A Primeira Guerra Mundial vista um século depois

O imperialismo é uma das principais causas da Primeira Guerra Mundial, muitos países queriam expandir. No cartum político, as nações mais poderosas estavam escolhendo os territórios que queriam controlar. Crédito: Discover ideas about World History Lessons/Pinterest.

No dia 11 de novembro completou-se um século da assinatura do armistício entre franceses e alemães na pequena cidade de Compiégne no nordeste francês. Uma finalização nada gloriosa para os anseios da Primeira Guerra Mundial, frustrante para alemães e franceses que esperavam fincar suas bandeiras um no território do outro e não a assinatura de um cessar fogo em uma cidade isolada e com pouca importância política.

Longe daquele cenário, Paris, Londres e Berlim eram alvos de greves e manifestações operárias que iam à onda da Revolução Russa. No Cairo nascia o movimento nacionalista egípcio que culmina na independência do país em 1922. O Império Austro-Húngaro havia se esfacelado em meio ao caos político e econômico com comunistas fazendo barricadas em todas as cidades. No lugar da expectativa de realização e glória, a Primeira Guerra Mundial deixou para as metrópoles imperiais europeias o caos. 

O trauma causado pelo maior conflito ocidental precedente a Segunda Guerra Mundial foi um grande impacto no mundo vitoriano. O teto de vidro dessa sociedade pré-guerra marcada pelo mal-estar da Era Vitoriana causada pela exploração e pobreza conviveu com o sentimento de frustração, pois a propaganda de que a guerra seria a realização espiritual dos indivíduos e da causa nacional foi esmagada. Essa derrota fortaleceu um inimigo tão mortal quanto a derrota militar, o socialismo.

O término- se é que dá para usar tal termo- da guerra não significou grande vitória para nenhum país europeu, ou seu império ultramar. Mesmo os Estados Unidos ganharam muito mais com a paz do que com a continuação da guerra dos europeus, significando um calote dos seus empréstimos na melhor das perspectivas. Os 14 Pontos propostos pelo então presidente Woodrow Wilson não somente foram jogados de lado, como eram irreais naquela conjuntura de ebulição e caos político e social.

Presidente dos Estados Unidos Thomas Woodrow Wilson. Crédito: Library of Congress.

Muitas vezes é esquecido, especialmente na comunidade dos historiadores, que a Primeira Guerra Mundial não terminou apenas porque a Europa não era mais capaz de lutar a guerra que iniciou por falta de materiais, mas porque havia um novo inimigo em campo, os socialistas e os nacionalistas dos movimentos anticoloniais. Entre 1917 e 1923 surgem não somente novos Estados na Europa e Oriente Médio, movimentos socialistas e nacionalistas de caráter anti-imperialista ganham espaço considerável, ainda que nem todos tenham saído vitoriosos.

Somente na Europa, o número de países que era de 21 em 1914 saltou para 28 ao final de 1923. Uma das palavras mágicas neste momento era Revolução. Eslováquia, Irlanda, regiões na Alemanha como Bremen, Baviera, entre outros eram afetadas pelo que mais parecia uma corrente elétrica, fazendo todo o mundo, daquele momento, tremer. Vladimir Lenin não estava sendo nenhum louco ao pensar que aquele mundo que estava em pleno abalo sísmico poderia cair em uma ebulição revolucionária completa. Após anos de uma guerra que ele destaca ser pelo direito de espoliação dos povos colonizados na África e Ásia, os próprios soldados dos povos moídos na carnificina se tornam os agentes do turbilhão de movimentos anticoloniais e revolucionários que ocorrem naquele período e nos anos posteriores.

“Da guerra interimperialista à guerra de classe global: entendendo etapas distintas do Imperialismo – Atualizando a teoria de Lenin um século depois”. Por Brian Becker. Para ler este artigo em inglês, clique na imagem. Crédito: Liberation School.

Aliás, fora da Europa nasceram pelo menos dois importantes movimentos que vão liderar a luta anti imperialista de dois continentes: o Movimento 4 de Maio, o desdobramento da Revolução de 1912 na China, que será importante na luta na defesa da Ásia contra o imperialismo ocidental e japonês, durante e após a Segunda Guerra Mundial; e o movimento nacionalista árabe no Egito que vai se espalhando pelas antigas províncias do Império Otomano, formando, futuramente, nos anos 30, a base da luta anti imperialista em países como Iraque e Síria. Se para as empresas financiadoras da guerra e seus governos essa situação era uma tragédia, a coisa não era melhor para as tradicionais casas monárquicas europeias e a nobreza. 

Alunos apoiam o movimento do 4 de Maio. Crédito: alphahistory.com

Os Hohrhenzolern– a família imperial alemã- perderam ao fim da Primeira Guerra o status de Família Imperial e os títulos. Os Habsburgo– família imperial austro- húngara- que outrora já haviam controlado o maior império da Europa com Carlos V (1519-1556), migrando de país para país, século após século, perderam seu prestígio a ponto de terem um reino na Hungria sem poder ter um rei coroado. Muito interessante é notar, como asseverou Eric Hobsbawn na sua tentativa de divisão cronológica da história contemporânea, que ao fim da Primeira Guerra Mundial as casas tradicionais monárquicas haviam caído, restando apenas alguns reinos nas regiões mais fronteiriças da Europa, marcando o fim em certo sentido, não somente do longo século XIX, como também de certos traços sobreviventes do antigo regime. Nada era tão significativo em relação a este fato do que a execução do imperador russo Nicolai II.

