
Em 15 de Novembro, uma mulher coreana com cerca de quarenta anos, que vivia em Incheon, ao oeste de Seul, acabou em coma depois de ter sido esfaqueada no pescoço. O culpado era um vizinho homem, de 48 anos de idade que tinha discutido com ela e com o marido em razão de barulho. Dois meses antes disso, um homem na cidade portuária de Yeosu usou uma faca para matar o casal que vivia no andar de cima do seu apartamento. A razão dada foi, mais uma vez, o barulho.
As queixas sobre o barulho nos apartamentos tornaram-se uma característica marcante na Coreia durante a pandemia de Covid. Os arranha-céus residenciais que estão espalhados no país têm sido criticados há muito tempo por não terem isolamento acústico. À medida que mais pessoas passam tempo em casa, disputas resultantes de sons indesejados têm atravessado paredes e telhados.
Naturalmente, a maioria das reportagens dos meios de comunicação coreanos concentraram-se na prevalência de tais desentendimentos entre vizinhos e na ausência de soluções. Os apartamentos são mal construídos, e o governo não tem amparo para regular o ruído dentro das habitações privadas, diante disso, o que poderia ser feito? Mas, em meio a tudo isso, acaba-se ignorando uma causa subjacente: a raiva e a capacidade das pessoas para a controlarem. Os coreanos parecem estar tomando consciência para o fato de viverem numa sociedade profundamente enraivecida, e as explosões são comuns. O barulho dos colegas residentes é apenas uma razão para deixar tudo sair, por vezes para uma conclusão homicida.
Os representantes do serviço ao cliente suportam frequentemente o peso desta emoção. Ligue para qualquer linha de atendimento ao cliente coreana, para uma empresa ou um escritório governamental, e uma das primeiras mensagens automáticas que se ouve na linha é “a pessoa com quem vai falar é também filho de alguém, por isso, por favor, tenha empatia” como um apelo para manter as coisas sob controle; ou um aviso de que “esta chamada está sendo gravada e o assédio será devidamente denunciado às autoridades“. Ainda assim, o abuso verbal contra funcionários do call center aumenta ano após ano.
Outro fenômeno é a queixa de clientes sobre empresas e trabalhadores de serviços pelo mais insignificante erro, tanto online como físicamente. Os chamados “black consumers” (termo extremamente racista, por sinal) exploram os comerciantes que ficam no centro das atenções por terem sido mal avaliados e com desculpas consideradas frágeis. Um caso amplamente divulgado no verão passado envolveu alguém que encomendou comida em um serviço de entrega de alimentos e exigiu o reembolso após ter alegado que um dos camarões fritos tinha uma cor estranha. O pedido transformou-se rapidamente em insultos, e o dono do restaurante sofreu um derrame devido ao stress e acabou morrendo. O Coupang Eats, serviço de entrega na qual a encomenda foi colocada, teve de anunciar que estava criando uma equipe especial para proteger os restaurantes.
Tal comportamento é frequentemente chamado gapjil (갑질 em coreano) – exercício injusto do poder por aqueles que ocupam posições de direito. Mas a sua origem pode ser chamada de raiva, devido as ações frequentemente tomadas: vozes altas, traços faciais trêmulos, apontamento de dedos, termos inomináveis, feedbacks negativo, e pedidos de compensação por motivos não razoáveis. Infelizmente isso também pode ser visto ao vivo quando se come fora ou visita uma loja. O popular K-drama Misaeng (미생), de 2014, que fala sobre a cultura empresarial coreana, expôs a situação dos trabalhadores de colarinho branco que são abusados pelos seus superiores emocionalmente voláteis (muitos coreanos elogiaram o programa pelo seu realismo). Mas mesmo as interações cotidianas na Coreia podem gerar uma fúria inexplicável aos cidadãos.
A única vez que aluguei um apartamento em Seul, fiz um acordo verbal com o proprietário para que ele pagasse pelo papel de parede novo colocado. Depois de um tempo, ele me enviou uma fatura pelo custo (cerca de 200.000 wons ou 168 dólares). Embora não fosse um valor tão significativo, lembrei que era sua responsabilidade pagar, e ele começou a gritar no topo dos seus pulmões. Eu era um “mentiroso” e um “ladrão”, gritou ele. Nem a sua filha, puxando-lhe o braço por vergonha, conseguiu impedi-lo. Ele não é o único a sofrer desta condição; desde 2015 é reconhecido que cerca de cinquenta por cento dos adultos coreanos são afetados por um “distúrbio de controle de impulsos” – que, traduzindo, nada mais é do que um problema de gestão da raiva.
