
“Os Desertores“ (2019) é mais um drama policial de Hong Kong que mostra a evolução qualitativa da filmografia chinesa nas últimas décadas. Afastado dos antigos conceitos de filmes e seriados de ação da Hong Kong de 1990 que envolviam muitas cenas de luta e uso de artes marciais, esta produção envolve uma mixagem de movimentos, sentimentos e personagens que podem ter interpretações múltiplas. Culturas, estilos, conceitos e visões filosóficas confundem-se, revelando as contradições e os problemas de uma das cidades mais complexas do mundo contemporâneo.
A história principal do seriado gira em torno de um grupo de policiais do departamento de investigações do Quartel General Regional da Polícia de Kowloon Ocidental. Sob o comando do inspetor Sheung Sing (Wai-Ho Yuen), este grupo de policiais sofre com o constante abuso de poder por parte da Comissária Assistente Man Hei-wah (Kara Wai) que ambiciona atingir o comando da polícia por meio da manipulação e de diversos tipos de artimanhas que violam boa parte dos códigos éticos.
Diferente de outros tradicionais filmes e seriados de Hong Kong, onde é possível definir de forma mais clara os ’’vilões’’ e os ’’mocinhos’’, “Os Desertores” deixa essa ideia em aberto para o julgamento dos espectadores. Para um espectador ocidental que desconhece aspectos da cultura chinesa, este problema não seria insolúvel, pois a questão do abuso de poder- uma das tônicas centrais do seriado- é sempre visto como uma questão individual. No entanto, para um chinês que conhece bem ou valoriza os princípios confucianos, todos os personagens seriam condenáveis, pois todos são incapazes de cumprir o seu papel social, e seria disso que derivariam as tragédias e os dramas que ocorrem ao longo do seriado.

Disso conclui-se que, com a exceção dos criminosos vietnamitas- que são importantes para a trama, mas não os principais personagens-, não existe uma distinta linha entre bons e maus no sentido ético confuciano. O sentimento que se desenvolve ao longo de toda a obra é de que o problema encontra-se na estrutura da polícia que é incapaz de renovar-se para o novo momento histórico da China e de Hong Kong. Portanto, existe uma profunda reflexão e crítica social a instituição.
O seriado foi produzido a partir de uma parceria entre a Companhia de Transmissão Televisiva de Hong Kong (TVB), a Tencent Pictures e a iQiyi. O roteirista Zhu Jingqi e o diretor Su Wancong, responsáveis pela organização e o desenvolvimento do seriado, são experientes e reconhecidos por obras de grande sucesso no cinema asiático. Zhu Jingqi dirigiu seriados que retrataram importantes problemas contemporâneos presentes em Hong Kong, como a violência representada pelo crime organizado das máfias e o conservadorismo presente nas relações sociais.
Outro dado importante é que “Os Desertores” foi desenvolvido a partir da inspiração da história de policiais de Hong Kong enterrados no cemitério público Jardim Gallant. Este cemitério foi inaugurado em 1996, onde recebe e armazena apenas restos mortais de pessoas que tenham feito contribuições extraordinárias para a sociedade, como médicos, bombeiros e policiais. Entretanto, a polícia de Hong Kong sempre é um tema controverso, levando em conta as reformas introduzidas pela Lei Básica de Hong Kong– uma espécie de constituição da Região Administrativa Especial- e o estabelecimento do princípio Um País, Dois Sistemas– Princípio político proposto por Deng Xiaoping de uma reunificação pacífica das áreas de Macau, Hong Kong e Taiwan a partir da coexistência entre o capitalismo e o socialismo.

Nos dias atuais, a imagem mais comum de Hong Kong entre os ocidentais é de uma sociedade desigual e extremamente repressiva. Essa ideia não começou com os protestos secessionistas de 2019, e nem mesmo com a famosa ’’Revolução dos Guarda-Chuvas’’ em 2014- ambos movimentos de caráter anticomunista e pró-Ocidente. Na verdade, essa é uma história que começa no século XIX com a ocupação britânica da região.
Até 1841 não existiu na China nada semelhante ao que conhecemos como Polícia, isto porque trata-se de um termo originado na tradição greco-romana. A ideia de policiamento no ocidente ganha profunda relação com a manutenção da ordem pública nas cidades europeias durante os séculos XVII e XVIII, e tem a sua institucionalização enquanto órgão de Estado influenciada pela ideia hobbesiana de que o monopólio da força era necessário para evitar que ’’os homens violassem a liberdade uns dos outros’’. Logo, a polícia profissional no ocidente nasceu para guardar a ordem pública dos cidadãos proprietários, assim como boa parte do sistema jurídico e político lockeano e iluminista ocidental.
Na China, especificamente na Dinastia Qing (1644-1911), o que conhecemos por polícia costuma ser associado ao Exército ou Batalhão do Estandarte Verde. Entretanto, isso é polêmico, pois os grupos militarizados que atuavam na função de segurança não tinham nenhuma similaridade com o que conhecemos por polícia. Historicamente, segundo aponta o historiador John Fairbank, a força militar dos Qing foi constituída desde uma nobreza militar rural que era parte do funcionalismo público provincial.

Tanto o Estandarte Verde quanto o Exército das Oito Bandeiras– grupo armado Manchu liderado por Nurhaci que derrubou a Dinastia Ming (1368-1644) no século XVII- eram instituições militares. Não havia a diferença conceitual entre o que é militar e civil neste período. Mesmo hoje, não existe essa clara separação na China, pois os assuntos civis e militares sempre andam juntos- o comandante em chefe do Exército Popular de Libertação (EPL) é o líder do Partido Comunista Chinês (PCCh).
O Estandarte Verde era na prática uma força militar auxiliar que participava de guerras, suprimia revoltas, mas que também compunha as instituições políticas de províncias. A função era a guarda da “harmonia” e da segurança social local. Algo bem diferente do conceito de polícia, conectado com ideias morais na organização e na prática.
A Força Policial de Hong Kong foi criada em 1841 pelos britânicos como parte do conjunto de leis extraterritoriais impostas com o objetivo de levar para a China os principios ’’liberais civilizados’’. Ainda que o conceito de polícia profissional fosse o mesmo que existia na Europa, o que prevaleceu na prática desde o início foi a corrupção, o paramilitarismo e a formação de sindicatos criminosos que eram ligados a traficantes e mercenários britânicos e chineses. Parte dos Han que compunham a administração colonial e serviam os Qing participavam ativamente disso.
Entretanto, por outro lado, todos os órgãos coloniais repressores que foram estabelecidos em áreas como Irlanda e África do Sul, foram replicados. Uma violenta segregação racial- assunto esquecido atualmente- que era mantida por essa polícia colonial até a Segunda Guerra Mundial manteve a prática de castigos físicos como a flagelação corporal por meio de chibatadas. Segundo Frank Dikötter, no auge das punições físicas, entre 1865 e 1875, a maioria das flagelações públicas ocorriam sem nenhuma espécie de julgamento.
Esta estrutura colonial de 155 anos, caracterizada pela corrupção, abuso de poder, nepotismo e outras práticas, ainda é fortemente presente em Hong Kong a despeito de todas as iniciativas de solução. Em diversas cenas, a Comissária Assistente Man Hei Wah esbofeteia os seus subordinados. Existe também um claro choque geracional entre os policiais mais velhos, que buscam prosseguir com as redes de relacionamento para a ascensão na carreira, como o superintendente chefe Kan Kwok-chu (Shing-Hung Hui), e os mais jovens que desejam acabar com as antigas práticas corruptas e nepotistas, como o também superintendente chefe Samuel Ching (Chi-Yin Wong).
Inclusive, é curioso observar ao longo do seriado que em todos os embates ocorridos entre os policiais superiores e mais velhos, e os inferiores e mais jovens, as práticas e as normas institucionais atrapalhavam qualquer espécie de mudança. Em outras palavras, é evidenciado um forte aspecto carreirista e burocrático que apenas pode ser enfrentado de fora para dentro das instituições que estão falhando com as suas funções.

