
É muito improvável que um chinês não goste de flores e que, ao pensar nelas, não lhe venha à memória a peônia. Chamadas em mandarim de 牡丹 mǔdān, as peônias costumam colorir e perfumar o território chinês a partir dos meses finais da primavera, de abril a maio, estendendo sua floração em algumas regiões até junho.
Cultivada há 1.500 anos, foi com a dinastia Tang (619–907) que a peônia adquiriu popularidade e foi entronizada como a “rainha das flores”, inspirando artistas e colorindo os jardins dos imperadores. Essa planta está de tal modo arraigada na cultura chinesa, que cada etnia a incorpora a seu cotidiano, à sua maneira, como os jardins dos 土家族 tujia e dos 白族 bai, onde não podem faltar alguns exemplares da espécie. Escolhida em 1903 – final da dinastia Qing – como símbolo nacional, perdeu o posto para a ameixeira entre 1929 e 1949; com o advento da República Popular, que não escolheu oficialmente nenhuma flor para ocupar o lugar, caiu no gosto do povo pela tradição e hoje é figurinha fácil de ser eleita como flor-símbolo da China em qualquer votação informal.
Saúde e Prosperidade
A família das peônias, mais presente nas regiões temperadas da Ásia e da Europa, inclui desde herbáceas de 50 cm de altura até arbustos com quase 2 metros. A maioria dos cultivares e das cerca de 30 espécies apresenta flores grandes, maiores que um punho cerrado. Algumas vêm com pétalas simples, outras com pétalas extremamente trabalhadas e sobrepostas. As flores duram de 7 a 20 dias, conforme a espécie e o clima.
As variedades mais famosas são as de Luoyang, adaptadas ao calor e que contrastam com as de Gansu (Paeonia rockii), do noroeste da China, que crescem em grandes altitudes e são bem resistentes ao frio. A maior parte, todavia, adapta-se aos diferentes tipos de clima, desde que receba sol por cerca de seis horas todos os dias. No inverno, as plantas perdem as folhas, reservando energia na raiz. A propagação por sementes é um tanto difícil, pois o crescimento é lento, e pode levar quatro ou cinco anos para uma planta assim germinada florir. Daí a preferência pela multiplicação por enxertia, na maioria das vezes introduzindo-se a gema de uma planta na raiz da outra.
Suas propriedades medicinais, hoje comprovadas, remontam à mitologia e à tradição dos povos. Por exemplo, a raiz da espécie Paeonia lactiflora (芍药 sháoyào, popularmente conhecida como “peônia chinesa”) tem ampla utilização no tratamento de hepatite, dismenorreia, cólicas e espasmos. Nas mais variadas culturas, as flores estão associadas a um sentido decodificado conforme a espécie, a cor e as circunstâncias. Na cultura chinesa, por exemplo, há uma flor para simbolizar cada estação do ano: a peônia é uma das flores que representam a primavera; o lótus representa o verão; o crisântemo, o outono e a ameixeira, o inverno.
Dar uma peônia ou tê-la plantada por perto significa uma bem-aventurada proximidade com a flor dos monarcas e, portanto, com sua riqueza, prosperidade e prestígio social. Planta terapêutica, a peônia também traz a ideia de felicidade e saúde. A delicadeza de suas formas e perfumes remete à sensualidade feminina e à sedução. Por isso a imagem da peônia vem muitas vezes com uma inscrição ao lado: 国色天香 guósè tiānxiāng “beleza nacional e fragrância celestial”.
Peônia nas artes
A mǔdān também figura em pinturas ao lado de pássaros ou insetos, frutas e outras flores, cada qual com um significado. Peônias rodeadas de borboletas simbolizam, por exemplo, homens seduzidos pelo feminino; peônias junto a pêssegos, riqueza e longevidade. As cores, por sua vez, decodificam sentimentos, como nas peônias cor-de-rosa, que lembram o amor, nas vermelhas, que remetem à paixão, e nas brancas, que evocam a pureza, a inteligência e o recato.
A peônia deixou registros significativos a partir da dinastia Tang, quando plantas e animais vinham a se transformar no tema de muitos artistas. Bian Luan (边鸾), um dos precursores da temática, ficou pela maestria com que retratou essa flor. As linhas leves de Xu Xi (徐熙) (do século 10) e seu pincel caligraficamente divagante colocavam peônias ao lado de outras plantas ou pássaros, casando as imagens e os sons de seus ideogramas, de modo a formar, de um lado, um significado a partir da justaposição das imagens e, de outro, um significado construído pela justaposição dos ideogramas. Xu Xi criou um estilo próprio, muito apreciado pelos literatos.
