O arco-íris entre Goa e São Paulo: a narrativa de vida de Joana Mascarenhas, que chegou ao Brasil nos anos 50

Joana Juliana Pinto Mascarenhas. Crédito: Facebook.

A vida de Joana Juliana Pinto Mascarenhas percorreu um longa jornada desde a casa aconchegante dos pais, que abrigava seus onze irmãos na Índia Britânica, até o seu ninho vazio no Brasil. O cotidiano na Índia de sua infância era o da simplicidade do ‘dal-chawal’ (arroz com lentilha), do ‘chapati-pappad’ (pães indianos), das camas de ferro duras e das roupas de segunda mão. “Meus filhos fugiram do meu ninho, como eu fugi dos meus pais uma vez”, disse. O tom de voz de Joana é tingido de nostalgia quando ela recapitula os 84 anos de sua vida.

Ela mudou-se para São Paulo em 1958. Seu destino como imigrante é um desdobramento da turbulência política de meados do século XX, quando uma nova ordem política foi estabelecida na Ásia. Goa, a terra natal ancestral de Joana, era uma das possessões de Portugal. O país europeu mantinha essa possessão, mesmo indo contra as reivindicações da Índia recém-independente.

Havia instabilidade sócio-política e também agitação nas transações comerciais em Goa. A tensão levou a uma revolta em Dadra e Nagar Haveli em 1954. O sub-continente já amargava muito sofrimento devido à partição da Índia, após a independência, em 1947. Para escapar das crises, vários goenses, cujas histórias permanecem sem ser documentadas, deixaram suas casas. Joana e o marido, Armando Mascarenhas, passaram muitas noites sem dormir, examinando a situação política antes de decidirem emigrar para Portugal.

O casamento de Joana e Armando; aniversário de casamento, e com seus filhos. Crédito: arquivo pessoal.

Armando pertencia a uma das famílias de negócios da elite de Margão, em Goa. Ele tinha um documento de identidade emitido pelo governo português a todos os nascidos em Goa, antes de 1961. Esse documento foi muito útil para ele viajar para Portugal. Além disso, Armando dominava a língua portuguesa e isso também o beneficiou. A migração de goeses para Portugal e outros lugares foi vantajosa em certo sentido; no entanto, foi, para muitos deles uma questão de destino e não de escolha, relacionada com o destino político de Goa vis-à-vis o de Portugal. De um território ultramarino de Portugal na Ásia, Joana e Armando desembarcaram em outro antigo território português na América Latina, ambos muito distantes um do outro.

Joana teve uma vida agitada desde o início. Ela vivia em Karachi naquela época [cidade da Índia britânica, hoje situada no Paquistão] e foi visitar parentes em Goa. Foi quando conheceu o marido em um baile de Natal. Joana recorda a folia: “Todos os olhos estavam voltados para este solteirão encantador, mas os dele estavam fixos em mim. Eu perguntei a ele se tínhamos nos conhecido antes. Ele respondeu: ‘Não aqui. Nós nos conhecemos em outro mundo”‘. Armando pediu permissão ao irmão de Joana e os dois dançaram até as 5 da manhã. Joana conta que o caso de amor deles, que começou quando ela tinha 17 anos, “abalou as duas cidades de Karachi e Goa, pois era incomum naquela época”.

Como nos romances de contos de fadas, este caso de amor também teve as suas aventuras. Naqueles tempos, as meninas saíam de casa na companhia protetora de membros masculinos da família. Era uma época (1954) em que as fronteiras entre a Índia e o Paquistão estavam sendo fechadas. Joana, então com 21 anos, viajou para o seu próprio casamento. Ela partiu de Karachi para Goa em um trem lotado de soldados. Um homem em seu vagão sugeriu maliciosamente que ela dormisse ao lado dele se ela estivesse com medo. Com o estômago embrulhado, ela escolheu o beliche superior, rezando as contas de seu rosário a noite toda. Em Goa, foi recebida por seu seu príncipe encantado em um Ford. Armando e Joana trocaram votos na Basílica do Bom Jesus em Goa.

Armando partiu para Portugal, deixando para trás a mulher e o filho David, de dois anos e meio. Mas ele havia sido avisado de que o Brasil era o lugar do futuro. Junto com sua família, os três partiram para as longínquas terras da América Latina em agosto de 1958. Vindos da terra de Mahatma Gandhi, os dois foram bombardeados com perguntas sobre a cultura e espiritualidade da Índia. Eles conseguiram conquistar o coração dos brasileiros a bordo, que insistiram para que se instalassem em São Paulo. Joana nunca esquece o incidente, no qual ela perdeu uma mala com o dinheiro em seu primeiro dia no Brasil. Mas a mala foi devolvida ao cais por um brasileiro honesto. Talvez esse episódio tenha simbolizado as dificuldades que enfrentariam como imigrantes e que iriam superar com a ajuda de brasileiros.

Armando foi contratado por uma empresa estrangeira, e Joana conseguiu emprego como secretária e professora de inglês em São Paulo. Enquanto o marido era fluente em português, Joana superou a barreira do idioma, inspirando-se na mãe analfabeta que se educou em inglês através do London Weekly. “Minha proficiência na língua inglesa serviu-me como uma arma de sobrevivência no Brasil”, diz ela. Hoje, no entanto, o ensino de línguas é muito mal pago no Brasil. A sobrevivência em um país estrangeiro também tem a ver com cultura, especialmente para mulheres de sociedades conservadoras. Acostumar-se a cumprimentar com beijos e abraços não foi fácil para ela, assim como tocar os pés de um idoso é impensável para os brasileiros. Como mulher, o contraste entre as duas culturas influenciou fortemente Joana.

