“Primavera curda”: chegando ao fim?

Crédito: International Affairs.

Durante décadas, o problema curdo foi ofuscado pelo palestino, ocasionalmente aparecendo em reportagens da mídia internacional após a prisão muito divulgada do líder do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), o genocídio dos curdos iraquianos e o escandaloso referendo no Iraque Curdistão. Alguns anos atrás, a oposição dos curdos sírios e iraquianos ao “Estado Islâmico” (proibido na Rússia) empurrou-os para a vanguarda da política global com a mídia agora falando sobre a chamada “Primavera curda”.

Em suma, o problema curdo resume-se não apenas à ausência de um Estado independente para 40 milhões de pessoas, que representam aproximadamente 20% da população da Turquia e do Iraque, e entre 8 e 15% do Irã e da Síria, mas também à recusa de Ancara, Teerã e Damasco em discutir a possibilidade de um status autônomo para os curdos. Hoje, a própria questão da independência curda está sendo abafada, pelo menos em público. O primeiro exemplo de Estado curdo na história moderna foi no Irã: em 1946, a República Autônoma Curda foi proclamada na cidade de Mahabad, sobrevivendo apenas por menos de um ano.

Desde então, as autoridades iranianas não pouparam esforços para garantir que o nome de uma das províncias do país (Curdistão Ostan) seja o único remanescente da presença dos curdos na República Islâmica. A situação é agravada ainda mais pelo fato de que os curdos, a maioria dos quais são sunitas, são um obstáculo no curso oficial de Teerã para alcançar a unidade religiosa do povo iraniano. Como todas as organizações curdas, muito menos os partidos políticos, são proibidas, a maioria delas está sediada no vizinho Curdistão iraquiano. Para a maioria das organizações curdas, o objetivo original de conquistar a independência tem transformado-se cada vez mais em uma demanda por autonomia para os curdos dentro do Irã.

O outro “pólo” do nacionalismo curdo é o Curdistão iraquiano. A história da autonomia da região remonta a 1970 e, desde os anos 90, é patrocinada pelos estadunidenses, que precisavam de uma base terrestre para a “Guerra do Golfo”. Em 2003, os Peshmerga iraquianos ajudaram as tropas anglo-estadunidenses a derrubar o regime baathista no poder do país. Sob a atual constituição iraquiana, o Curdistão goza de ampla autonomia, beirando o status de um Estado independente com cerca de 40 consulados gerais estrangeiros, incluindo um russo, operando oficialmente na capital regional Erbil e em Sulaymaniyah.

Após o referendo sobre a independência (2017), que não foi reconhecido por Bagdá, nem pela comunidade mundial (exceto Israel), Bagdá enviou tropas para a região, forçando a renúncia do presidente do Governo Regional do Curdistão e do fundador do Partido Democrático do Curdistão (KDP) Massoud Barzani. No entanto, ele manteve uma presença próxima, com o atual presidente e o primeiro-ministro com o mesmo sobrenome. De acordo com várias fontes, as forças armadas dos curdos iraquianos somam entre 80.000 e 120.000, armados com armas pesadas, veículos blindados e tanques, e seu número não para de crescer.

Com quem eles vão lutar? Erbil está em boas relações com a Turquia e o Irã, as duas “janelas para o mundo” da autonomia, e não é preciso de um exército enorme para manter o remanescente das forças jihadistas sob controle, precisa? Iraque? No entanto, o Iraque é uma questão diferente, dada a presença de territórios disputados, a questão instável da distribuição das receitas de exportação de petróleo e uma rejeição profunda da invasão militar iraquiana de 2017. No entanto, as ambições políticas dos clãs Barzani e Talabani, que dividiram o Curdistão iraquiano em zonas de influência nos anos 70, são obviamente compensadas pelas receitas do petróleo e dificilmente serão estendidas além do “retorno” dos territórios perdidos para Bagdá em 2017.

O fator turco é importante na vida do Curdistão iraquiano: vários milhares de militares turcos estão implantados lá, verificando a atividade de unidades armadas nas montanhas do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, que é rotulado por Ancara como uma organização “terrorista”. Bagdá está descontente com a presença deles, enquanto Erbil finge estar descontente, pois está em estado de guerra não declarada com o próprio PKK. Ao mesmo tempo, soldados turcos estão de prontidão para cortar pela raiz quaisquer outras tentativas das autoridades curdas da região de ganhar soberania, pois Ancara teme que um Estado curdo independente dê um “mau exemplo” para os curdos que vivem na Turquia.