Não se trata de um novo desenvolvimento. Há vinte anos atrás, em 2002, foi publicada uma tradução coreana do monge budista vietnamita Thich Nhat Hanh do livro “A Raiva” (título original: “Anger: Wisdom for Cooling the Flame”), vendendo mais de um milhão de exemplares. Este e o livro de 2015 “Am I Now Suffering from Impulse Control Disorder?” são considerados clássicos do gênero. Não que eles pareceram ajudar. O “crime movido pela raiva” (em coreano, bunnohyeong beomjwoe 분노형 범죄) está presente nas notícias quase todos os anos.
Mesmo antes do Coronavírus ter mudado toda a vida dos coreanos, em 2013, houve também um homicídio devido ao barulho. Em 2017, ocorreram duas mortes notórias; ambas foram atribuídas à raiva temporária dos agressores. Em 2018, um furioso de vinte e poucos anos e o seu irmão, agrediram e esfaquearam um trabalhador num cibercafé em Seul cerca de oitenta vezes durante uma pequena discussão, matando a vítima. Em 2019, um homem ateou fogo ao seu apartamento e atacou residentes que estavam em fuga. Cinco morreram e 13 ficaram feridos como resultado, e não se surpreendam com o motivo: inicialmente disse que estava zangado por causa dos alugueis não pagos.
Alguns peritos atribuem a atual “epidemia” de abuso de crianças na Coreia também a esta corrente de raiva, dirigida contra os mais vulneráveis. Um artigo do diário nacional Donga Ilbo, do professor e sociólogo Koo Jeong Woo, cita um estudo na Universidade Nacional de Seul para explicar a situação atual: 14,7% dos coreanos experimentam raiva a um nível considerado “grave”; isso é aparentemente seis vezes mais elevado do que na Alemanha. Koo não está sozinho nessa campainha de conscientização e alarme. Ryu Chang Hyeon, presidente da Associação para a Gestão da Raiva da Coreia (KAMA), vê uma razão culturalista (sim, esta organização é real).
“Os coreanos não resolvem os problemas através da conversa” e “a erupção de raiva é racionalizada como normal ou máscula“, argumenta Ryu. Ele usa como exemplo o comportamento comum dos homens coreanos que se “intoxicam” em público. Para eles, abusar verbalmente dos outros é normalizado, e, no entanto, isto nem sempre é corrigido por aqueles que os rodeiam. Recentemente, o crime provocado pela raiva ganhou um termo adicional: hyeonsil bulmanhyeong 현실불만형, que significa “devido à insatisfação com o presente”. Os casos de agressão em geral estão diminuindo porque Covid tornou difícil a interação humana, mas o crime violento atribuído à infelicidade com a vida permanece estável.
Juntos, Koo e Ryu citam múltiplos fatores sociais. Ryu acredita que “a diferença social entre ricos e pobres, para não falar da escassez emocional e das formas inadequadas de lidar com o isolamento social, está tornando os indivíduos incapazes de conviverem em sociedade“. No resumo de Koo, “os pesquisadorem citam a concorrência excessiva na nossa sociedade, a recessão econômica, a desigualdade e o excesso de individualismo como o combustível que criou esta ‘sociedade do ressentimento’ ou ‘sociedade da raiva‘”.
O quadro é de um país quebrado, onde muitas pessoas dizem não ter nada para viver. Além disso, um grande segmento da população está enfurecido pelo país não funcionar corretamente e pelas regras não terem importância, de acordo com uma reportagem especial sobre a raiva da conceituada revista Sisain, em Setembro. As conclusões, centradas nos comentários do YouTube sobre as principais notícias coreanas desde que o presidente Moon Jae In tomou o poder em 2017, revelaram que os coreanos têm um incrível desprezo pela “elite” e entidades proeminentes – incluindo autoridades de aplicação da lei e organizações da sociedade civil. Há pouca confiança de que alguém no comando faça o que está certo.
Essa raiva, ao invés de impulsionar a mudança social, é expressa como violência contra aqueles que são vistos como fracos: trabalhadores de atendimento ao cliente, vizinhos “mansos”, pequenas empresas, crianças e mesmo vítimas de crime. “Uma considerável libido humana, tanto oculta como em exposição total, por prazer, é impulsionada pelo abuso de outros em fóruns digitais [coreanos]“, observa o escritor do relatório Sisain. Em 2017, a raiva mobilizou milhões de coreanos para manifestarem-se contra um governo corrupto e exigirem que a presidente se demitisse. Estavam zangados, alegando que o governo não poderia ter permitido que um cidadão comum – a melhor amiga da presidente – tratasse dos assuntos do Estado. Agora a raiva é considerada como algo que pode destruir o país.
Fonte: Texto originalmente publicado em inglês no site do Korea Exposé e traduzido pelo site Koreapost.
Se Woong Koo
Obteve seu Ph.D. da Universidade de Stanford e ensinou estudos coreanos em Stanford, Yale e Ewha Women’s University. Escreveu para o The New York Times, Foreign Policy e Al Jazeera
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