
“Conhecer é resolver. Conhecer o país, e governá-lo conforme o conhecimento, é o único modo de livrá-lo de tiranias. A universidade europeia há de ceder à universidade americana. A história da América, dos incas para cá, há de ensinar-se no pormenor, ainda que não se ensine a dos arcontes da Grécia.
Nossa Grécia é preferível à Grécia que não é nossa.
Nos é mais necessária”.José Martí
Nossa América, janeiro de 1891, Nova York e México [1]
Terceiro mundismo, chamam uns; subdesenvolvimento, chamam outros, mas o nome mais adequado à nossa realidade provavelmente seja o da dependência inerente ao lugar e à função que ocupam nossas sociedades no moderno sistema mundial. Essa situação teve altas e baixas, como toda realidade histórica verdadeira. Assim, desde 1990 esta realidade foi a de uma visão do mundo que propunha refundar nosso futuro sobre o pior de nosso passado – aquele da disjuntiva entre civilização e barbárie.
Esta visão – que se apresentou a si mesma com o nome de neoliberalismo –, levou-nos de volta àquela circunstância da qual José Martí podia dizer em 1883 que: “como jovens em estação de amor lançam os olhos ansiosos pelo ar azul em busca de um galhardo noivo, assim vivemos suspensos de toda ideia e grandeza alheia, trazendo a marca da França ou da América do Norte; e em plantar velhacamente em solo, em certo Estado e em certa história, ideias nascidas de outro Estado e de outra história, perdemos as forças de que precisamos para apresentar-nos ao mundo – que nos vê sem amor e como entre nuvens – compactos de visão e em marcha, oferecendo à terra o espetáculo não visto de uma família de povos que avança em passos iguais em um continente livre“.[2]
É justo notar que esta estação de amor não era nova entre nós, nem afetava apenas a intelectualidade que buscou ser útil aos Estados neoliberais. Incluiu, também, os herdeiros daqueles que tinham buscado antes, em outras correntes ideológicas, apoio a aspirações de progresso econômico, justiça social e democracia de ampla base popular, garantidos por Estados nacionais plenamente soberanos.
Desta busca temos um belo exemplo precoce nas reflexões que dedicou o jovem comunista cubano Julio Antonio Mella (1903-1929) ao legado cultural e político de José Martí. Para Mella, cuja visão do mundo estava marcada pelo empenho em completar a independência política de Cuba, mediante uma revolução que abrisse passagem ao socialismo em seu país, a compreensão do legado martiano passava “no caso de Martí e da revolução, tomados unicamente como exemplos,” pela tarefa de ver o interesse econômico e social que “criou” o apóstolo, seus poemas de rebeldia, sua ação continental e revolucionária; estudar o jogo fatal das forças históricas, o rompimento de um antigo equilíbrio de forças sociais; desentranhar o mistério do programa ultrademocrático do Partido Revolucionário, o milagre —assim parece hoje— da cooperação estreita entre o elemento proletário das oficinas da Flórida e a burguesia nacional; a razão da existência de anarquistas e socialistas nas fileiras do Partido Revolucionário, etcétera, etcétera.[3]
Mella, como vemos, não desejava limitar a exposição do problema à caracterização de uma realidade a partir de um esquema pré-concebido, e sim ampliá-lo em busca das razões de sua vitalidade e de seu potencial transformador. Tratava-se, resumindo, de atender, no específico, ao proposto no geral por Engels em seu artigo sobre a passagem do socialismo utópico ao científico por meio da análise do processo histórico que levava de um a outro. [4]
No plano político, Mella expôs a necessidade desta análise histórica com singular clareza. Em particular, ressalta a necessidade de chegar a compreender três aspectos pontuais do legado martiano no plano político-cultural: o caráter “ultrademocrático” do programa do Partido Revolucionário Cubano; a cooperação estreita “entre o elemento proletário das oficinas da Flórida e a burguesia nacional” no marco desse programa, e a razão da presença “de anarquistas e socialistas” no Partido.
Mella fazia estas perguntas em 1926, aos 23 anos de idade, que já incluíam uma importante experiência como militante em organizações revolucionárias, incluindo a de ter contribuído para criar o primeiro partido comunista de Cuba. No entanto, os elementos de referência necessários para encontrar as respostas que buscava ainda não estavam disponíveis em seu entorno, salvo talvez a defesa do método marxista como critério de ortodoxia como fizera Lukács em 1922, a que faltava um longo caminho a percorrer antes de estar disponível em espanhol.
