
Se hoje você considera difícil encontrar um amor, alguém para dividir a vida, as alegrias e as tristezas, o que diria de encontrar a companhia da sua vida em meio a um inferno de chamas, lama, neve e corpos? Pois foi esse o destino do casal Maria Georgievna Faustova e Aleksandr Filippovitch Voronov, dois soviéticos que a Grande Guerra Patriótica uniu pelo campo de batalha. Maria, nascida em 1922, era operadora de rádio voluntária e foi colocada no teatro de guerra ainda em 1941, quando sequer tinha completado 20 anos. Reformada em 1942, viu mais mortes nesse curto espaço de tempo do que eu garanto, que você já viu por toda a sua existência. Aleksandr, dois anos mais velho, foi comandante de uma bateria antitanque. Conheceram-se em meio às batalhas, no outono de 1941. Oficializaram sua relação com o casamento em 1945, e de sua união, nasceram três filhos.
Maria trabalha até hoje com as memórias da guerra, pois é atendente telefônica do Sindicato dos Veteranos de Moscou. Aleksandr já não trabalha mais e, por problemas de saúde, tem dificuldades para falar, mas quando perguntado sobre a guerra, a maioria de suas respostas relaciona-se com o amor por Maria e de sua beleza inesquecível. Ambos foram entrevistados pela equipe do historiador Jochen Hellbeck, que coleta relatos da guerra para seu projeto “Facing Stalingrado”, que já deu como frutos um livro sobre o tema.

Seu trabalho é fundamental para a preservação das histórias do horror da luta contra o nazismo e das privações a que milhões de pessoas foram submetidas. Através da história oral, o projeto garante que esses testemunhos não se percam no tempo, e muito contribui para a luta contra o revisionismo histórico que tem sido tão amplamente utilizado para relativizar o esforço de guerra soviético, como o próprio presidente da Rússia, Vladimir Putin, chamou atenção.
Voltemos ao caso de amor em meio a Stalingrado. As lembranças de Maria ainda são muito vívidas, mas seu sofrimento intenso não permitiu que ela conseguisse ser entrevistada em sua casa. Na primeira tentativa, o gravador parou de funcionar com apenas dez minutos passados. Somente quando foi para a sede do Sindicato dos Veteranos é que a antiga operadora de rádio conseguiu de fato relatar as tragédias que a assolaram.

Ao tratar, por exemplo, das batalhas às margens do rio Don, Maria Faustova relembra dos destroços de dezenas de tanques soviéticos e da tática alemã de incendiar a vegetação das estepes da região, para que a permanência no local fosse impossível pelo calor e pela fumaça. Somente naquela retirada, Maria viu perecer dezenas de companheiros, inclusive mulheres. Apesar de não fazer parte da equipe médica, Faustova precisou ajudar muitos companheiros que tinham acabado de perder seus membros, ou que poderiam morrer devido às hemorragias, improvisando ataduras com uniformes rasgados.
Uma memória cruel para ela foram as últimas palavras de vários soldados que chamavam por suas mães. Apesar de um ferimento no ombro e de uma concussão por ser arremessada longe devido à uma explosão, Maria Faustova preservou seu bem mais importante, aquele a que o Exército Soviético havia confiado-lhe: seu rádio. Suas outras companheiras inseparáveis eram duas granadas de mão, amarradas em seu corpo, onde Faustova esclarece que uma delas era para ser usada em caso de cerco inimigo, para provocar uma explosão que lhe desse a chance de fugir. A outra, ela não explica a presença. Imaginamos o motivo.

Ao lembrar dos folhetos lançados no campo de batalha pela Força Aérea Alemã, Maria relata com certa ironia que seus companheiros o usavam para enrolar o fumo dos cigarros, pois o folheto era de boa qualidade. Quando relata sobre a travessia do rio Volga, esclarece o quão arriscado era passar de uma margem para outra, onde não havia possibilidade de se esconder, e todos tornavam-se alvo fácil para os alemães. Em suas breves intervenções, Aleksandr relembra que não havia descanso para ninguém, pois “a luta estava sempre por perto”.
Incentivado por Maria, o velho soldado lembra com risadas da situação inusitada em Kalach, onde os invasores possuíam mais tanques do que a sua divisão tinha de soldados. A lembrança dura tornou-se apenas um episódio distante e pitoresco. Mas ao ser questionado se sentiu medo ao ver tantos blindados, parece ressurgir em Aleksandr o moral do soldado: “Que bem faria admitir medo? … E ninguém fugiu do campo de batalha. Todos dispararam o melhor que puderam …”.

O medo não poderia fazer parte da rotina daqueles soldados. Não na divisão do oficial Voronov. Ao relatar que se fosse preciso, atiraria em um desertor, Maria Faustova apenas assente de forma espartana: “Está certo”. Segundo Aleksandr, o medo praticamente não fazia parte da rotina de seus comandados, não pela sua bravura inumana, mas pelo próprio esquecimento de tal sentimento, tamanho era o desafio a ser encarado. Ao ser questionado sobre possíveis deserções e execuções, Voronov ironiza os “pombinhos” e afirma que o “Departamento Especial” cuidava dos casos de covardia. E para não mais lembrar do trauma de execuções, logo se volta para seu assunto preferido, elogiar sua esposa: “Você é linda! Por isso me apaixonei por você!”. A beleza de Maria Faustova parecia ser um elixir para fugir dos horrores da frente de batalha.
E ao falarem da paixão, ambos relembram com carinho da cerimônia de premiação por bravura onde se conheceram. Maria ficou responsável por preparar um concerto no front, onde seriam entregues as condecorações. O pedaço de pão e a caneca de vodca foram marcantes para celebração, um momento em que todos perceberam que um dia poderiam voltar à vida normal. Ali, Aleksandr e Maria cruzaram-se. Ela, organizadora do concerto, ele, oficial de serviço no dia. Sobretudo de veludo, chapéu de pele e luvas. Assim, Maria lembra em detalhes da roupa do homem que viria a amar por toda a vida.

A declaração de amor viria através de um presente. Uma galinha. O tenente Voronov mandou entregar o animal na casa que abrigava Maria Faustova para alimentá-la. O presente fora uma espécie de despedida, pois Aleksandr estava de partida para Stalingrado e havia o risco real de nunca mais se verem. Nenhum beijo, nenhum carinho. Maria e Aleksandr trocaram apenas recados e saudações. A galinha foi o mais próximo de uma normalidade que alcançaram.
O casal então foi separado por mais de um ano. Os bombardeios foram intensos em um momento de virada da guerra, onde os exércitos nazistas, enfim, foram derrotados e a reação soviética intensificou-se, iniciando o processo de expulsão dos invasores. Os estilhaços de bombas deixaram dezessete pontos na perna de Maria. Mas quis o destino que seus ferimentos a fizessem regressar para casa. E esta história pôde continuar a ser escrita após encontrar seu amado Aleksandr, que parece ter como lembrança mais forte do conflito, não as bombas ou mortes, mas a beleza estonteante de Maria.
Site consultado: facingstalingrad.com
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