Crise Ucraniana: o horizonte dos eventos, ou o momento da verdade

Crédito: reprodução da internet.

Vamos começar com o momento da verdade. A Operação Especial Z será incluída na lista de livros de conteúdo programático das academias militares de todo o mundo devido à sua complexidade e formato humanitário. A operação tem objetivos claros – visa a desmilitarização e desnazificação da Ucrânia, esmagando sua infraestrutura militar e meios de guerra de informação, e atacando batalhões nacionais – legalizados como defesa ucraniana, ou como  formações do ministério do interior, treinadas por instrutores estrangeiros, financiadas pelo Estado e pelos oligarcas, com ligações a grupos criminosos, saturados de ideologia nacionalista extremistas.

A operação foi lançada em resposta a uma ameaça que paira sobre as repúblicas de Donbass há oito anos. Números consideráveis ​​do exército ucraniano e batalhões nacionais foram implantados nas fronteiras do LDPR e da Crimeia, o que é comprovado pelo fato de que o exército russo levou bastante tempo para entrar em Kherson e sitiar Mariupol. Além de esmagar a resistência do exército ucraniano e dos nacionalistas, os militares russos enfrentam a tarefa de preservar a vida, a propriedade e a infraestrutura social dos locais.

Quanto ao nacionalismo, chegou à Ucrânia no início do século XX. No começo da Segunda Guerra Mundial, tinha sido transformado na ideologia do chamado nacionalismo integral de Dmitro Dontsov. Isso aproximou os nacionalistas ucranianos dos nazistas alemães, que usaram esses métodos para realizar operações subversivas no território da União Soviética. Durante a ocupação nazista, os nacionalistas, agindo como seus colaboradores, alimentaram esperanças extremamente ingênuas de que Hitler daria-lhes a Ucrânia, o que testemunhava a tolice e as projeções de líderes como Bandera, Konovalts e Shukhevitch, que lutavam por uma vida confortável e queriam fragmentos de poder sob o comando de Hitler.

Dmitro Dontsov. Crédito: reprodução da internet.

O ano de 2014 forneceu aos nacionalistas ucranianos armas, poder e experiência de guerra no curso da chamada operação antiterrorista contra o Donbass. Antes disso, eles vinham ganhando experiência militar fragmentária no Cáucaso e na Síria. Mas tendo assumido os cargos de deputados ou oficiais do Ministério da Defesa ou do Ministério do Interior após “a revolução da dignidade” (revolução ucraniana), os nacionalistas continuaram os treinamentos com os instrutores da OTAN e fortaleceram os sentimentos fraternos, abusando e atacando os veteranos do 9 de maio (data que a URSS venceu os nazistas), seus compatriotas que vestiam fitas de São Jorge, marchando com tochas no aniversário de Bandera.

Eles também tinham como ganha pão os ataques e assassinatos por contrato, assassinatos por afiliações políticas. Seu ardor pelo combate e seu espírito agressivo pedia por mais ações – e é por isso que a guerra em Donbass continuou. É por esta razão também que Kiev não estava disposta a dar um fim ao conflito, tornando-se, posteriormente, impotente para interferir. O nacionalismo está intimamente relacionado com a desmilitarização.

Nos oito anos que se passaram desde 2014, as academias militares, e não apenas na Ucrânia, treinaram um grande número de nacionalistas, muitos deles optaram por ser oficiais do exército, em vez de retornar aos seus batalhões.  Em uma palavra, os nacionalistas ucranianos estão armados, motivados e estão determinados a recuperar o controle do Donbass pela força, e planejam retonar à Crimeia. Apoiado pelo Ocidente em busca de uma agenda anti-russa, o nacionalismo continua a ter um forte impacto nas políticas de Kiev.

Horizonte de eventos 

Na física, o horizonte de eventos é conhecido como o ponto sem retorno. É uma prisão espacial, de onde nem a luz consegue sair, um limiar além do qual nenhum evento pode afetar o observador. Na análise política, o horizonte de eventos separa os fenômenos sociais prováveis, ainda que com um grau muito pequeno de probabilidade, do totalmente improvável. No entanto, o momento da verdade, quando se torna claro que uma decisão deve ser tomada, cria variantes futuras, pois a decisão é tomada sob certas condições e com o objetivo de excluir algumas variantes, avaliando as consequências, os possíveis cenários e a prontidão para eles. O “observador” passa a influenciar os eventos. Aqui, “o observador” é a liderança russa, a influência é a Operação Z, os eventos são a expansão da OTAN e de todos os valores ocidentais para o leste europeu.

O Ocidente não está interessado na conclusão antecipada da operação especial da Rússia na Ucrânia. Para isso, está a exercer pressão sobre Kiev, com vista a ver a Rússia atolada nesta operação e, assim, provocar uma crise humanitária na Ucrânia. Os líderes ucranianos são mais uma vez confrontados com uma escolha: tomar as rédeas do poder em suas próprias mãos, ou continuar a perseguir a política interna e externa anti-russa, conforme instruído pelo Ocidente? Atualmente, em meio à operação especial em andamento, à luz da prevenção bem-sucedida da destruição da central nuclear de Zaporizhzhia, após duas rodadas de negociações entre a Rússia e a Ucrânia, à medida que mais sanções são impostas, a situação permanece incerta. Enquanto isso, essa incerteza diz respeito apenas aos riscos, enquanto as saídas decorrem claramente das causas da crise ucraniana.

