenciais em 2018, vencida pelo presidente russo com nada menos que 77% dos votos, algo que dimensionado em milhões significa uma diferença de 1 milhão de votos a mais. Outro dado importante sobre o referendo é a participação de 67% da população- índice alto em comparação as democracias ocidentais onde os Estados Unidos por exemplo tiveram 55% em 2016, algo que dado o momento de crise apresentada pela pandemia da Covid-19, é ainda mais impressionante.

Passemos agora pelo que é correto sobre o referendo constitucional para uma melhor compreensão, sendo importante destacar que as mudanças propostas abrangem vários de seus artigos, com a alteração de alguns e a adição de outros. Apesar do considerável número de alterações na Constituição de 1993, é importante ressaltar que não é sua abolição, sendo essencial destacar quais são algumas dessas mudanças.
A primeira delas, e que pode ser considerada uma das principais, é a separação definitiva dos poderes entre legislativo e executivo- inclusive foi o stopim da crise constitucional de 1993-, com a mudança da forma como é escolhido hoje o Primeiro-Ministro do país. Atualmente cabe ao presidente russo indicar o titular do cargo, cujo consentimento é dado pela Duma de Estado, uma herança da luta de poderes existentes no período pós-soviético entre Iéltsin e a Duma, de onde o poder executivo saiu vitorioso. No entanto, em uma situação hipotética futura, onde um presidente desarticulado com frações importantes da Duma tente impor leis, um novo desequilíbrio poderia instaurar-se-, o que nos leva a crer que essa é uma ’’correção constitucional’’ que está sendo efetuada. (Observe-se que este é um fato que pouca atenção, para não dizer nenhuma, recebe nas discussões no ocidente em geral.)

Uma segunda importante mudança refere-se aos cargos políticos chaves que apenas podem ser preenchidos por cidadãos russos, não sendo permitida uma dupla-cidadania, possuir contas bancárias ou estadia em outro país no momento em que estejam exercendo o cargo. Esta medida objetiva, sobretudo, afastar dos cargos públicos, em essencial nas áreas das finanças e certas empresas estatais, cidadãos estrangeiros e políticos corruptos que busquem usar do cargo para evasão de impostos e lavagem de dinheiro. Em muitas das antigas repúblicas soviéticas é comum que cidadãos de dupla nacionalidade ocupem tais cargos, como, por exemplo, o ex-presidente da Geórgia Mikhail Saakashvilli– hoje cidadão ucraniano-, e que são investigados por lavagem de dinheiro, corrupção e evasão de divisas. Para o cargo de presidente, as exigências são ainda maiores, pois o cidadão deve residir no mínimo a 25 anos no país e possuir unicamente nacionalidade russa.
Uma terceira mudança a ser observada é nas relações entre o legislativo, executivo e judiciário, onde tanto o Conselho da Federação– uma espécie de câmara alta do legislativo-, quanto o presidente em acordo com esta instância, podem afastar juízes federais, inclusive os que estejam dentro das cortes Suprema e Constitucional. As agências de segurança também passam a ser elegíveis pelo presidente em acordo com o Conselho da Federação.
Contudo, um dos aspectos mais importantes nisso é a formalização do instituição Conselho de Estado– uma espécie de órgão superior de governo, vinculada ao poder executivo com o objetivo de ser responsável pelo funcionamento de órgãos e corpos administrativos governamentais-, que hoje não possui um papel descrito na constituição, mas que foi criado pelo próprio presidente Putin em setembro de 2000. Este órgão é essencial para a estabilidade das relações entre o centro e as regiões periféricas da Rússia, e foi muito importante no processo de pacificação do Cáucaso a partir de 2001, bem como auxilia com projetos de desenvolvimentos regionais.
Uma quarta mudança, inclusive uma das mais importantes, foi a reversão de algumas medidas neoliberais relacionadas a direitos sociais. O salário mínimo, por exemplo, não pode ser menor do que o índice mínimo para subsistência pessoal ou familiar, além de que é garantida a indexação anual das pensões- algo existente em poucos países. Importante é lembrar que uma das derrotas mais importantes sofridas pelo governo russo foi em sua campanha por uma reforma previdenciária no ano de 2019, inclusive foi um dos motivos centrais que levaram a saída posterior do Primeiro Ministro Dimitri Medvedev.
Uma outra mudança significativa diz respeito à jurisdição do direito internacional sobre as leis russas, onde se propõe que a legislação do país pode sobrepujar as leis internacionais. Esta emenda, segundo muitos de seus defensores na Rússia, servirá para resguardar a autonomia do país frente a ingerências externas, a partir do uso das leis internacionais para interesses particulares de alguns países.
Neste sentido, vale afirmar que o país está usando-se de um precedente, existente hoje na realidade, apesar de não dita diretamente, mas já em exercício, por países como Estados Unidos e Grã Bretanha e que tem gerado uma crescente instabilidade mundial. Portanto, essa lei não é fruto do acaso, apenas põe o país de forma jurídica e na prática em condição de igualdade com países que se negam a seguir aos tratados pactuados em organizações como a Organização das Nações Unidas (ONU), localizada hoje em uma crise institucional em razão de sua estrutura arcaica.
Uma última mudança a ser observada- e aqui vale todas as maiores discussões possíveis- é relacionada a laicidade do Estado. A palavra ’’Deus’’ aparece na constituição com o objetivo de conectar a ’’tradição dos períodos passados’’ do país com o presente- embora os proponentes dessa “reescrição” coloquem que o Estado continue laico. As uniões matrimoniais são também outra questão que abre intensos debates, pois a emenda proposta deixa explicita que o ato apenas será reconhecido jurídica e constitucionalmente entre homens e mulheres, o que exclui a possibilidade de união entre homossexuais. Essas questões de cunho moral- mas que estão relacionados diretamente com questões políticas- advêm de uma forte presença religiosa nos corpos governamentais do Estado russo, que por sua vez são um importante sustentáculo do governo.

