A Sociedade Internacional em perspectiva comparada

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Um princípio básico do que chamamos de sistema internacional westfaliano é a presença de algumas potências militares, econômicas e culturais dentro de uma determinada região, que funcionam como um sistema de pesos e contrapesos no balanceamento do poder da mesma. No caso específico de nossa discussão, esse sistema internacional pode ser exemplificado mais claramente na Europa do século XVII, como bem colocado por Paul Kennedy: :“Nenhum bloco dinástico-militar isolado seria capaz de tornar-se senhor da Europa(1989; p.39).

Apesar de todo o domínio territorial dos Habsburgo, a Europa não tinha de lidar com a ameaça da construção de um império mundial. A presença da poderosa dinastia Valois na França, da Inglaterra, dos turcos e do império russo a Leste, faziam com que aquele sistema funcionasse dentro de uma ordem tensa, porém dentro de uma estabilidade geral. A Europa da Idade Moderna foi palco de guerras territoriais, dinásticas e religiosas, era uma região pouco convidativa para viver, mas com seu equilíbrio de poder garantido.

Das invasões francesas à Itália, à União Ibérica de 1580, os países europeus alternavam-se na luta pela manutenção de um equilíbrio que os preservasse de um domínio tirânico imperial. Logicamente, a família Habsburgo aproximou-se fortemente de ser compreendida como a grande dominadora da Europa, mas seus rivais nunca permitiram que essa vantagem fosse traduzida em submissão. A comparação de Kennedy (1989) com o urso acuado (Habsburgo) pelos cães (seus inimigos) é clara a esse respeito.

Este equilíbrio de poder estava em contraste com a tentativa de formação de um império universal, tal qual imaginado pelos Habsburgo e pelos entusiastas do Sacro Império Romano Germânico. Durante esse período da história europeia vemos a disputa acirrar-se entre as duas possíveis formas de ordenar o sistema internacional europeu. A ideia de raison d’etat consolida-se como a principal ameaça à formação de um império cristão na Europa – comandado pelos Habsburgo, logicamente.

Fazendo com que cada Estado – inaugurado pela França sob o comando do cardeal Richelieu – passe a buscar seus interesses no concerto das nações, a raison d’etat indiretamente contribuía para pavimentar a consolidação de uma ordem internacional baseada na correlação de forças, o que seria a marca da ordem westfaliana (KISSINGER, 2007). Esse equilíbrio, que nascia por acaso e acabaria por dominar as discussões europeias nos séculos seguintes mostraria ter um fôlego impressionante. Das ameaças de Napoleão até as de Hitler, o equilíbrio foi a busca incessante naquele continente.

Durante boa parte do século XX, o equilíbrio de poder no sistema internacional foi garantido pela bipolaridade entre EUA e URSS. Ambos com extensa capacidade militar, que chegou ao ponto de garantir a destruição mútua em caso de guerra. Logicamente, nesse momento temos um equilíbrio de poder que difere da ordem westfaliana tradicional, por ser baseado no equilíbrio de somente duas potências, mas numa perspectiva comparada é inevitável ver as semelhanças entre os dois casos. Mesmo que não usemos ipsis litteris a expressão, o equilíbrio esteve mantido na região e no mundo.

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Esse equilíbrio esteve duramente ameaçado, e em nossa opinião chegou mesmo a desaparecer, com a dissolução da URSS em várias repúblicas menores e a Federação Russa. O desmoronamento de um dos pilares que mantinha o equilíbrio no sistema internacional facilitou a erosão da ordem westfaliana, ocasionando um inchaço das atribuições dos EUA e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no Ocidente e em boa parte do resto do mundo. Após o ano de 1991, quando a URSS deixa de existir, testemunhamos uma Europa dependente militarmente da OTAN; uma Rússia decadente e uma Ásia ainda com pouca expressão no cenário internacional, um quadro que iria manter-se até, no mínimo, em 2008, quando a crise internacional que começou nos EUA ameaçou deixar em estado crítico suas finanças.

Ou seja, a partir do fim do século XX, vivemos um período atípico na História, onde uma superpotência domina de forma inconteste o sistema internacional. Ao analisarmos criticamente, mesmo hoje, em 2017, a China ainda se apresenta como um potencial rival, mas ainda muito distante da capacidade bélica estadunidense; a Rússia começa a reerguer-se, mas a passos lentos; e a União Europeia precisa melhorar e muito sua integração, principalmente nas forças armadas. Ou seja, por mais que essa ordem unipolar esteja francamente ameaçada, ela ainda se mostra muito presente na atualidade, principalmente se pensamos na capacidade de liderança política que ainda possui.

