
No Cazaquistão, protestos que tinham por objetivo frear o aumento do preço dos combustíveis e do gás liquefeito podem resultar em uma nova Euromaidan. Entretanto, o cenário é muito complexo, pois existem diversos atores internos, externos, econômicos e políticos envolvidos, levando a uma variedade de andamentos e desfechos possíveis. É difícil apontar apenas para um ator, ou causa específica, existe a conjunção de sentimentos e movimentos envolvidos em um contexto geopolítico tenso na Ásia Central. A instabilidade política dos governos pós-soviéticos na Ásia Central dá-se também pelas suas condições de Estados artificiais bastante frágeis e, por isso, suscetíveis ao caos tão rapidamente, como foi visto no Quirguistão por variadas vezes.
Origem dos Protestos
O atual governo do Cazaquistão efetiva desde 2019 uma reforma normativa sobre os preços do gás e combustíveis pela primeira vez após o fim da URSS. Atualmente os preços são estabelecidos regionalmente, algo que faz o preço do gás liquefeito ter uma média de 20 rublos o litro em todo o Cazaquistão, porém em regiões do Mar Cáspio chega a 8. Isso ocorre porque as administrações regionais são muito fortes, e o governo central tentava normatizar os preços.
Entretanto, a inflação mundial, que atinge em especial os países e regiões com pouca ou nenhuma política energética (Caso da União Europeia), causa um aumento desenfreado dos preços. Os empresários cazaques, participantes de baixa intensidade no movimento, são interessados na manutenção da atual política de preços, pois continuam ganhando milhões de rublos com a ausência de uma normatização nacional mais firme. Portanto, a origem do problema é interno.
Contudo, as condições de vida no Cazaquistão não são tão ruins. O país detém o maior PIB entre as ex-repúblicas soviéticas, Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) alto (Menor apenas que o da Bielorrússia e ex-repúblicas soviéticas do Báltico), bem como um coeficiente gini (Índice medidor de desigualdade) entre os mais baixos do mundo. Além do mais, o Cazaquistão tem boas relações com o ocidente, inclusive parcerias econômicas e políticas importantes. É devido a este cenário que o Cazaquistão é visto como a transição pós-soviética mais bem sucedida.
O grande problema na reforma de preços é a forma do aumento substancial, pois em determinadas áreas do país o preço vai dobrar em questão de dias, algo que não é acompanhado pelo salário mínimo e o piso de várias categorias profissionais de imediato. Não foram criados mecanismos de transição ou de amortecimento do aumento, desenvolvendo-o em fases, por exemplo. Medidas políticas unilaterais e radicais dessa natureza realmente geram explosões sociais como o que se assistiu nos últimos dias no país, e que radicalizou-se ainda mais após o governo ceder.
O andamento da crise
Após três dias de protestos, o presidente Kassym-Jomart Tokaiev, abriu o diálogo com os manifestantes e anunciou que o aumento do preço dos combustíveis e do gás liquefeito não seriam alterados por alguns meses. Entretanto, os protestos recrudesceram sobre todo o país e a palavra de ordem ’’Queda do preço e queda do Velho’’ começou a aparecer. O velho é Nursultan Nazarbaev, ex-presidente do Cazaquistão, membro do Conselho de Estado e membro vitalício do Conselho de Segurança do país.
Uma das principais cidades do país, a capital administrativa, Alma Ata foi tomada pelos manifestantes e no momento as informações são de que a polícia e as forças de segurança são incapazes de retomar a ordem local. Um dos líderes dos protestos é Mukhtar Abliazov, que fala sobre ’’democratizar’’ o Cazaquistão a semelhança da Ucrânia, Geórgia e Quirguistão. A Rádio Europa Livre cobre os protestos e aparentemente o rápido desenvolvimento da situação sugere que sabia com antecipação dos acontecimentos. Em dezembro, a Embaixada dos Estados Unidos no país já havia advertido sobre a possibilidade de manifestações em razão da inflação e preços dos combustíveis e gás liquefeito.
Enfim, trata-se de um Mix de Revolução Colorida no molde Euromaidan apossando-se de manifestações legítimas locais acerca das condições de vida. Porém, o presidente Tokaiev reagiu tomando medidas radicais, como a demissão do atual gabinete de governo (Radicais defensores da manutenção das reformas a despeito das manifestações), anunciou o congelamento do preço do gás e combustíveis nos próximos seis meses, e assumiu a poucas horas a pasta do Conselho de Segurança em substituição ao ex-presidente Nursultan Nazarbaev.
Entretanto, as medidas políticas são acompanhadas do reforço do uso das forças de segurança com o objetivo de restaurar a ordem nas cidades. No momento, poucas informações existem sobre a execução deste movimento, parte das comunicações do país foram cortadas, mesmo a internet. O país está no caos.
Desdobramentos possíveis
A fraqueza do governo nacional expôs a vulnerabilidade das instituições do país. A classe empresarial, interessada na manutenção da política de preços regionais pouco controlados, venceu parcialmente a batalha, mas é incapaz de controlar a situação caótica existente e capitaneada por Ablyazov. A única força capaz de resolver a questão no momento é o governo central que tem as condições e respaldo para tal dos governos regionais e até mesmo de parte da população que tomou posição nas manifestações inicialmente.