Agora finalmente é possível apontar as reais intenções contidas dentro do movimento de reforma da constituição de 1993. E como se pode observar, cada uma destas mudanças possuem uma série de motivações sociais, políticas e ideológicas que são muito maiores do que o propagado como vontade de um pseudo todo poderoso ’’Czar Russo do século XXI’’.
Embora não tenha sido apontado aqui, a eventualidade da reeleição do atual presidente russo até 2036, como uma das principais mudanças, ela não pode ser considerada a principal. Esta aparece muito mais como uma espécie de medida preventiva frente a uma possível crise política em um período de médio prazo, em que Putin não estaria mais na presidência.
Entre 1999 e 2000 ocorre algo semelhante, onde Putin criou um consenso de unidade entre diversas forças sociais e politicas. A busca de reafirmar este consenso com as reformas na constituição para manter a estabilidade a médio e longo prazo deste período, tem por objetivo principal, criar instrumentos para que este acordo prossiga.

Significativo é dizer que apesar das consideráveis alterações à constituição, elas não podem ser consideradas como parte de uma Putinskaya Konstitutziya. Tanto o Partido Comunista da Rússia, quanto frações do Partido Rússia Justa- ambos com alas mais progressistas no país- recusaram-se a participar do referendo por questões políticas que vão para além dos mandatos consecutivos de Putin na presidência- e que não são destacados nos jornais ocidentais.
Os líderes comunistas do país defenderam um caminho alternativo ao atual processo. Eles propuseram que as mudanças fossem discutidas amplamente na sociedade por meio da formação de uma Assembleia Constituinte, e não discutidas por uma comissão formada pelo governo, e que fossem debatidas pelos atuais membros da Duma de Estado, para posteriormente passar pelo processo de referendo. Este caminho levaria a substituição da Constituição de 1993, considerada oriunda do autoritarismo de Iéltsin. Neste sentido, eles sustentam que o atual processo de referendo constitucional sinaliza não para a formação de uma nova constituição, mas a manutenção da “natureza” da mesma.
Entender isso é importante, pois a realização de eleições para uma Assembleia Constituinte seria arriscado para o partido governante, o Rússia Unida, que possui hoje ampla maioria na Duma de Estado com 343 dos 450 deputados. Nas últimas eleições ’’municipais’’, ocorridas no fim de 2019, o Rússia Unida perdeu espaço em algumas regiões importantes do país para o Partido Comunista e o Partido Liberal Democrático da Rússia (LDPR)– ultraneoliberal com vernizes fascistas. Em Moscou, a Duma da cidade viu crescer em 10 o número de parlamentares comunistas, impedindo uma ampla maioria do partido governante que existia até então.