Os casos de intervenção no Egito, Líbia, Síria, Oriente Médio e mais recentemente o clima de tensão que surgiu na península coreana demonstram que apesar da decadência na capacidade de mobilizar a opinião pública – e tropas – a seu favor, os EUA permanecem como um desafio ao equilíbrio de poder no sistema internacional, funcionando como um país líder que pouco ou nada faz para aumentar as possibilidades de estabilização nesse sistema. Esse caminho de superioridade bélica começou a ser pavimentado ainda na década de 1970, com a percepção cada vez mais clara dentro do Pentágono de que uma guerra nos moldes tradicionais com a URSS seria muito difícil para as tropas estadunidenses, na medida em que a superioridade numérica dos adversários pesaria e muito na balança do conflito.

A partir daí, boa parte dos investimentos militares dos EUA voltaram-se para a tecnologia e a informação, numa tentativa de superar os soviéticos em outros terrenos que não fossem as tradicionais infantaria e artilharia. Já nesse momento é possível perceber a tentativa de tomada à frente de Washington sobre Moscou, ou seja, uma ordem internacional baseada no equilíbrio passa a segundo plano na agenda estadunidense. Com o fim do século XX aproximando-se, isso foi ficando mais claro após a saída da “corrida” por parte da URSS. Os EUA que já caminhavam para uma superioridade tecnológica contra seu principal inimigo veem-se praticamente livres de ameaças a partir de 1991. Com isso, o abismo existente entre os países que atuam diretamente no sistema internacional aumentou ainda mais.

Não há a menor dúvida de que a grande diferença que os EUA possuem sobre seus rivais é a capacidade de coletar e processar informações com alta tecnologia, e que isso contribui para uma aplicação mais efetiva de seus recursos. A disponibilidade de dinheiro – bilhões de dólares, ultrapassando dezenas de vezes o orçamento militar de outros grandes países – e principalmente a capacidade de levantar fundos para fins militares é um enorme diferencial estadunidense. Enquanto para uma sociedade pacifista como a japonesa ou a alemã, a hipótese de seus impostos serem drenados para o aumento da capacidade militar parece impensável, a não ser em questão de uma ameaça evidente, a sociedade dos EUA não só aceita com muito mais facilidade, como tem dado mostras de que aprova todo esse gasto (BERTONHA, 2011).

Sua capacidade de mobilizar tropas altamente especializadas, além da utilização do domínio tecnológico espacial, fazem com que os EUA tenham a capacidade de despejar um volume inacreditável de fogo sobre uma região em questão de minutos. O maciço investimento e a amigável relação com as empresas de alta tecnologia, sendo um de seus grandes financiadores, fez com que num misto de neoliberalismo e intervencionismo estatal, o governo estadunidense estivesse a par do que de mais moderno fosse produzido em alta tecnologia, servindo para fazer crescer o fosso que separa sua capacidade militar para o resto do mundo.

O abismo existente entre as capacidades militares dos EUA e dos seus principais concorrentes é um elemento primordial para a manutenção desse desequilíbrio do sistema internacional. Ao observarmos essa questão, comparemos: qual era a distância da capacidade militar existente entre os países controlados pela dinastia Habsburgo e a Inglaterra, por exemplo? Sem dúvida que não era tão grande quanto a que separa os EUA da Rússia, atualmente. Isso faz com que a erosão da ordem westfaliana acentue-se cada vez mais rapidamente. E a Rússia não é o único exemplo.

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A China é hoje a principal candidata a assumir o posto de concorrente direta dos EUA pelo domínio internacional, seja do ponto de vista econômico, ou militar. Ainda assim, seus investimentos militares estão bem abaixo dos praticados pelos EUA. Sua capacidade de intervenção em teatros de conflito longe de suas fronteiras é praticamente nula e muito de seu potencial ofensivo ainda se baseia no enorme contingente populacional que possui, se tornando o maior exército – pelo menos no que diz respeito à infantaria – do mundo. Apesar de seu potencial nuclear, boa parte de seus armamentos ainda necessita de modernização e isso tem sido conseguido com altos investimentos em sua maioria voltados para parcerias estratégicas com a Rússia (BERTONHA, 2011; HUNTINGTON, 1997).

