Aggretsuko: os abusos do ambiente coorporativo japonês

A frase em inglês lê-se o seguinte: “Vendendo a minha alma, pois sou uma escrava coorporativa”.Crédito: IGN India.

Para aqueles que acompanham mais de perto notícias e temas relacionados ao Japão e sua cultura é sabido que o cenário empresarial apresenta diversas questões problemáticas. Em especial, o mundo do trabalho no espaço coorporativo e os diversos abusos que nele ocorrem diariamente são, de forma indireta, retratados em muitos filmes e séries japonesas.  “Aggretsuko” ou “Aggressive Retsuko” (アグレッシブ烈子, Aguresshibu Retsuko) é uma série animada que une os gêneros drama, comédia e musical, baseada na personagem homônima criada pela produtora de conteúdo Yeti para Sanrio, conglomerado responsável pela comercialização e produção de diversas personagens fictícias japonesas, a mais conhecida até então é a Hello Kitt.

Aggretsuko apareceu pela primeira vez em uma série de curtas de animação da Fanworks, indo ao ar pela TBS Television entre abril de 2016 e março de 2018. A Netflix em abril de 2018 lançou a primeira temporada de 10 episódios originais, com duração de 15 minutos cada e um especial de Natal. A segunda está programada para ser exibida este ano. Em resumo, em um cenário onde mais uma vez os animais substituem os seres humanos, Retsuko é uma panda-vermelha. Tem 25 anos, é solteira e trabalha no departamento de contabilidade de uma trading japonesa. A jovem pandinha precisa enfrentar todos os dias um ambiente de trabalho pouco amigável, com colegas fofoqueiros, enxeridos e puxa-saco de um chefe machista, que praticamente não trabalha e que a agride verbalmente todos os dias.

Crédito: Netflix.

A única válvula de escape que a personagem principal encontra é cantar e gritar sozinha, ao som de heavy metal, em uma cabine de karaokê, deixando suas emoções e frustrações extravasarem. Bastante engraçada aparentemente, a série guarda em si uma situação dolorosa, triste e muito preocupante, em especial pela temática universal que resguarda. Dificilmente quem já trabalhou em um ambiente empresarial complicado, por mais pequeno, não vai entender e ver-se no lugar de Ratsuko, rindo alto das situações que já enfrentou um dia.

Ratsuko é um símbolo de trabalhadora escrava coorporativa. Crédito: Sanrio.

Ao longo do tempo, Retsuko faz amizades que irão auxiliá-la a enfrentar certas questões no trabalho. Suas amigas e colegas são mais objetivas, ardilosas e frias no relacionamento que estabelecem com as figuras masculinas e de poder na empresa. Elas afirmam suas vontades e não se deixam explorar tão facilmente, mas ao mesmo tempo necessitam sustentar uma imagem pouco compatível com a realidade: a de mulheres absolutamente resolvidas em tudo.

As amigas de Ratsuko necessitam sustentar uma imagem pouco compatível com a realidade de mulheres absolutamente resolvidas em tudo. Crédito: Youtube

Já Retsuko é uma figura bastante submissa, que apesar de tenaz, pois permanece no mesmo emprego ainda que seu quotidiano seja um tanto insuportável, ela não chega a rebelar-se jamais. E é justamente neste ponto que a série traz questionamentos importantes sobre esta realidade que atinge o Japão há décadas e é responsável também pelos diversos males que afligem uma sociedade ainda considerada “modelo” para muitos. Mais do que apenas o ambiente de trabalho, Aggretsuko parece apresentar um pouco a dinâmica das relações sociais do Japão em todas as suas dimensões.

O chefe de Ratsuko, aqui retratado na figura de um porco, é um machista bastante tradicional, que praticamente não faz nada no escritório e a chama pelos piores nomes. Crédito: IndieWire.