Isso não apenas gerou uma atenção maior por parte destas forças políticas, como as forçou agir para criar instrumentos que viabilizassem a manutenção de sua hegemonia. Um novo acirramento político interno que quebrasse o pacto estabelecido em 2000 poderia mesmo cindir o partido governante Rússia Unida, que apesar de ser a maior organização política do país- estando presente em todas as regiões-, possui uma frágil unidade que começa a demonstrar desgastes, em consequência dos últimos desdobramentos das relações entre a Rússia e o ocidente.
O Rússia Unida possui em seus quadros desde defensores de uma política mais neoliberal, como Dimitri Medvedev, a figuras mais centristas, a exemplo do prefeito de Moscou Sergei Sobianin e figuras públicas históricas como Piotr Tolstoi– neto do famoso escritor Liev Tolstoi-, até alas mais nacionalistas como Valentina Tereshkova, Sergei Choigu e o próprio presidente Putin. Óbvio que essa divisão não é tão intensa, como pode ser interpretado a partir daqui, pois nestes quase 20 anos de existência- que não é pouca coisa-, o Partido Rússia Unida é uma organização política sólida, a ponto de ser desde então a principal do país.
Estes elementos citados são a pedra angular do próprio partido que nasceu de três organizações políticas da Rússia e que lutaram pelo poder na segunda metade da década de 1990, quando o governo de Bóris Iéltsin desmoronou. A Единство (Edinstvo-União), um partido social-democrata, liderada por Sergei Choigu- então um destacado líder militar da Guerra da Tchetchenia-, herdado de um antigo partido fundado pelo economista neoliberal Iegor Gaidar, que se afastou do governo Iéltsin, após a Crise de 1993.

A Отечество (Otechestvo-Pátria), orientada pelo neoliberalismo e um conservadorismo que chegou a flertar com o partido LDPR, liderada por Iuri Luzhkov, ex-prefeito de Moscou, fiel a Iéltsin até as vésperas da abertura de seu segundo impeachment em 1999. E a Вся Россия (Vsya Rossiya-Todas as Rússias) que era uma organização não oficial- um bloco da Duma-, porém com alta representação regional no país, e altamente fisiológica em termos políticos, então liderada por Mintimer Shaymiev, que por diversas vezes foi líder da República Autônoma do Tartaristão– um Estado autônomo da Federação Russa- no período soviético e posterior.

Essa fusão, em funcionamento desde então, permitiu um alto índice de estabilidade política no país, e que é motivo de avaliações positivas não apenas dentro das instituições do Estado russo, mas na sociedade em geral. A palavra estabilidade não é empregada de maneira apenas autoral aqui, pois tanto na mídia russa em geral, quanto nas instituições e entre políticos é o termo que vem sendo usado com frequência para descrever os últimos 20 anos, em especial a presidência de Putin.
E isso é algo real, onde basta apenas uma comparação empírica simples entre o que era a Rússia internamente no ano de 2000, e o que ela é hoje em 2020. A projeção deste país para seu próprio povo é um símbolo de orgulho, e não mais de rejeição, vergonha ou confusão, algo encarnado na figura do presidente Vladimir Putin, mas que apenas pode ser possível mediante a pactuação política apresentada. Putin é uma figura, que em certo sentido, busca apagar da memória o que foi o período Iéltsin, e aponta para um futuro.
Hoje, o fantasma da Constituição de Iéltsin, que jamais deixou estes setores, em especial o próprio presidente Putin, é o que esta em questão. Reformar a atual constituição, dando-lhe ares de democrática é essencial para a própria continuidade da estabilidade política do país e virar esta página, mesmo que para isso tenha que haver espaço para o fundamentalismo religioso de setores da Igreja Ortodoxa, ou a defesa de garantias sociais de setores mais populares no Partido Rússia Unida- poucos no ocidente sabem, mas o Rússia Unida mantém uma disputa em espaços sindicais e de juventude com o Partido Comunista, e inclusive possui um tamanho e capilaridade considerável nestes setores sociais.
Embora bem sucedida, como em toda a fusão de grupos, existe conflitos, e postas as diferenças existentes entre os setores governantes, é impossível não aparecer rachaduras ou mesmo crises. Algo que exige repactuações políticas. Esta aí o caráter central do atual processo de reforma constitucional no país: evitar uma cisão entre as forças políticas governantes, e manter afastados do poder, tanto os comunistas, quanto os setores mais fascistas. Setores que vem ganhando espaço e aumentando a tensão política em lutas sociais no país. (Uma polarização de tendência internacional frente a crise do paradigma neoliberal e o fortalecimento do fascismo.)