Portanto, o terror causado pela Primeira Guerra Mundial foi não este único acontecimento em si, mas suas consequências diretas, isto é, a erosão dos impérios coloniais e a Revolução Russa. Nunca houve o que se comemorar simbolicamente com o fim da guerra iniciada em 1914 para as potências beligerantes, pois ela nunca terminou satisfatoriamente para ninguém. Pelo contrário possibilitou o surgimento a nível mundial de um movimento de resistência e combate ao liberalismo ocidental representado pela URSS e os movimentos de libertação nacional. A idéia de que a população da Europa Ocidental era superior a outros povos sofreu aqui seu primeiro grande revés no século XX. Esta frustração alimentou os ressentimentos dos alemães, húngaros, italianos, poloneses, franceses e diversos outros povos que embebedados pela narrativa gloriosa da guerra, buscavam seus culpados. Se havia uma posição especial neste ranking, com certeza, ela pertencia aos comunistas.

O tabu representado pela guerra, especialmente no seu período final, ainda é forte nas lideranças políticas dos países ocidentais. A explicação resumida do armistício e do Tratado de Versalhes busca apagar este momento histórico em que houve um verdadeiro terremoto, talvez tão grande, quanto o ocorrido na Segunda Guerra Mundial. Um desastre que pôs de joelhos e na dependência de suas colônias, metrópoles que outrora impunham o canhão sobre a mesa e jamais aceitariam negociar autonomia e direitos políticos.

O triunfo da Revolução Russa em meio a este clima de caos, abrindo mesmo a porta da pacificação da Europa por levar a frente um movimento de antibelicista, garantiu o fim da carnificina. Em fevereiro de 1952, durante o XIX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, Iosif Stálin lembrava com propriedade que quando os italianos, ingleses e franceses estavam no fim da Primeira Guerra Mundial lutando pela não intervenção na Guerra Civil Russa, primeiramente pensavam no interesse de paz de seus povos, e somente depois na campanha de solidariedade a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

A própria guerra em si também passa por uma modificação conceitual. Após a Primeira Guerra Mundial, ela deixa de ser algo glorioso e lucrativo para se tornar um fardo que somente leva a carnificina e perdas econômicas. Embora ainda fosse necessária a Segunda Guerra Mundial para que as ideias de paz e cooperação ganharem maior impulso, o conflito armado de grandes proporções mostra não somente ao povo, mas as elites financeiras e políticas qual pode ser o preço a se pagar por um confronto militar.

Importante colocar que não por acaso alguns historiadores propõem a idéia do uso do termo “Segunda Guerra dos Trinta Anos’’ para caracterizar as guerras mundiais do século XX. Embora resguardadas as comparações políticas feitas pelo autor- especialmente em relação ao socialismo e ao nazismo- a ideia é interessante, embora se deva resguardar as contradições específicas de cada conflito. Mesmo assim, esta guerra determinará não somente o curso de todo o século XX no mundo, como da própria história ocidental.

No seu estudo sobre a noção de tempo, o historiador Reinhardt Koselleck vai expor a Primeira Guerra Mundial no patamar de expoente de uma crise do mal-estar existente na Era Vitoriana. Esta mudança, gerada psicologicamente pela ideia de expectativa em relação ao futuro que é uma marca indelével do período aberto com a Revolução Francesa em 1789, expõe a crise também de uma determinada sociedade em decadência. Embora Koselleck mire na prática seu exemplo dentro das trincheiras, o conceito pode ser usado no tratamento dos impérios e suas colônias também. A abertura de um novo tempo após aquele período é um aspecto essencial que ainda se encontra em compreensão e estudos, pois determina uma mudança radical e ruptural dentro do mundo moderno liberal, consolidado na Europa do início do século XIX, que sustentou o próprio imperialismo.

O historiador alemão Reinhart Koselleck. Crédito: Wikipedia.

Entender isso é importante, pois a Primeira Guerra Mundial potencializou o fascismo enquanto uma resposta violenta dessa sociedade da Era Vitoriana a ação de setores populares, socialistas e povos coloniais. Estes que atuavam na direção da constituição de direitos sociais e nacionais, contestando este antigo ordenamento internacional dentro do próprio conflito. Herdeiro e canalizador das frustrações deixadas pela guerra, o fascismo pela violência tenta impor-se sobre estes setores mediante uma crise não somente política e econômica, mas principalmente ideológica e civilizatória da própria ideia de modernidade liberal.

Enfim, repensar esse período histórico hoje, um século depois, é não somente necessário, é uma obrigação histórica. Não somente pelas importantes portas abertas durante este período, mas em um momento onde os ventos da guerra sopram do oeste para o leste e a diplomacia aparenta não funcionar mais. Refletir sobre as consequências da guerra sempre é necessário, assim como reafirmar o principio da paz mais do que nunca. O desenvolvimento e cooperação entre os países para a construção de um futuro somente é possível em um cenário de paz, o único contexto onde todos ganham.

Recomendações Fílmicas:

“Crepúsculo das águias” (1966), dirigido por John Guillerman.

“O Preço da Liberdade” (1996), dirigido por Neil Jordan.

“Feliz Natal” (2005), dirigido por Christian Carion.

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por Anders Noren

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