A bela metáfora cinematográfica do xadrez indiano

Sanjeev Kumar vive Mirza Sajjad Ali e Saeed Jaffrey interpreta Mir Roshan Ali em “O Jogador de Xadrez”, filme de Satyajit Ray. Crédito: divulgação.

Dois nababos  jogam “Shatranj”, uma forma antiga do xadrez (os indianos clamam que esse jogo foi inventado por eles). Os dois nobres indianos do século 19 analisam os seus próximos lances no tabuleiro, em partidas intermináveis. Tão obcecados estão que ficam indiferentes às noticias de instabilidade política de seu reino, prestes a ser anexado pela Companhia das Índias Orientais, uma empresa britânica que governava boa parte da Índia daquela época, de forma direta ou indireta. O vício pelo xadrez indiano era tanto que eles ignoravam até mesmo suas mulheres.

Esta é a primeira cena do primoroso “Os Jogadores de Xadrez” (The Chessplayers, ou Shatranj Ke Khilari, o título em Hindi), lançado em 1977. Trata-se do mais longo, mais caro e mais complexo filme do genial cineasta Satyajit Ray (1921-1992). Os nababos Mirza Saiad Ali e Mir Rosham Ali vivem de suas riquezas ancestrais e de impostos que são recolhidos do povo de Lucknow, cidade do reino de Awadh. O paralelo interessante que Ray faz em sua obra é o das jogadas durante as partidas e as movimentações dos britânicos para capturar o rei de Awadh: o nababo Wajid Ali Shah.

“Os Jogadores de Xadrez” (The Chessplayers, ou Shatranj Ke Khilari, o título em Hindi), de Satyajit Ray. Crédito: https://www.dawn.com/

No filme de Ray, que não tem heróis ou vilões, exércitos inteiros perdem e vencem – mas apenas no tabuleiro. Há uma sequência do tipo documentário no filme, baseado em pesquisa histórica, mas costurada com ficção. “Olha as mãos desses generais. Eles nunca lideraram exércitos reais, mas olha a maneira grandiosa com a qual eles movem suas tropas nesse campo de batalha quadrado. Mirza e Rosham preferem cavalgar, não cavalos reais, mas suas mentes”, avisa uma voz em off,  profunda e conhecida de milhões de indianos. É a voz do ator Amitabh Bachchan, com seu hindi sofisticado.

Os dois jogam de acordo com antigas regras indianas do jogo, indiferentes à forma como os britânicos moviam suas peças no xadrez, literalmente e metaforicamente. A história passa exatamente no ano de 1856, às vésperas da sangrenta Rebelião Indiana contra o Império Britânico. Tropas britânicas estavam a ponto de anexar o reino de Awadh, uma região no atual estado de Uttar Pradesh, governada por dinastias de sofisticados nababos muçulmanos xiitas de origem persa, amantes da música, das artes, da gastronomia e de entretenimentos em geral.

A trama é baseada em um conto escrito em 1924 por um dos maiores escritores da literatura em Hindi: Munshi Premchand. Os  filmes de Ray são em geral baseados no que há de melhor na literatura indiana, como Rabindranath Tagore, Bibhutibhushan Bandyopadhyay ou Sunil Gangopadhyay (os três em língua bengalesa), e, claro,  Munshi Premchand. Governante de Awadh, o nababo Wajid Ali Shah era um poeta que adorava empinar pipas e ouvir boa música. É um governante indiferente, que prefere as artes à política. Mas tinha amor por sua coroa. Lucknow era uma cidade-esmeralda, símbolo da sofisticação da cultura awadh herdada da Pérsia, mas havia já naquela altura uma certa atmosfera decadente. A cidade era “um caldeirão de prazeres”.

A nobreza era personificada naquela região pelos nababos, títulos reservados a muçulmanos. Não à toa essa palavra migrou para o vocabulário português para indicar pessoas acostumados com mordomias. Àquela altura, muitos nobres estavam mesmo viciados no luxo das sedas, nos pratos perfumados, no ópio e no entretenimento. Em contraposição ao rei-poeta, está o general britânico James Outram, que se irrita com a indiferença do rei indiano pelas coisas da política. O papel de general ficou para ninguém menos do que o ator e diretor Sir Richard Attenborough (1923 – 2014). Anos mais tarde, ele dirigira o filme “Gandhi”, levando várias estatuetas do Oscar.

O rei indiano era dono de um harém com 400 concubinas e 29 esposas “muta” (temporárias). Para o general Outram, o rei era “frívolo, irresponsável e um inútil” que não gostava de governar. Acusando-o de má administração, o general Outram anexou Awadh em 1856. Ou seja, o rei engoliu um xeque mate político. Em uma das cenas iniciais, o diretor utiliza animação para comparar Awadh com uma cereja conquistada pelos generais da Companhia das Índias Orientais, assim como outras já haviam sido devoradas, como as regiões do Punjab e de Nagpur.

Cena de O Jogador de Xadrez, filme de Satyajit Ray. Crédito: divulgação.

Um século antes dessa anexação, o nababo Shufauddaulah desafiou o poder britânico e saiu fragorosamente derrotado. Resultado: ele foi obrigado a assinar um tratado que fixava uma grande quantia de dinheiro como penalidade. “Desde esse dia, os nababos de Awadh mantiveram a sua amizade com os britânicos“, explica o narrador. Sempre que precisavam de dinheiro, eles  batiam nas portas dos palácios dos nababos para pedir a abertura dos cofres.  Aqui, um outra animação hilária mostra um colonizador dando bronca em um nababo, que o acalma oferendo uma enorme fatia de bolo.

Os rumores de que a Companhia  das Índias Orientais iria tomar Avadh foram ignorados pelos nobres jogadores de Xadrez, que achava que eram “fake news” espalhados pelos britânicos para poderem pedir mais dinheiro. Satiajit Ray chegou a ser criticado por não ter assumido um lado nessa história, por ter sido de certa forma ambivalente. Mas suas obras são sempre humanistas, daí não ter um verdadeiro vilão na trama. Mas certa vez, em uma entrevista, Ray deu a sua explicação: “A condenação está lá, eu representei duas forças negativas: o feudalismo [dos nababos] e o colonialismo”.

Fonte: Texto originalmente publicado no Beco da Índia.
Link direto: http://becodaindia.com/a-bela-metafora-cinematografica-do-xadrez-indiano/

Florencia Costa

Jornalista brasileira, escritora e curadora cultural. Ela edita o Beco da India e é cofundadora da plataforma BRiC Street. Costa já foi correspondente de jornais e rádios em Moscou (Rússia), Mumbai e Nova Delhi (Índia). A partir de 2006, Costa trabalhou na Índia como correspondente do jornal O Globo. Em 2012 voltou a viver no Brasil, onde trabalha como jornalista.  Lançou, em outubro de 2012, o livro Os Indianos (Editora Contexto). Ela ministra palestras e seminários sobre Índia no Brasil e é cofundadora do Bloco Bollywood, o carnaval de rua da comunidade indiana em São Paulo

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