Cúpula Biden-Putin: Cui Bono?

O presidente da Rússia Vladimir Putin (esq.) e o presidente do EUA Joe Biden (dir.). Crédito: Cotidiano News.

Uma das coisas mais incríveis em Hollywood nas últimas décadas, e que denota a perda de seu dinamismo, é a capacidade e ênfase nos efeitos especiais. Excetuando diretores já consagrados, ou atores que se aventuram em escrever e desenvolver filmes, a ousadia e a novidade tem sido cada vez menor frente às douradas décadas de 1960 e 1970. A perda do mistério por linguagens cifradas, desenvolvidas ao longo de tramas, bem como da própria capacidade de construir a própria trama, que é o que prende os telespectadores, foi esquecida. A objetividade e o uso acentuado, quase que constante dos sentimentos, raiva, tensão, alegria, joga as pessoas para um movimento não referencial constante.

Esta decadência hollywoodiana, reflexo da crise do ocidente manifesta-se na política, hoje muito mais show midiático da qual todos participam direta ou indiretamente, do que aquilo que no próprio ocidente era enfatizado com a democracia grega e o republicanismo romano. A Ágora (praça pública onde se realizavam as assembleias e reuniões na Grécia antiga, tendo posteriormente conotação política) não está mais nas repartições de poder públicas como parlamentos e tribunais de justiça, mas dentro do mundo virtual, dentro das redes sociais, cujo objetivo tem sido manter seus membros entretidos neste movimento não referencial constante. Exatamente como nas telas de cinema citados anteriormente.

Este fenômeno, tornou-se uma armadilha para Casa Branca, afinal, para apresentar um Show de qualidade, é necessário um maestro. No período Trump, fizesse o que fosse, independente do julgamento subjetivo, havia uma valorização de seu papel como líder forte, proeminente, que detinha a iniciativa, mesmo que, na prática, isso não fosse verdade. Biden mostra-se claramente incapaz de atender este novo momento da política mundial, e está erodindo a imagem dos Estados Unidos tanto quanto Trump. A cada dia aparece um trocadilho diferente, desejo de saúde ao governo estadunidense, falta de pulso aos Estados Unidos, o país senil e doente, entre outros.

Embora, oficialmente a Cúpula Biden e Putin, realizada nesta última quarta-feira, dia 16 de junho, tenha entre os seus pontos de discussão e análise temas como segurança cibernética, estabilidade estratégica, bem como as crises regionais na Ucrânia, Líbia, Síria e outras, inclusas e coligadas, não há hoje diálogo possível entre Moscou e Washington. A doutrina de sanções faz parte da política estadunidense com o Kremlin, por mais insano que pareça, e está presente dentro dos documentos publicados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) desde o período Trump. De acordo com as palavras do próprio documento OTAN 2030, recentemente publicado, trata-se de: “A OTAN deve continuar a abordagem dupla de dissuasão e diálogo, com os parâmetros internos acordados nas cúpulas de Gales e Varsóvia, como as bases para sua abordagem em relação à Rússia” (OTAN, 2021, p. 25).

Tendo isso como base, além das recentes agressões gratuitas de Biden- como chamar Putin de assassino entre outras-, fica a pergunta: A quem e para que serve esta cúpula? Analisando lado a lado, é possível levantar hipóteses. É importante asseverar que os russos não pediram essa cúpula, e nem a organizaram. Sua ideia, planejamento e preparação deve-se unicamente ao lado estadunidense.

Do lado russo, o governo esperou, e ainda aguarda um possível diálogo com os Estados Unidos, não para estabelecer uma confiança mútua que nunca existiu, mas para uma mínima capacidade de convivência internacional. Expulsão de diplomatas e violação de acordos mundiais tornam inviável qualquer possibilidade de estabilidade a médio e longo prazo. Daí a importância entre os russos de discutir aquilo que é denominado de Estabilidade Estratégica, pois existe na Rússia uma elite empresarial financeira cosmopolita interessada em negociar com o ocidente, e isso é uma pressão interna contra Putin. De acordo com a própria OTAN: “Em todas essas ações direcionadas à Rússia, a OTAN deve continuar mostrar que isso não tem problemas com o povo russo (Leia-se classe empresarial cosmopolita), e que essas ações são em resposta para o presente governo russo” (OTAN, 2021, p. 26).

É evidente que o governo russo está ciente do presente problema, bem como esta classe cosmopolita, e por isso, tal movimento é visto internamente como um gesto de boa vontade do governo Putin. Ainda que não tenha nada a ganhar, e nem a perder, pois a cúpula foi organizada pelos estadunidenses. O governo sabe que esta disponibilidade para o diálogo contribui para o fortalecimento e manutenção do acordo que alçou Putin ao poder na Rússia desde 2000, e que recentemente vem passando por fricções. Exemplos disso são os protestos em Khabarovsk contra o governo por ocasião da prisão do governador da região, Sergei Furgal, membro do Partido Liberal Democrático, acusado de corrupção, e ligações a assassinatos políticos, que contou com apoio de setores empresariais cosmopolitas do país.

Enfim, mediante a isso, é factível concluir que da parte russa não se espera muitos passos concretos nesta cúpula que ocorre após as reuniões do G7 e da OTAN, onde as ações e deliberações importantes já foram acertadas. No entanto, imageticamente, como em boa parte das ações diplomáticas desenvolvidas hoje, é possível deter algum ganho interno, mesmo que as tensões com os estadunidenses permaneçam.