Outros elementos ainda não disponíveis naquele momento eram conceitos como os de hegemonia, bloco histórico e intelectualidade orgânica, que Antonio Gramsci elaboraria em seus Cadernos do Cárcere, entre o final da década de 1920 e o princípio da de 1930. Outra importante ausência era a do conceito de formação econômico-social elaborada por Marx em suas notas preparatórias para a redação do Capital, e intuída com especial agudeza por José Carlos Mariátegui em seus 7 Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana, que seria publicado em Lima em 1928. E outra ainda seria a do debate em torno dos processos de libertação nacional que acompanhariam a desintegração do sistema colonial mundial a partir da década de 1950.
Essas carências tornam ainda mais admirável a precisão com que Mella identificou no pensar e no fazer martianos contribuições cuja importância não fez senão confirmar com o tempo. Isto fica evidente, por exemplo, nas experiências do chamado progressismo latino-americano da última década, tão capaz de conquistar o governo por via eleitoral como limitado em sua capacidade de iniciar processos sustentáveis de transformação social e política em nossos países.
O que foi percorrido no século XXI revela a necessidade de construir nossas opções de futuro a partir de um melhor conhecimento e de uma maior compreensão de nosso passado. Para isso, ainda, tem especial importância o fato de que, se bem os seres humanos fazem sua própria história, esta tarefa tão frequentemente inconsciente é realizada em circunstâncias que nos foram legadas pelo passado. Com isso ocorre, como disse Marx, que a tradição de todas as gerações mortas oprima “como um pesadelo” o cérebro dos vivos,[5] levando-nos às vezes a impor-nos metas e métodos alheios à realidade em que vivemos.
A isso se referia por exemplo Immanuel Wallerstein quando em 1983 – do realismo pragmático característico de sua cultura de origem – afirmava que o comunismo “é a Utopia, ou seja, o nada. […] Não é uma perspectiva histórica, e sim uma mitologia corrente.” Ao contrário, acrescentava, o socialismo é um sistema histórico realizável que pode um dia ser instituído no mundo. Não existe interesse algum por um “socialismo” que pretende ser um momento “temporário” da transição para a Utopia. Só existe interesse por um socialismo concretamente histórico, um socialismo que reúna o mínimo de características que definem um sistema histórico que maximiza a igualdade e a equidade, um socialismo que incremente o controle da humanidade sobre sua própria vida (a democracia) e liberte a imaginação.[6]
Um século antes, José Martí já advertira sobre a necessidade de “por alma com alma e mão na mão os povos de nossa América Latina.” E hoje, como nunca, podemos entender que apenas oito anos depois achou necessário insistir na necessidade de construir nossa própria universalidade a partir de nossas particularidades, a partir de nossa Grécia, a que nos é mais necessária.
A esta luz, podemos dizer de novo que vemos “colossais perigos” e “maneira fácil e brilhante de evitá-los”, pois “adivinhamos, na nova acomodação das forças nacionais do mundo, sempre em movimento, e agora aceleradas, o agrupamento necessário e majestoso de todos os membros da família nacional americana”. “Pensar é prever”, acrescentava, e essa previsão anunciava a importância de ir aproximando o que há de acabar por estar junto. Se não, crescerão ódios; estar-se-á sem defesa apropriada para os colossais perigos, e se viverá em perpétua e infame batalha entre irmãos por apetite por terras.[7]
Referências:
[1] Nossa América, janeiro de 1891, Nova York e México. http://www.ciudadseva.com/textos/otros/nuestra_america.htm
[2] “Agrupamento de povos”. La América, Nova York, junho de 1883. VII, 324 – 325.
[3] “Glosas ao pensamento de José Martí. Um livro que deve ser escrito”. 1926. https://www.marxists.org/espanol/mella/mella-textos-escogidos-tomo1.pdf 263-270
[4] Engels, Frederico: “Do socialismo utópico ao socialismo científico” (1880). https://www.marxists.org/espanol/m-e/1880s/dsusc/index.htm
[5] O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte.(1851) Fonte: C. Marx e F. Engels, Obras escolhidas em três volumes, Editorial Progresso, Moscou 1981, I: 404-498. https://www.marxists.org/espanol/m-e/1850s/brumaire/brum1.htm
[6] O Capitalismo Histórico. Siglo XXI Espanha, 1988:101
[7] “Agrupamento de povos”. La América, Nova York, junho de 1883. VII, 325. Martí faz uma referência evidente à guerra travada pelo Chile entre 1879-1883 contra o Peru e a Bolívia pelo controle das jazidas de nitrato do deserto de Atacama, cuja memória bem pode iluminar os conflitos internos gerados em diversos países pelo controle de jazidas de lítio.
Fonte: Texto publicado originalmente no site Diálogos do Sul.
Link direto: https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/cultura/77017/julio-antonio-mella-jose-marti-e-a-importancia-de-conhecer-o-passado-para-construir-o-futuro
Guillermo Castro H.
Colaborador da Diálogos do Sul. Visite meu blog martianodigital.com
Alto Boquete, Panamá, 28 de setembro de 2022
Tradução: Ana Corbisier
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