As mulheres em sua terra natal eram reverenciadas em seu papel de mães. Mas, no Brasil, não havia o mesmo tipo de reverência. No entanto, as mulheres são tratadas como o segundo sexo e como alvos fáceis em outros lugares também. Ela se lembra de ter sido assediada várias vezes por homens em Karachi no seu caminho para o serviço religioso. Joana estava entre as poucas mulheres privilegiadas na Índia a frequentar o ensino médio e a trabalhar fora de casa. Contudo, no Brasil, ela poderia descartar os códigos conservadores reservados às mulheres e tornar-se independente. Os relatos de migração costumam ser repletos de perdas e de infelicidade. Mas Joana não deixa sua história ganhar tons sombrios.

Casa de Joana em Margao Goa. Crédito: arquivo pessoal.

Ela não gosta de falar sobre alguns detalhes de sua vida no Brasil, como a impossibilidade de encontrar seus pais novamente; o fim da magia de seu romance de contos de fadas, substituído pela rotina diária de ganhar a vida; o fato de ter tido que assumir a posição de chefe da casa onze anos antes da morte do marido, em 1980; e os desafios de criar sozinha o filho Leslie e a filha Legia, ambos nascidos no Brasil. Em vez disso, ela tira um rosário de sua bolsa, dado à mãe por uma parteira no momento do parto domiciliar de Joana. Pressionando as contas amorosamente entre os dedos, ela diz: “Este rosário tem sido meu mascote por décadas, dando-me força em momentos de dificuldade.”

As histórias de migração costumam ser motivadas pelas circunstâncias, mas o papel da força de vontade não pode ser descartado. A história de Joana oferece uma perspectiva alternativa válida para a narrativa da migração. Determinada a provar seu valor, ela adotou uma atitude voltada para o futuro, pois “não tinha tempo” para sentir saudades de casa, trabalhava em dois empregos: em um escritório, durante o dia, e dando aulas particulares à noite. “Algumas feridas nunca cicatrizam e você nunca supera algumas coisas. Mas a sua luta faz você crescer, o que deve ser valorizado. Quando olho para trás, para minha vida, sinto orgulho de como consegui lidar com tudo isso”, disse.

Ao ser questionada sobre como administrou o estresse em sua vida, ela ri com vontade: “Oh, querida, a mente pode realizar suas próprias acrobacias. Deixe sua mente livre e veja o caminho que vai se abrir à sua frente”. Alguma coisa incomoda a Joana no momento? Sim, as complicadas sobreposições políticas em sua identidade. Devido a isso, seus filhos não podem ter acesso ao legado do pai em Goa. Nascida em Karachi, quando essa cidade era parte da Índia britânica, ela se mudou para várias cidades indianas, foi trazida de volta à sua terra ancestral na colônia portuguesa de Goa após o casamento, e então migrou para o Brasil.

Pinturas de Joana inspiradas na Índia. Crédito: arquivo pessoal.

A identidade de Joana não se enquadra em uma categoria nacional facilmente definida. O antagonismo daqueles que a rotulam de “paquistanesa” a magoa. “Nasci antes do nascimento desses Estados-nação. E Karachi, que me lembro com carinho, era uma parte da Índia britânica. A burocracia complica minha identidade”, lamentou. Quando sugiro que sua identidade é transnacional, ela levanta a mão: “Tanto faz, mas a Índia parece inata em mim e o Brasil, como uma camada externa. A Índia está na retina da minha alma. Daqui vêm minhas certezas, meu código genético, meu norte e meu sul; e é aqui que eu volto quando me sinto estranha ou uma estranha”.

É pelo vínculo de Joana com a Índia que ela co-fundou a Associação Indiana de São Paulo em meados da década de 1980 com Prakash Shedonker e mais algumas famílias indianas, como os Dawars e os Nayars. Sua indianidade é um segredo aberto, mas está além da empatia da burocracia, que deve seguir a geopolítica. Se algo mais incomoda, ou não incomoda Joana é a idade dela. “Se as rugas da minha experiência aparecem em mim, é bom. Se não o fizerem, é ainda melhor “, diz ela, piscando. “Eu me sinto com 60 anos aos 84 anos de idade”, disse.

Joana bebê e adolescente.
Crédito: Arquivo pessoal.

Antes que eu interpretasse que seu desejo era o de permanecer jovem, Joana sugere que é preciso comer e viver de maneira saudável para envelhecer graciosamente, sem se transformar em um fardo para os outros. Não é novidade que ela malhe, nade, dirija, dê aulas particulares, vá à missa, viaje, se entrega à leitura, à pintura, e planeje mais uma viagem – a sexta – para a Índia.

Joana diz que é uma vantagem que sejamos todos mortais, mas também podemos ser eternos na memória dos outros, nas árvores que plantamos ou nos livros que escrevemos. Arco-Íris é o título de seu primeiro livro de contos, que ela publicou quando completou 80 anos, em 2014. Joana Juliana Pinto Mascarenhas, essa inspiradora imigrante globalizada, é uma das primeiras imigrantes indianas do século 20 a estabelecer-se na cidade de São Paulo, em 1958.

Fonte: Texto republicado no Beco da Índia e originalmente no Interdisciplinary Journal of Portuguese Diaspora (Vol.7 – 2018)
Link direto do Beco da Índia: http://bit.ly/becodaindia-vidadejoanamascarenhas

Shelly Bhoil
Escritora e acadêmica indiana radicada no Brasil, autora dos livros Negotiating Dispossession: Tibetan Subjectivities on a Global Stage (Lexington Books 2018); Resistant Hybridities: Tibetan Narratives in Exile (Lexington Books 2019); e Panorama da Literatura Tibetana: Poesia e Prosa (2019).

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por Anders Noren

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