Primeiramente, levou-se em conta a possibilidade de o governo conseguir retomar o controle do país por meio dos efetivos de segurança, talvez mesmo com a ajuda dos militares. Mas, necessitaria firmar um pacto político com todas as forças e partes existentes no país (Abliazov e o seu movimento, empresários e partidos políticos). Hoje a única ’’oposição organizada’’ é de Abliazov e os seus comandados pelas ruas das cidades cazaques. Esta seria uma saída ruim para o governo, mas menos danosa para a região do que as seguintes, pois, manteria o país intacto e possibilitaria um gradual retorno a normalidade política e institucional nas próximas semanas, talvez meses. O governo Tokaiev, cujo pleito será novamente posto a prova nas eleições em 2023, acabaria e o país ficaria paralisado até o próximo presidente assumir.
Na segunda evolução, a que foi já confirmada, sendo incapaz de retomar o controle do país, e alegando ataques de forças exteriores, o governo Tokaiev solicitou à Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) uma intervenção militar e política no país para impedir a desintegração do Estado Cazaque e uma possível guerra civil. Para a Rússia e a China, este é um cenário muito preocupante, pois no país residem cerca de 3 milhões de russos, 620 mil uzbeques, e 278 mil uigures, o que significa que os desdobramentos de um conflito no Cazaquistão seriam continentais.
Além disso, as intervenções militares ou políticas na Ásia Central sempre foram um problema profundo para russos e chineses e, caso isso seja necessário, certamente feridas profundas seriam formadas nas relações. O governo Tokaiev pode obreviver, porém sem capacidade e coesão política interna para governar, tornando o Cazaquistão muito dependente da Rússia e China. Entretanto, a possibilidade de novas insurreições no país, inclusive liderada por minorias nacionais, seria ainda provável, estando o governo nesta condição enfraquecida.
Na terceira evolução, a mais perigosa, porém ainda não descartável, o país desintegraria-se rápida e completamente, criando uma segunda Ucrânia nas fronteiras da China e Rússia. Isso inviabilizaria qualquer projeto político ou econômico de estabilidade na Ásia Central e precederia a uma partição do Cazaquistão em áreas controladas por grupos militares armados, a semelhança do que existe na Ucrânia. O agravante seria a desintegração territorial do Estado multiétnico e uma guerra civil que afetaria todos os países da região, em especial Rússia e China.

Neste sentido, o projeto estadunidense de recriar o Khanato/Emirado do Turquestão, abrangendo o Xinjiang e o Cazaquistão Oriental, seria potencializado, bloqueando as entradas chinesa e russa na Ásia Central. Isso paralisaria a integração asiática e seria um duro golpe nas iniciativas das Novas Rotas da Seda e a União Econômica Eurasiática. O mais grave dessa evolução é que o processo de pacificação do Afeganistão seria impossível e a Rússia teria uma ameaça ainda mais perigosa do que a Ucrânia, próxima das suas reservas de recursos naturais, e com conexões religiosas entre os muçulmanos da Ásia Central, Cáucaso e Sul da Rússia.
Apesar do terceiro e último cenário ser quase improvável, pois Kassym-Jomart Tokaiev não é Viktor Ianukovitch (Ex-presidente da Ucrânia, deposto em 2014), é importante lembrar que na Bielorrússia, o governo de Lukashenko resistiu à Revolução Colorida liderada pela professora Tikhanovskaia com o duplo uso de medidas políticas e apoio popular. Tokaiev tem feito as medidas políticas e tem o apoio das forças de segurança, mas até onde a população dá suporte ao seu governo é difícil de saber; mesmo porque este não possui as mesmas características do período em que Nazarbaev estave à frente do Estado. Portanto, a situação ainda está em andamento e há múltiplos desfechos possíveis.
Aparentemente, os EUA estão cientes e implicados no processo indiretamente, seja em razão da inflação mundial induzida pelo Federal Reserve, seja também pela cobertura midiática. Entretanto, diferente do cenário Euromaidan de 2013-2014, o departamento de Estado não tem controle total do movimento, cuja espontaneidade pode vir a dissipar-se, ou transformar-se em um efetivo instrumento na Competição Estratégica contra a Rússia e a China. Os EUA neste momento buscam, e tentarão estabelecer pontes com o movimento, transformando-o em uma Euromaidan com células adormecidas como Mukhtar Abliazov. Caso isso não seja possível para o presente, no futuro estes atores podem vir a ser importantes.
Para a Rússia e a China, o cenário ideal seria seguir pelo cenário da não intervenção e manutenção da integridade institucional política e territorial do Cazaquistão. Contudo, a realidade mostrou-se mais caótica do antes previsto. Sem o país da Ásia Central, a integração eurasiática é incapaz de ser solidificada e o país pode vir a tornar-se um posto avançado indireto dos EUA, tão perigoso quanto o Afeganistão foi durante os últimos 40 anos.
Fonte: texto originalmente publicado no site do Cotidiano.
Link direto: https://www.cotidiano.org/o-que-se-passa-no-cazaquistao-um-resumo-em-poucos-minutos/
Referências
KORYBKO, Andrew. Kazakhstan: Petroleum Protest, Color Revolution, Or Something Else? In: One World. 2021. Disponível em: https://oneworld.press/?module=articles&action=view&id=2378.
TASS. Protests in Almaty begin to subside — eyewitnesses. 2021. Disponível em: https://tass.com/world/1383907.
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