O professor Dmitri Ievstafiev descreve uma série de razões geoeconômicas que estão por trás do papel da região ucraniana, apontando que “não é um Estado, mas um espaço, governado praticamente de forma ‘online’”:

Há o instrumento de permanente pressão militar contundente sobre a Rússia, a fim de privá-la de qualquer manobra geopolítica ou geoeconômica na direção ‘ocidental’, tanto política quanto economicamente. A julgar por esta questão, o espaço da antiga República Socialista Soviética da Ucrânia não tem análogo no mundo contemporâneo. No período entre 2008-2020, a Rússia, recorrendo a ações bastante duras, conseguiu aliviar os riscos espaciais emergentes. A reunificação com a Crimeia melhorou a situação, mas, no geral, a pressão aumentou de forma constante à medida que a Ucrânia continuou a buscar a militarização.

Nos próximos dois ou três anos, esse fator, mesmo que a liderança da Ucrânia desistisse da ideia de recuperar o controle da LPR e da DPR, poderia representar uma grande ameaça militar e política à segurança da Rússia. (…) Uma fonte constante de instabilidade nas relações energéticas da Europa com a Rússia; um instrumento para obter várias concessões da Rússia, como aconteceu em relação ao Nord Stream 2 em 2019-2021“.

É preciso dizer que, em fevereiro de 2022, o potencial da Ucrânia para esse fim estava amplamente esgotado: o lado russo perdeu o interesse no projeto Nord Stream 2. Assim, no final de 2021, quando a economia global dava sinais de sair da crise pandêmica, a importância da Ucrânia aumentou, como polo de transformação geoeconômica da Eurásia e das regiões vizinhas (Oriente Médio e Ásia Ocidental, Europa Oriental).

O professor Ievstafiev tem esta opinião: “a direção principal de uma futura política de ‘reconstrução’ da Ucrânia é: criar um sistema de ‘multifacetada política gerenciável’. (…) Tudo isso deve ser acompanhado por um completo desmantelamento do sistema econômico que surgiu na Ucrânia nos últimos dez, quinze anos. A ‘federalização de responsabilidades transversais’ (Cross-cutting federalization) é um grande e único caminho possível da reconstrução da Ucrânia no pós-guerra“.

A economia da Ucrânia era politicamente motivada nos segmentos criticamente importantes – energia, petróleo e gás, ou por padrão em setores separados – as empresas e o Estado podiam manter relações econômicas com a Rússia. A questão do fornecimento de energia ainda precisa ser abordada: a Ucrânia ainda faz parte de um espaço único energético com a Rússia e a Bielorrússia, onde compra energia em horários de pico de consumo. Kiev tinha um plano de, passo a passo, desconectar-se da Rússia e da Bielorrússia e conectar-se ao espaço energético europeu (a Rede Europeia de Operadores de Sistemas de Transmissão, em que estão representados 39 operadores de sistemas de transporte de eletricidade de 35 países da Europa, estendendo-se assim para além das fronteiras da UE, o chamado ENTSO-E).

De acordo com o plano, a Ucrânia deveria entrar no sistema energético europeu até o final de 2023. Em 24 de fevereiro de 2022, o sistema de energia ucraniano deveria ser separado do russo e funcionar de forma autônoma, como uma ilha, por três dias. De acordo com o plano, em 27 de fevereiro, a Ucrânia deveria conectar novamente. Como ficou claro, em 27 de fevereiro, a Ucrânia não retornará ao sistema de energia compartilhado com a Rússia após testes e planeja recorrer aos ministros de energia europeus para uma assistência antecipada na conexão do sistema de energia ucraniano ao europeu. A resposta da Europa, tanto à candidatura da Ucrânia à adesão à UE, como ao seu pedido de ligação antecipada ao sistema energético responderá a muitas perguntas.

A crise ucraniana coloca uma questão: qual caminho o país seguirá. A Rússia fez sua escolha, embora ainda não tenha abordado muitas questões em muitas áreas. Chefes de países europeus podem deparar-se com condições inesperadas. Como a pressão sancionatória é uma faca de dois gumes, o Ocidente terá que enfrentar uma variedade de desafios econômicos – desde a queda econômica e o aumento dos preços – resultado do aumento do custo da energia, ao desemprego e à busca de novos mercados, e tudo isso mantendo as responsabilidades sociais e financeiras perante os migrantes.

Com toda a probabilidade, as duras condições do novo mundo afetarão diretamente a política, de modo que os europeus estão em grande turbulência política. Espera-se que as eleições presidenciais na França demonstrem muito do cenário futuro. Emmanuel Macron queria desempenhar o papel de pacificador e tornar-se um importante político europeu, principalmente após a saída da chanceler alemã Angela Merkel. Ao que parece, como assinala o professor Ievstafiev: “as transformações geopolíticas, que inevitavelmente conduzirão a novos desenvolvimentos, não só a operação de desnazificação, ultrapassarão indubitavelmente as fronteiras do país e mesmo as fronteiras da Europa“. Embora a pressão ocidental sobre a Ucrânia seja colossal, os líderes ucranianos e, em primeiro lugar, o povo ucraniano, terão que decidir que rumo o país seguirá.

Fonte: Texto originalmente publicado em inglês no site da International Affairs.
Link direto: https://en.interaffairs.ru/article/ukrainian-crisis-horizon-of-events-or-a-moment-of-truth/

Denis Baturin
Cientista político e membro da Câmara Pública da República da Crimeia

Tradução, edição texto e pesquisa de fotos e vídeos– Alessandra Scangarelli Brites – Intertelas

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por Anders Noren

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