Durante a década de 1980, várias regiões do sudeste da Turquia declararam-se “libertas” de Ancara. Em 1984, o PKK “marxista-leninista” (criado em 1978) prevaleceu sobre todos os outros grupos curdos locais e declarou guerra às autoridades turcas. Após a prisão de seu líder em 1999, os militantes do PKK foram expulsos do país para a Síria e o Iraque, apesar de descartar o slogan de criação de um Curdistão “unido e independente”, o partido já havia conformado-se com uma demanda por autonomia dos curdos dentro das fronteiras turcas.

Por muitas décadas, as autoridades turcas negaram a própria existência dos curdos como grupo étnico. Nos anos 2000, para tornar a situação menos desagradável aos curdos e atendendo às exigências da União Européia, o governo turco apresentou a chamada “iniciativa curda”, acabando com a proibição do uso da língua curda e devolvendo nomes curdos a vários assentamentos, etc. Organizações e partidos legais, defendendo os direitos dos curdos, receberam maior liberdade de ação. No entanto, isso não impediu que as autoridades proibissem tais consentimentos para “conexões com terroristas” e “separatismo”. O atual partido curdo (é proibida a criação de qualquer associação nacional) – o Partido da Democracia Popular – também está sob séria pressão com alguns de seus principais membros atualmente atrás das grades.

No entanto, a aparente derrota no conflito militar com o segundo maior exército da OTAN está forçando os nacionalistas curdos da Turquia a concentrarem-se em uma luta política legal. Durante os últimos anos, a atenção principal da comunidade internacional tem concentrado-se, por razões óbvias, nos curdos sírios, que por muitas décadas permaneceram “cidadãos de segunda classe” ou mesmo apátridas em seu próprio país. Quaisquer manifestações de descontentamento, que ocasionalmente se transformavam em revoltas, eram severamente reprimidas pelas autoridades.

Com a eclosão da guerra civil, os curdos assumiram a posição de neutralidade armada e, em 2012, anunciaram a criação de seu próprio Estado com capital em El Qamishli. Seis anos depois, o nome do quase-Estado foi alterado de “federação democrática” para “administração autônoma”, com o objetivo de demonstrar a recusa das autoridades do Curdistão sírio em buscar sua reivindicação inicial de independência. Escusado será dizer que essa mudança de prioridades foi motivada pela ocupação por tropas turcas e seus representantes de partes dos territórios curdos. Em 2019, Ancara interrompeu seu avanço militar somente depois que os curdos permitiram que tropas sírias entrassem nas áreas sob seu controle, e atores internacionais “dissuadissem” Ancara de qualquer expansão adicional.

Além do fator turco, outra questão importante com séria influência na situação são as tropas estadunidenses e membros de empresas militares dos EUA que permanecem no nordeste da Síria sem qualquer fundamento legal para sua presença. Quando o atual presidente dos EUA era presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado, ele promoveu a ideia de criar um Estado curdo no Iraque e na Síria. Os curdos há muito perderam a fé no desejo de Washington de conceder-lhes a independência, mas ao negociar com Damasco a delimitação de poderes, eles nunca perdem a chance de referirem-se ao apoio dos EUA. No entanto, nos últimos anos, os curdos sírios (e não apenas eles) tiveram ampla oportunidade de sentir os resultados da falta de confiabilidade de Washington como parceiro.

A falta de confiança nos estadunideses, por um lado, e a constante ameaça da Turquia, por outro, estão forçando os líderes curdos a acelerar o processo de negociação com a liderança da República Árabe Síria. Além disso, os curdos depositam suas esperanças no sucesso das negociações e principalmente na mediação da Rússia, dadas as relações aliadas de Moscou com as autoridades sírias. Além disso, Moscou mantém vínculos de trabalho com a liderança da autoproclamada autonomia e com os líderes dos partidos curdos de oposição.

Enquanto isso, as negociações estão paralisadas com Damasco que se opõe à ideia de autonomia ou de preservação da independência organizacional das forças armadas curdas. Ainda é imperativo, no entanto, que os lados concordem com certas condições. O “retorno” dos curdos pode tornar-se um ponto de virada no confronto intra-sírio, pois os estadunidenses sentirão muito “desconforto” ao verem uma Síria unida, e os turcos perderão o principal argumento para sua contínua ocupação da zona fronteiriça, que agora será controlada não por “terroristas”, mas pelo governo central. Que, aliás, está ganhando cada vez mais legitimidade mesmo aos olhos dos adversários irreconciliáveis ​​de ontem.

Fonte: Texto originalmente publicado em inglês no site da International Affairs.
Link direto: https://en.interaffairs.ru/article/kurdish-spring-drawing-to-a-close/

Andrei Isaiev
Comentarista de política externa na Revista International Affairs do Ministério das Relações Exteriores da Rússia

Tradução – Alessandra Scangarelli Brites – Intertelas

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