Logo, analisar a Rússia mediante uma ótica monolítica, apontando a aprovação das emendas como uma espécie de “vitória putinista” é um erro. Pelo contrário, este referendo, como em outras sociedades no ocidente, demonstra que no país existem forças políticas que se digladiam, assim como a necessidade de rupturas e pactuações. Neste caso específico ao processo constituinte, demonstra um crescente desgaste no pacto realizado no período pós-soviético, mediante a um novo acirramento político por ocasião de uma espiral crescente do Partido Comunista que ameaça o atual equilíbrio, assim como as agressões ocidentais contra o país que pressionam as alas pró-ocidente, que veem com alguma suspeição a aliança estratégica sino-russa, base do processo de integração euro-asiático. (Isso ajuda a explicar por exemplo a saída de Medvedev do cargo de Primeiro Ministro e uma série de pressões sobre setores financeiros e bancários do país nos últimos meses.)
Frente a este problema, nada melhor do que renovar a confiança sob uma sólida base mútua em uma reforma constitucional que abranja os interesses de todos os sustentáculos do governo russo por mais algum tempo. Uma transparência de mudança radical sob velhas roupagens, mas que em alguma medida tem uma função que inclusive nos países ocidentais funciona. Inclusive as transformações históricas, políticas, sociais e econômicas, cada vez mais velozes desde a crise de 2008, e que inauguram um novo período na contemporaneidade- que provavelmente se intensifica com a Crise da Covid-19-, demonstram que a necessidade de os países estarem abertos aos reflexos dessas mudanças é uma questão vital.
No entanto, salta aos olhos uma curiosidade contraditória que não se pode deixar passar. Enquanto os russos, em especial do Partido Rússia Unida, buscam negar as tradições “Iéltsinistas” da constituição, em razão da terapia de choque neoliberal da década de 1990 que deixou uma ferida aberta, buscando virar esta página; no ocidente critica-se as alterações, realizadas de maneira relativamente democrática, ainda que passível de críticas- como ocorre em qualquer democracia liberal no ocidente-, defendendo-se a vigência completa da constituição do Campeão da Democracia, Bóris Iéltsin- que inclusive, teoricamente, favorece mais ao poder executivo exercido hoje por Putin. Isso é o que se pode chamar de curioso paradoxo!
Referências
BBC BRASIL. Era Yeltsin marcou surgimento da nova Rússia. 2007. Disponível: https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2007/04/070423_boris_obituariorg.shtml
O GLOBO. Yeltsin bombardeia Parlamento, prende rebeldes, mas ainda enfrenta resistência. 1993. Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-acervo/?navegacaoPorData=199019931005.
RIA NOVOSTI. Ekspert rasskazali, kak Putin za 20 let izmenil rol Rossii e mire (Especialistas discutem como Putin em 20 anos mudou o papel da Rússia no mundo). 2019. Disponível em: https://ria.ru/20191230/1563008881.html.
______. Reformy Putina: Drugaya strana 20 let spustya (Reformas de Putin: Outro país 20 anos depois). 2019. Disponível em: https://ria.ru/20191227/1562947600.html.
- Overwhelming support for Putin’s constitution changes a wake-up call for Westerners who claim Russian system is bound to collapse. 2020. Diponível em: https://www.rt.com/russia/493536-constitution-changes-vote-west-reaction/.
SEMENOVSKIY, Igor; DUARTE, Caio Henrique Dias. Emendas à Constituição Russa. 2020. Disponível em: https://diplomatique.org.br/emendas-a-constituicao-russa/.
THE WASHINGTON POST. Democrats wonder what took so long. 1993. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/archive/politics/1993/10/04/democrats-wonder-what-took-so-long/06a65dd5-9264-4578-9249-06385995437d/.
THE NEW YORK TIMES. The Last Gasp of Russia’s Communists. 1993. Disponível em: https://www.nytimes.com/1993/10/05/opinion/the-last-gasp-of-russia-s-communists.html.
Vídeos:
KRASNAYA LINIYA. Entrevista com Gennady Ziuganov (03/07/2020)
RT IN ENGLISH. Vladimir Putin’s Constitutional Reforms & Threat War with Russia (Prof. Richard Sakwa). Programa Going Underground, 2020
RT EN ESPAÑOL. La votación de los ciudadanos de Rusia a la enmiendas a la Constitución entra em su etapa final, 2020
TELESUR. Peña: Hay masivo apoyo a propuesta de reforma constitucional en Rusia, 2020
Vejo q os russos deram enormes exemplos de união desde a grande virada de 1917. Souberam enfrentar os 3 milhões de soldados alemães durante a segunda grande guerra – fato q a grande midia sempre escondeu – e souberam enfrentar a grande fase da saida do comunismo. Um povo estoico, q soube deixar exemplos de coesão social.