Conheça uma joia rara do cinema de Satyajit Ray: “Two” é uma bela fábula sobre um duelo simbólico de meninos

O diretor Satyajit Ray no set de filmagem de “Two: A Film Fable”. Crédito: https://www.theindianwire.com/

Dois meninos vivem em mundos opostos. Um, no segundo andar de uma imensa e confortável casa, toma coca-cola e usa um boné com orelhas de Mickey Mouse. Ele procura matar o tédio com a montanha de brinquedos que possui, os mais modernos e caros.

 O outro menino, descalço, lá embaixo, do lado de fora, no meio do mato, ao lado de seu casebre de madeira, brinca com o pouco que tem. Eles não se conhecem. Até que o menino rico ouve, do alto de sua janela, o som de uma flautinha que o menino pobre tocava. O rico reage e vai buscar a sua flauta sofisticada. Aí começa a disputa desigual. Cada um procura exibir o que tem nesse duelo repleto de simbologia.

Esta é uma fábula em preto e branco, um silencioso curta-metragem de 12 minutos do diretor bengalês Satyajit Ray“Two: A Film Fable” (Dois: Um filme fábula), de 1964. O duelo prossegue. O pobre desaparece e surge com um tamborzinho de madeira. O rico responde mostrando seu macaquinho movido a pilha que toca uma percussão. O pobre some. Volta com uma máscara no rosto, um arco e flecha. O rico reage. Exibe sua coleção de máscaras e armas diversas: espada, revolver, metralhadora.

Diante do sentimento de vitória, o rico comemora na geladeira, de onde tira seu prêmio: uma suculenta maçã. Mas quando volta, vê da janela uma pipa sendo empinada. Era o menino pobre que exibia toda a sua liberdade de pipa, flanando ao vento.

O rico, preso em sua casa, não pensa duas vezes: com sua espingarda de chumbinho, vai para a janela e atinge em cheio a pipa. Sorri triunfante e volta para seus brinquedos de pilha barulhentos. Mas eis que novamente o som da flautinha do garoto pobre entra pela janela e abafa a cacofonia irritante dos brinquedos de pilha.

Este não é um filme conhecido do mais famoso diretor indiano, aclamado no Festival de Cannes por sua “Trilogia de Apu”, nos anos 50. Mas mesmo não estando no pedestal das obras badaladas de Ray, o curta é tido por alguns especialistas como um tesouro escondido.

Satyajit Ray. Crédito: Wikipedia.

“Two” seria um prelúdio para outro filme de Satyajit Ray, lançado cinco anos depois, sobre a Guerra do Vietnã: “Goopy Gyne Bagha Byne”. Alguns dizem que “Two” é uma mensagem anti-guerra nos anos da invasão americana no Vietnã. Isso porque após toda a artilharia do garoto rico, a flautinha do pobre toca mais alto do que os brinquedos sofisticados, exatamente como a resiliência dos vietnamitas naquele conflito desigual contra a superpotência.

A fábula dos dois meninos estaria carregada de mensagem política: o garoto que simboliza o capitalismo norte-americano, com suas orelhas de Mickey Mouse e a coca-cola acaba vencido pelo menino pobre, que nada tem além de sua criatividade, como o próprio Vietnã. Quanto à sua forma, o certo é que o curta é um tributo de Ray à era dourada do cinema mudo que ele tanto gostava. O curioso é que o filme foi feito para ser exibido na programação cultural do Public Broadcasting Service (PBS), a TV pública americana,  e foi bancado pela empresa Esso.

Fonte: Texto originalmente publicado no Beco da Índia.
Link direto: http://bit.ly/becodaindia-cinemasatyajitray-dois

Deixe seu comentário

por Anders Noren

Acima ↑

Descubra mais sobre Revista Intertelas

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading