Passados quase 30 anos do lançamento do filme de Bob Rafelson, “Montanhas da Lua” (Mountains of the Moon) / 1990, importante (ainda que irregular) diretor dos idos da “nova hollywood”, fica mais claro os encantos e os defeitos do filme. Lançado numa época que se vislumbrava como o início de uma hegemonia global do império estadunidense (vivíamos então o ocaso da União Soviética), o filme de Rafelson remetia ao passado de um outro império, o Britânico.
Especificamente, à extraordinária expedição empreendida pelo Capitão Richard Francis Burton (interpretado corretamente por Patrick Bergin) e o jovem e ambicioso Tenente John Hanning Speke (um Iain Glen enérgico e promissor), que atravessam a África Setentrional até alcançarem a nascente do Rio Nilo, lá pelos meados do século XIX. O fracasso nas bilheterias estadunidenses (o filme teve uma melhor recepção no exterior) reflete o estranhamento do público médio daquele país por um filme marcadamente cético com a aventura colonial, ainda que usando uma estrutura clássica e épica. Para o país que observava o colapso do seu maior inimigo, os anos 90 começavam cercado de possibilidades, e os avisos de Rafelson foram incompreendidos à época.
Ainda assim, é um grande filme, mesmo descontando a equivocada trilha sonora de Michael Small, que remete a uma orquestração pesada e épica, o que provoca uma estranha dissonância com as imagens irradiadas pelo filme. A direção segura do diretor faz a história caminhar sem sobressaltos, apresentando os personagens que levam a trama (Burton e Speke), construindo um arco dramático para ambos ao mesmo tempo trágico e digno. Acima de tudo, o competente roteiro de William Harrison (autor do livro que inspira o filme) acerta na crítica ao colonialismo inglês e suas ciladas mentais, seu racismo estrutural e do seu caráter trágico.
Mas, além do contexto histórico acertado e sóbrio (propiciado por uma competente reprodução de época), o filme constrói uma relação complexa entre dois homens muito interessantes. Se Speke é o jovem oficial inglês obcecado pela glória e suas conseguintes recompensas, Burton é o clássico intelectual da época Vitoriana, da estirpe de um Darwin, ou Lawrence (alguns anos depois); um homem de uma curiosidade ímpar, que viveu muitas vidas e de quem muito se levantou histórias e casos. Burton era o tipo de homem que adorava vestir-se de árabe e embrenhar-se nos corredores estreitos de uma cidade islâmica qualquer nos grotões da África.
Dominava dezenas de línguas e dialetos e fugia do messianismo cultural dos europeus, que acreditavam no “fardo do homem branco” (termo cunhado pelo poeta inglês Rudyard Kipling para retratar a missão colonial dos povos brancos pelo mundo “bárbaro” como uma espécie de missão civilizacional). Burton manifestava fascinação por esses povos e lugares, e por isso acaba sendo recrutado pelo tenente Speke para a empreitada.
A relação humana, contraditória e intensa que os homens estabelecem entre si e o continente que eles tentavam conquistar, mesmo que aos farrapos, é o grande trunfo da obra. Longe da saborosíssima bazófia de John Huston, “O Homem que queria ser rei”, os homens do filme de Rafelson são impulsionados por um senso galante de honra e princípios próprios dos oficiais ingleses daqueles idos, ainda que Speke sonhasse com a ascensão social e Burton desconfiasse dela.
A narrativa, clássica e elegante, dá muita solidez ao filme. Que assistido hoje, compreendidos os quase 30 anos da sua estreia até os nossos tempos, não envelheceu e sustenta ainda o interesse de quem o assiste. Estranhamente, pela ótica política, está mais atual que nunca, uma vez que o império estadunidense, outrora convicto da sua hegemonia, assiste agora os difíceis caminhos e perspectivas desse intento. E o filme de Rafelson apresenta-se, até por esse sentido, como um alerta contra a arrogância e a miopia dos povos dirigentes.
Título: Montanhas da Lua
País: EUA
Direção: Bob Rafelson
Roteiristas: William Harrison
Elenco: Patrick Bergin, Iain Glen, Richard E. Grant
Duração: 2h16min
Lançamento: 23 de fevereiro de 1990
Idioma: inglês
Legendas: português
Rene Guedes
Caro Rene, você disse tudo. vi este espetacular filme há muito anos atrás. revi-o recentemente e acredito que ele continue insubstituível como filme de aventuras baseados em fatos reais. Richard F. Burton, realmente, vem para o Brasil como é mostrado ao final dessa grandiosa película. E aqui, percorre Minas Gerais e vários estados usando todo tipo de meio de transporte. Poderiam até fazerem um filme: As montanhas de ouro ou Nas profundezas das Minas. As história desse aventureiro, escritor, tradutor é qualquer coisa de inverossímil. Conheceu quase todos continentes e fazia questão de aprender seus idiomas – inclusive e incrivelmente até o português, traduziu Camões, Kama Sutra etc. Além de percorrer parte do Brasil, esteve nos cenários da Guerra do Paraguai, conheceu parte da América Latina, os Estados Unidos de Leste a Oeste, se não me engano, quase toda a África, Índia e região e foi um dos primeiros europeus a visitar Meca e fazer o caminhos dos muçulmanos naquela cidade sagrada. Escrevo de memória e se não estou enganado novamente, morreu em Trieste na Itália. E todas as vezes que viajo, penso nele, mas minhas viagens parecem convescotes no fundo de meu quintal. Esse aventureiro, para mim, foi o mais audacioso de todos homens de que já ouvi falar. Ulisses não conta e nem Fernão Mendes Pinto, em termos geográficos deram apenas uma volta ao quarteirão…
Olá Ana, até onde sabemos o filme não foi relançado, em uma versão atualizada, remasterizada. Talvez seja possível adquirir uma cópia em sebos que vendem filmes antigos, ou pela internet.
Sua resenha é otima! Vi o filma há anos. Como consigo cópia ou rever?