Ponte dos Espiões – um resgate da Guerra Fria

Os atores Mark Rylance e Tom Hanks no filme de Spielberg “Ponte dos Espiões” (2015).

Um lançamento recente do cinema Hollywoodiano, dirigido por Steven Spielberg, trouxe à baila um episódio pouco conhecido das novas gerações, mas que marcou quase todo o período da Guerra Fria: a troca de espiões capturados entre os dois blocos em disputa. A ambientação bem-feita, a atuação sempre destacada do versátil Tom Hanks como o advogado James B. Donovan e especialmente a interpretação magistral de Mark Rylance como o Coronel Rudolf Abel permitem aos espectadores reviverem os momentos dramáticos da espionagem na Guerra Fria e a retórica de ambos os lados envolvidos.

A história, baseada no livro Ponte entre Espiões de James B. Donovan (Editora Record), parece ficção ante os fatos que se desenrolam de modo quase inacreditável. Um dos mestres da espionagem soviética, o Coronel Rudolf Ivanovich Abel (ou William Genrikovich Fisher), que vivia sob o disfarce de Emil Goldfuss, foi capturado pelo FBI após anos agindo nos EUA. Seu disfarce foi tão eficiente que apenas pela traição de um de seus comandados, o delator Reino Hayhanen, ele foi descoberto e preso. Ao contrário do traidor, recusou-se a cooperar e no ato da prisão destruiu evidências de seu trabalho.

O governo dos EUA, como forma de propaganda e para dar ares de legalidade a tudo, submeteu o espião soviético a um simulacro de julgamento com cartas marcadas. Entretanto, não contava com o fato de que o advogado indicado para a defesa, James B. Donovan, que não tinha qualquer histórica de esquerda, resolvesse assumir com coragem e coerência o seu trabalho para garantir um julgamento justo. Sofreu ameaças e tentativas de desqualificá-lo e até acusações de ser um traidor.

James B. Donovan e Rudolf Abel (foto acima). Crédito: History vs Hollywood.

Infelizmente, por escolha do roteiro, todo o desenrolar do julgamento no qual o advogado consegue questionar e desmontar todas as teses da acusação, a legalidade das ações e até as provas conseguidas, não é exibido salvo em poucas cenas. Tampouco se destaca o papel questionável do FBI que manipulou provas, testemunhos e evidências para condenar Abel. Entretanto, a sua sagacidade e a previsão de que os EUA talvez necessitassem trocar prisioneiros futuramente salvou a vida de Rudolf Abel.

Rudolf Abel em seu estúdio, no ano de 1957. Um dos maiores agentes de inteligência soviético. Crédito: Two Coats of Pain/Silverman Studios, Inc.

A captura do piloto da CIA, Francis Gary Powers, pelos soviéticos levou a uma série de negociações envolvendo como intermediário James Donovan que resultaram no início do que seria uma troca sistemática de espiões na Berlim dividida no que se tornou uma das marcas da Guerra Fria. Como foi dito, Tom Hanks desempenhou bem seu papel com a seriedade, humor fino e engajamento que caracterizam muitos de seus personagens. Mas o ator britânico Mark Rylance simplesmente domina as cenas com a interpretação perfeita do Coronel Rudolf Abel, inteligente, irônico, culto e absolutamente tranqüilo mesmo podendo enfrentar a pena de morte.

A explicação dessa tranqüilidade e coragem não está no filme e muito pouco no livro. Abel era um veterano que na Segunda Guerra Mundial infiltrou-se na retaguarda nazista, tendo desempenhado um papel fundamental na espionagem e contra-espionagem em favor da União Soviética. Portanto, estava preparado para situações extremas havia décadas.  Por outro lado, sabia que o seu país não o abandonaria e intuía que em algum momento os soviéticos teriam alguém para trocar. Espionava por ideal e não por dinheiro.

O piloto Francis Gary Powers e o ator Austin Stowell. Crédito: History vs Hollywood.

Como não poderia deixar de ser, é preciso também avaliar o filme criticamente. A despeito de denunciar a forma como foi conduzido o julgamento de Rudolf Abel, o filme busca obviamente mostrar que no confronto ideológico os norte-americanos eram moralmente superiores aos soviéticos. O julgamento e o tratamento dispensado a Gary Powers pelos soviéticos são patéticos, quase coisa dos filmes de propaganda daquela época que mostrava a URSS como uma tirania absoluta. Nada que resista a uma análise histórica e lógica rápida, até porque Powers era um mero piloto que não possuía informações relevantes e o fato de ter permitido que o avião U2 que pilotava fosse capturado quase inteiro era muito mais importante que uma confissão.

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A imagem de Berlim Oriental, uma cidade arrasada, cinzenta, oprimida, também é parte dessa propaganda subliminar. Gangues, pobreza, dirigentes toscos, mais uma vez repetem os folhetins das décadas de 60 e 70. Não se contextualiza a construção do Muro de Berlim, os vôos do U2 e o escândalo que chegou a cancelar uma cúpula entre os EUA e a URSS ao ser capturado Gary Powers. Tampouco se destaca que o avião só foi abatido, porque os soviéticos detinham armamento antiaéreo de longo alcance, algo que os EUA não tinham conhecimento e os surpreendeu.

O filme minimiza o fato de que o incidente foi extremamente favorável aos soviéticos. Estes abateram um avião que sobrevoava seu território, inviabilizando futuros vôos de espionagem. Comprovaram mundialmente a violação do Direito Internacional praticado pelos EUA e obtiveram acesso à tecnologia deste. Na troca de espiões, levaram absoluta vantagem, pois em troca de um mero piloto receberam de volta um agente de alta patente, experiente, sendo que até hoje ninguém revelou que informações obteve. Ainda assim, recomenda-se assistir ao filme e se possível ler o livro, para que se conheça como funcionava a espionagem naquela época e como as superpotências negociavam seus interesses em meio à Guerra Fria.

Título: Ponte dos Espiões
País: EUA, Alemanha e Índia
Direção: Steven Spielberg
Roteiristas:  Matt CharmanEthan Coen
Elenco: Tom HanksMark RylanceAlan Alda
Duração: 2h22min
Lançamento: 16 de outubro de 2015
Idioma: inglês, alemão e russo
Legendas: português

 

 

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por Anders Noren

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