Embora o governo central na China busque modificar estas e outras práticas, exploradas ao longo do seriado, subentende-se que o problema é longe de ser administrativo ou burocrático. Durante muito tempo, o PCCh buscou abordar o problema por esta via- não por acaso Macau e Hong Kong detém o título de Região Administrativa Especial- que demonstrou os seus limites em tempos recentes. O princípio de Um País, Dois Sistemas funcionou em um determinado estágio da Reforma e a Abertura para reintegrar as regiões Hong Kong, Macau e Taiwan, porém existe um problema político grave.
A estrutura híbrida das instituições, cuja polícia é apenas um exemplo, cria barreiras para a reintegração dessas regiões e cria uma crise de identidade. Muitos cidadãos de Hong Kong sabem que são chineses, mas não se sentem parte da China, e o mesmo começa a ocorrer em Taiwan. A avançada ocidentalização cultural nestas áreas é apenas parte do problema.
Diferente da China que passou por um salto quantitativo e qualitativo nos últimos 30 anos, Hong Kong- que já era decadente na década de 1980- estagnou. As poucas variações no modelo político e institucional desde 1997 refletiram-se nas esferas social e econômica de Hong Kong. Existem dificuldades concretas para as pessoas viverem e morarem com dignidade na cidade, e a desigualdade social e econômica permanece gritante. Ao longo deste período, uma geração inteira foi educada sob estas condições híbridas. Essa geração não conseguiu identificar-se totalmente na China da Reforma e da Abertura, e ainda constrói a identidade da nova Hong Kong. Disso emergem uma série de contradições que explodem com as manifestações secessionistas de 2014 e 2019.

Embora a aprovação da introdução da Lei de Segurança Nacional na Lei Básica de Hong Kong seja o início de uma mudança neste sentido, a política é que exercerá o papel decisivo. Após tantos problemas na década passada, o governo central chinês tem tentado dar maior atenção para questões básicas como habitação e emprego na região. Hong Kong será muito importante para os próximos planos quinquenais chineses e o funcionamento da própria integração regional com os países do sudeste asiático. Além disso, Hong Kong também é uma questão de integridade e segurança territorial da China.
Por fim, vale ressaltar que uma das sentenças mais importantes que ecoa durante boa parte dos episódios do seriado é: ’’A polícia serve ao povo de Hong Kong’’. Isso é contraposto a uma outra frase que é constantemente dita pela Comissária Assistente Man Hei-wah: ’’Quanto mais autoridade a polícia detiver, mais segura será Hong Kong’’.
Essa contraposição de princípios políticos não é acidental, é fruto dessa crise de identidade da Hong Kong reintegrada a China. Servir ao povo está entre as principais palavras de ordem do PCCh, enquanto que a relação entre autoridade policial e segurança é uma parte intrínseca dos princípios hobbesianos. Dado o repertório dos produtores do seriado- cidadãos de Hong Kong e críticos do modelo de relações sociais da cidade-, não surpreende que esta também seja uma questão sem resposta. Poderia Hong Kong superar estas contradições, assim como a polícia, assumindo uma nova identidade?

Os esforços do governo chinês neste campo não tem sido poucos. Na polícia, em ocasião dos 25 anos da reintegração de Hong Kong à China neste ano, uma série de medidas modificando uniformes, cumprimentos e até mesmo disciplinas curriculares tem sido realizadas no sentido de combater os problemas aqui apontados. Problemas que os próprios chineses atribuem a um legado colonial existente na cidade e nas próprias instituições, mantido graças a um tipo de interpretação existente do princípio Um País, Dois Sistemas.
Portanto, o desafio apresentado pelo seriado tem uma natureza política e histórica do tempo presente que problematiza o custo do prosseguimento da política Um País, Dois Sistemas. Estes fatos apontam na direção de uma reflexão da sociedade de Hong Kong e também da China sobre esta política. Uma conclusão possível sobre isso é que existem graves limites nesta política desenvolvida por Deng Xiaoping, resultante não só de problemas institucionais, mas também políticos e ideológicos. Pode Mao e Hobbes prosseguir convivendo no limite espacial e ideológico do princípio de Um País, Dois Sistemas?
Referências:
DIKÖTTER, Frank. ‘A paradise for rascals’: Colonialism, punishment and the prison in Hong Kong (1841-1898). In: Crime, Histoire & Sociétés. Vol: 8, Nº 1, 2004, pp. 49-63.
FAIRBANK, John. China: A New History. Editado por The Belknap Press of Havard University Pres, 2º ed., Londres, 2006.
GLOBAL TIMES. HK police bid farewell to “Yes, Sir”; changes remove colonial marks, bring back memories of ending century-long humiliation in 1997. 2022. Disponível em: https://www.globaltimes.cn/page/202207/1269563.shtml.
IMDB. Tie Tan. 2019. Disponível em: https://www.imdb.com/title/tt10141612/.
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