Por outro lado, da parte estadunidense não há, e nunca houve, iniciativa em direção ao diálogo, a Diplomacia dos Bidens não passa de palavras chamberlainianas. A pobreza intelectual e a  burocracia que assessoram a presidência, associada à incapacidade cognitiva, presidindo o país, são ainda mais óbvios do que eram no governo Trump. Isso é possível de associar-se às décadas de hegemonia neoliberal nos Estados Unidos, marcadas por vazios discursivos, como os de Barack Obama, ou do primitivismo baixo e sujo da política de John Bolton. Portanto, não há pensamento estratégico a médio e longo prazo, assim como não há novidade alguma dentro da política externa estadunidense nas últimas três décadas.

Algo que adicionado às citações documentais realizadas neste texto, direciona a uma das conclusões possíveis sobre a cúpula: Não haverá distensionamento das relações russo-estadunidenses. Mediante isso é inevitável perguntar: Se não é para distensionar as relações, e nem construir pontes de diálogo, à quem e para que serve a presente cúpula dentro dos Estados Unidos? Cui bono (expressão latina que significa “a quem beneficia?”. Ela ainda é usada para designar um motivo oculto por trás de uma situação aparente, ou indicar que o culpado por um crime, ou um problema não é quem se imagina ser).

É importante situar que o país está politicamente dividido, em crise econômica e social, e com um sistema institucional contestado por todos os lados. Cerca de um terço da sociedade estadunidense acredita que o triunfo eleitoral de Biden foi uma fraude, e que o sistema de escolha das lideranças do país está errado. Internacionalmente, derrotas são acumuladas em todas as frentes, nem o próprio Quad (Diálogo de Segurança Quadrilateral), composto por Índia, Austrália e Japão, dá sinais de que irá ’’vingar’’, depois da série de cúpulas e conversas no mais alto nível dos países membros com outros países asiáticos como Indonésia e Coreia do Sul. Iriam os ’’falcões’’ do Pentágono assimilar facilmente essa situação?

A resposta não tardou a vir, em maio, em que generais e almirantes dos Estados Unidos tornando público seu descontentamento, apontaram os problemas físicos e mentais do atual governo, bem como o potencial quadro explosivo social no país. Esta ação não apenas acuou o governo Biden, mas sobretudo o fez transformar sua narrativa sobre a presente pandemia da Covid-19, resgatando a ideia de vazamento do vírus do laboratório de Wuhan, bem como continuar na escalada agressiva com os russos antes da cúpula. Em suma, mostrar iniciativa para o povo do país por meio de ’’lacrações virtuais’’- como chamar Putin de assassino, e pôr a Kamala Harris para tirar foto com o presidente da Guatemala- com o objetivo de salvar um governo que pode já ser comparado ao Titanic.

Tomando estes fatos em consideração, fica simples concluir que esta cúpula é muito mais importante para o governo Biden, do que para todos os outros participantes/espectadores, pois o único ganho positivo possível seria uma autoridade interna estadunidense mais legitimada. Portanto, todos estes efeitos especiais, conflagrações espalhafatosas e agressões gratuitas não passam de puro movimento não referencial constante de um governo que continua com pouca legitimidade interna, e fragilizado internacionalmente.

Não se trata nem mesmo de gravar uma imagem de Putin e Biden dentro da mesma sala, maquiando a pujança de um rei envelhecido- algo impossível fisiologicamente por mais esforço que haja. Tudo isso perpassa unicamente para criar um mito discursivo por detrás da cúpula que seja capaz de transformar imageticamente a Genebra de 2021 em uma nova Reykjavik de 1986. Em suma, mostrar para a Ágora estadunidense e ocidental aquilo que tem sido o slogan do atual governo desde o início: America is back! Enfim, o único Cui Bono desta cúpula vai para os membros do governo Biden, talvez a única tábua de salvação deste mandato. Diante disso, será importante saber, se e até quando isso poderá convencer, gerando sobrevida à atual presidência, praticamente sem pulso, como definiu com grande exatidão um dos porta-vozes do governo da China em uma conferência recente.

Fonte: texto originalmente publicado no site do Cotidiano News.
Link direto: https://www.cotidiano.org/cupula-biden-putin-cui-bono/

Referências:

AKOPOV, Petr. Rezultat izvesten zaranee, chego ne izluchutsya posle zhenevskogo sammita. (Resultado conhecido com antescendência. O que não acontece depois da Cúpula de Genebra.). In: Ria Novosti. 2021. Disponível em: https://ria.ru/20210615/sammit-1736977759.html?in=t.

ESCOBAR, Pepe. Empire of Clowns vs. Yellow Peril. In: The Saker. 2021. Disponível em: https://thesaker.is/empire-of-clowns-vs-yellow-peril/.

NATO. NATO 2030: United for a New Era. 2020. Disponível em: https://www.nato.int/nato_static_fl2014/assets/pdf/2020/12/pdf/201201-Reflection-Group-Final-Report-Uni.pdf.

RT. ‘Dire situation’: Over 120 retired US generals sign letter slamming Biden govt, say nation in fight against ‘socialism & Marxism’. 2021. Disponível em: https://www.rt.com/news/523625-retired-us-generals-sign-letter-slamming-biden/.

Deixe seu comentário

por Anders Noren

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: