
A história da relação entre o futebol e a luta anti-colonialista no país foi revisitada, enquanto a Índia chorava, junto com o mundo, a morte de Diego Maradona, ano passado. Ícone maior da independência da Índia, Mahatma Gandhi certamente seria um fã do craque argentino se estivesse vivo. O líder pacifista indiano era um apaixonado pelo futebol, mais até do que pelo críquete (o esporte nacional da Índia).
Nas duas décadas em que viveu na África do Sul (1893-1915) como advogado e ativista social, Gandhi fundou em três cidades diferentes times de futebol chamados “Passive Resisters”, nome que faz referência à sua filosofia política do Satyagraha (a força da verdade), o método de resistência pacífica na luta contra o Império britânico que na África do Sul representou também a luta contra a discriminação racial e injustiça. O dinheiro arrecadado com os jogos era usado para apoiar as famílias dos ativistas anti-racistas e anti-colonialistas que muitas vezes íam presos.
No imaginário dos indianos que viveram aqueles anos de luta nacionalista, o futebol foi um símbolo importante de união e resistência. Na África do Sul, Gandhi – que teve contato com o futebol pela primeira vez em Londres, onde estudou – usou esse esporte para propagar a Satyagraha e para aperfeiçoar suas habilidades como negociador e ativista. Gandhi voltou para a Índia em 1914, três anos após um dos jogos mais icônicos da história do futebol indiano: a vitória do Mohun Bagan, fundado pela elite indiana da então Calcutá (atual cidade de Kolkota) sobre o East Yorkshire, formado por um regimento britânico.

O desembarque do futebol na Índia — assim como o do críquete – deu-se, no fim do século 19, por meio do Raj Britânico, o poder colonial que criou times em várias cidades da Índia. Mas no início, os indianos eram proibidos de jogar. O primeiro jogo realizado na Índia foi entre o Calcuta Club of Civilians e o The Gentleman of Barrackpore, em 1854. A Associação Indiana de Futebol foi criada em Calcutá em 1893, mas não havia nenhum indiano na sua diretoria até 1930. Calcutá foi a capital do Raj Britânico até 1911, justamente o ano em que se deu essa famosa partida.
A vitória do Mohun Bagan — time criado pela elite indiana de Bengala Ocidental em 1889 — sobre o East Yorkshire e a conquista do IFA Shield foi acompanhada por uma torcida de 60 mil indianos em êxtase que cantavam uma famosa música nacionalista: Vande Mataram. O time jogou como era do costume indiano: descalço. Foi a primeira vez que jogadores indianos venceram um time britânico.
O Mohun Bagan foi criado para desenvolver o espírito competitivo e de luta dos jovens da elite indiana. Não eram admitidos na equipe jovens que fossem reprovados na escola ou na faculdade. A histórica vitória do Mohun Bagan fortaleceu o amor dos bengaleses pelo futebol. Foi a vitória do oprimido sobre o opressor e que desafiou os preconceitos europeus de superioridade racial sobre os asiáticos.

O movimento nacionalista indiano era mais forte em Bengala Ocidental, cuja capital era Calcutá. Hoje, três estados da Índia concentram a paixão por esse esporte, com seus torcedores dividindo-se entre as seleções brasileira e argentina, durante as copas do mundo. Além de Bengala Ocidental, Kerala e Goa. A seleção da Índia nunca jogou em uma Copa do Mundo, mas foi convidada a participar em 1950, três anos após a independência, quando o evento foi realizado no Brasil. Os indianos, no entanto, foram obrigados a declinar do convite porque só jogavam sem chuteiras, ítem obrigatório. Os anos 50 foram o período de ouro do futebol indiano, quando o time do país era considerado o melhor da Ásia.
A popularidade do futebol em Kerala, estado indiano do Sul, cresceu nos anos 60, 70 e 80, justamente quando a seleção brasileira e a argentina foram protagonistas de grandes momentos, com as atuações geniais de Pelé e Maradona. Isso explica o fato de os torcedores de Kerala também apoiarem as duas seleções. Em Bengala Ocidental e em Goa é a mesma coisa: seus torcedores vestem camisetas amarelas do Brasil ou azuis claras da Argentina, e chegam mesmo a brigar nas ruas. Há uma identificação com os times não europeus. Além de Gandhi, o maior ícone da espiritualidade indiana, Swami Vivekananda (1863-1902), responsável pela divulgação do Hinduismo no mundo ocidental no final do século 19, era outro entusiasta do futebol. Ele chegou a dizer certa vez: “Você estará próximo do céu se jogar futebol”.
Fonte: Texto originalmente publicado no Beco da Índia.
Link direto: http://becodaindia.com/como-o-futebol-simbolizou-a-resitencia-pacifica-de-mahatma-gandhi-e-a-luta-anti-colonial-dos-indianos/
Florência Costa
Jornalista freelancer, especializada em cobertura internacional e política, foi correspondente na Rússia pelo Jornal do Brasil e serviço brasileiro da rádio BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia para ser correspondente do jornal O Globo É autora do livro “Os Indianos”. E editora do site Beco da Índia
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