No caso da Rússia, a situação é emblemática. Após ter dividido o espaço – muitas vezes literalmente – com os EUA durante boa parte do século XX, o gigante do Leste tem passado por um lento processo de modernização de suas forças armadas. Desde o início do novo milênio, com a ascensão de Vladimir Putin ao poder, testemunhamos uma tentativa de retomada do poder econômico e militar da Rússia. Por enquanto, nesse segundo aspecto o sucesso tem sido grande. A modernização de sua força aeroespacial, testada com enorme sucesso na crise síria, o desenvolvimento de novas gerações da famosa peça de artilharia S-400 e sua exportação para muitos de seus aliados fez com que militarmente a país retomasse boa parte da sua capacidade de intervenção militar. Mas ainda seguindo nosso raciocínio muito distante da capacidade estadunidense (BERTONHA, 2011).

Por fim, a União Europeia que se apresenta como um rival para o domínio dos EUA, mas que ainda precisa resolver muitos de seus problemas internos. A Europa passa por um período de integração nunca antes experimentado por esse continente, tendo a frente do processo, dois países que possuem um potencial armamentista bastante razoável – França e Alemanha -, mas que  precisa resolver questões práticas e políticas. A aceitação de novos membros ao bloco, a formação de um exército unificado, as relações com o Leste, a crise na Ucrânia aliada à extrema dependência do combustível russo, a falta de uma constituição que regulamente pontos importantes da relação dos países participantes.

Tudo isso influi para que pelo menos do ponto de vista militar a UE apresente-se mais distante dos outros concorrentes para ameaçar a hegemonia dos EUA. Sua população envelhecendo rapidamente a coloca muito atrás da China, assim como a falta de integração e o problema da legitimidade do parlamento europeu fazem com que comparada ao renovado nacionalismo russo, a Europa pareça bem distante da concorrência (HABERMAS, 2012). Isso sem tocar na saída de um importante aliado, a Grã-Bretanha, que diante de seu passado colonial ainda possui amplo domínio da tecnologia naval e aérea. Um trunfo a menos nesse jogo.

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Este artigo breve teve como principal objetivo demonstrar de forma resumida o quadro de decadência da ordem westfaliana – baseada no equilíbrio entre os principais países do sistema internacional -, sendo bruscamente substituída por uma ordem unipolar que colocou os EUA no topo do domínio militar, político, econômico e cultural do mundo. Sua capacidade de manobrar aliados, alcance praticamente ilimitado de seus armamentos, somados ao seu domínio cultural que se manifesta desde uma história em quadrinhos até o idioma que se tornou universal, o inglês, mostram que apesar dos esforços de alguns países – ou no caso da UE, um bloco -, os EUA ainda permanecem como a potência dominante nesse princípio de século XXI.

Mesmo que observada a decadência do Ocidente como um todo na sua capacidade de influenciar outros países – ou civilizações (HUNTINGTON, 1997) -ainda parece uma realidade muito distante um mundo em que os desígnios de Washington tenham um concorrente à altura. Apesar de todo o poderio chinês, a Coréia do Norte continuou a ser vítima de sanções econômicas, apesar de todo o sucesso da campanha russa na Síria, a coalizão liderada pelos EUA continua a ser um ator importante no Oriente Médio e no Norte da África, e por que não lembrar do bloqueio à Cuba mesmo com todas as manifestações das Nações Unidas contrárias a isso?

Ou seja, em nossa opinião, as análises que colocam os EUA como um ator em franco declínio no sistema internacional parecem mais com desejos do que com estudos pautados na realidade. Washington ainda manipula muito do poder mundial e contribui para que uma “nova” ordem westfaliana não se estabeleça.

Referências Bibliográficas

BERTONHA, João Fábio. Geopolítica, defesa e desenvolvimento: a primeira década do século XXI na América Latina e no mundo. Maringá: Eduem, 2011.

HABERMAS, Jurgen. Sobre a constituição da Europa. São Paulo: Editora UNESP, 2012.

HUNTINGTON, Samuel. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Objeitva, 1997.

KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potências. São Paulo: Campus, 1989.

KISSINGER, Henry. Diplomacia. Lisboa: Gradiva, 2007.

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por Anders Noren

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