O jesuíta italiano, missionário e artista Giuseppe Castiglione (1688–1766), também conhecido pelo seu nome chinês Lang Shining (郎世宁), trabalhou na corte do imperador Qianlong, na dinastia Qing, e lançou mão de seu admirado talento para pintar o imperador, a imperatriz e as concubinas imperiais… além de peônias. A flor-símbolo da China ainda encontrou, modernamente, uma brecha entre os camarões usualmente pintados por Qi Baishi (齐白石) (1864–1957) e deixou-se retratar pelo seu minimalismo, assim como pelas pinceladas dinâmicas de Wang Xuetao (王雪涛) (1903–1982). Zhang Zhiwen (张志文), nascido em 1966, em Luoyang, é atualmente apontado como o melhor pintor de peônias do mundo.
A flor da peônia não sensibilizou apenas pintores. Escritores tampouco lhe foram indiferentes. O primeiro registro da peônia na literatura está no 诗经 Shijing, o Livro dos Cantares, coletânea de poemas, odes e cantigas populares reunidas dos séculos 11 a.C. a 6º a.C. Ali, uma estrofe é dedicada à flor como símbolo do amor. Na literatura chinesa, é comum ver a flor comparada, ora à beleza da favorita do imperador, ora a um objeto de devoção. O romance Flores no Espelho (镜花缘), de Li Ruzhen (李汝珍), reproduz a já lendária história da imperatriz Wu Zetian (武则天). A trama passa durante um inverno rigoroso, quando ela ordena que todas as flores desabrochem. Todas obedecem, com exceção da peônia. Reza a tradição que, por causa disso, a planta rebelde foi levada para a distante Luoyang, e hoje a cidade é o berço da peônia na China.
Luoyang é a moldura perfeita para a floração da peônia: cidade de 4 mil anos, cercada de belas montanhas e rios vivazes, foi a capital da China por 1.500 anos. Núcleo urbano sagrado do país, foi ali que floresceu e se desenvolveu tanto o budismo quanto o confucianismo. Localizada a 4 horas de trem-bala de Pequim, a cidade oferece atrações turísticas famosas, como o Templo do Cavalo Branco (白马寺) – primeiro templo budista em território chinês – e as Grutas de Longmen (龙门石窟), que, entre uma flor de peônia e outra, valem uma visita perfumada.
A obra mais importante do teatro clássico chinês chama-se O pavilhão das peônias, do dramaturgo Tang Xianzu (汤显祖, 1550–1616). Combina elementos épicos, dramáticos, cômicos e líricos protagonizados por Du Liniang, que luta com muita determinação pelo amor do jovem intelectual Liu Mengmei. Como costuma acontecer nos trabalhos desse autor, as mulheres ocupam os papéis centrais, o que era excepcional no século 16.
O enredo é ambientado na dinastia Song do Sul, no século 12. Num dia de primavera, Du Liniang sai para um passeio no jardim e acaba adormecendo. Sonha que encontra um jovem estudioso, Liu Mengmei, no Pavilhão das Peônias e logo começam um romance intenso. Enquanto a moça dorme, uma pétala de flor cai sobre ela e a acorda. Peripécias envolvem até a exumação e ressurreição de uma personagem.
As quatro peças conhecidas de Tang Xianzu têm os sonhos por tema e, por isso, são chamadas “Quatro sonhos”, uma delas é O pavilhão… Extremamente extenso, o trabalho costuma ser montado em fragmentos, uma vez que a apresentação completa das 55 cenas levaria cerca de 24 horas. De certo modo, isso não representava uma exceção para os dramas operísticos chineses desse período (os 传奇 chuánqí, contos fantásticos), durante a dinastia Ming (1368–1644). Tang Xianzu, que também foi poeta, procurava se inspirar nas estruturas estéticas do 昆曲 kūnqǔ, uma das mais antigas formas da ópera chinesa, resguardada hoje como Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
A feira de Luoyang
Embora a cidade de Heze, na província de Shandong, seja um dos destacados polos de produção e comercialização de peônias na China, é em Luoyang, na vizinha província de Henan, que se encontra o mais importante centro de cultivo, eventos e exposições dessa flor. Todos os anos, de abril a maio, acontece o Festival da Peônia de Luoyang. A feira tem como centro o Jardim Nacional da Peônia de Luoyang (洛阳国家牡丹园), uma área com milhares de espécies em plena florada para serem admiradas em toda a sua exuberância. A cidade também oferece uma vasta variedade de atrações culturais relacionadas a esta “flor nacional” dos chineses.
Fonte: Texto originalmente publicado no site da Revista doInstituto Confúcio na Unesp.
Link direto: https://revista.institutoconfucio.com.br/beleza-nacional-fragrancia-celestial/
Sergio Maduro
Jornalista, tradutor, mestre em História e autor do romance Memórias de Baruc
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