Talvez o ponto que mais ressaltou aos olhos desta autora foi a dificuldade de comunicação, de empatia e a extrema solidão das personagens que parecem refletir os sentimentos que os japoneses experienciam diariamente. Algo não muito diferente do que se pode ver ao caminhar pelas ruas do centro do Rio de Janeiro, se a pessoa for um pouco observadora e sensível, característica rara hoje em dia. É certo que há no enredo de Aggretsuko alguns elementos particulares à situação japonesa, a exemplo de questões que no ocidente seriam simples, parecem muito complicadas por lá, como o fato de Retsuko sentir a necessidade de esconder que gosta de ir ao karaokê.

As aparências de uma felicidade falsa e a busca por apreço nas redes sociais também são temas destacados na série. Tradução: “Nenhum outro evento é mais importante para o Instagram de uma garota que a noite de véspera de Natal!” Crédito: Imgrum • Instagram viewer.

No entanto, isto não anula a indagação dos abusos e exploração extrema dos trabalhadores, em um sistema de trabalho também muito ocidentalizado, que foi em grande parte absorvido e aperfeiçoado pelos japoneses, com suas qualidades, mas principalmente com a manutenção de seus defeitos. Em número de horas que os empregados passam no trabalho, no Japão, parece ser algo que extrapola o bom senso e a normalidade. Em um contexto social onde se considera honrado trabalhar até a exaustão; em que há até certo constrangimento em ter férias pagas; em que o patrão tem total poder sobre o seu empregado, inclusive controlando quando ele pode, ou não ir pra casa, o resultado não poderia ser diferente: uma população doente, com problemas emocionais, dificuldades de convívio social, além de suicida, podendo ser uma das diversas causas atuais do acentuado declínio demográfico.

Homens de negócios tiram cochilos em bancos do parque Hibiya, Tokyo, agosto de 1994. Crédito: Yoshikazu Tsuno/AFP/Getty Images.

Estas questões não estão retratadas na série, mas é interessante colocá-las à título de reflexão. Em julho do ano passado, o periódico eletrônico The Japan Times, especializado em noticiar acontecimentos do país em inglês, reportou que o governo japonês, través do instituto nacional de população e previdência social, fizera uma pesquisa com jovens de 18 a 34 anos, e constatou serem 42% dos homens japoneses virgens. O percentual para as mulheres aumenta um pouco para 44%. Ao mesmo tempo, outra pesquisa realizada em 2017 pelo governo, também constatou que 47,2 das pessoas casadas no Japão não fazem sexo.

Crédito: Sorein Dreier.

Nos dias de hoje, o país ainda possui um número de meio milhão de “Hikikomori”, cidadãos que decidiram viver confinados em suas casas, sem jamais colocarem o pé para fora, mantendo contato com o mundo apenas pela internet. A indústria de bonecas humanas já faz com que muitos japoneses troquem seus parceiros para partilhar a vida com um objeto que, na realidade, não se comunica com eles. Há serviços em Tokyo onde se pode alugar um(a) amigo(a), ou um(a) namorado(a). Em 2017, entre jovens de 15 a 18 anos, o registro oficial anunciou um aumento significativo dos suicídios, foram 250 no total, três vezes mais que no ano de 1996. Entre os problemas relatados nas cartas de suicídio estavam: dificuldades com familiares, bullying e angústia em relação ao futuro.

Crédito: The Japan Times.

Deste contexto é possível retirar uma conclusão: há uma espécie de reação psicológica, nada saudável, mas mesmo assim uma reação silenciosa, talvez até pouco perceptiva ao primeiro olhar, da população japonesa contra o seu sistema. Em uma lógica bastante doente, mas provável de existir, do inconsciente coletivo japonês a máxima do tipo: se não é possível acabar com esta estrutura de exploração, ou fugir dela, então não existe razão para continuar vivendo e que se acabe com o que a alimenta: os humanos. Sim, é uma situação trágica! Para o ocidental que lê estes números, tal realidade pode parecer-lhe um pouco distante, mas, a verdade, é que se trata de apenas uma situação um pouco mais extrema, porém que pertence ao mesmo sistema que todos estamos submetidos hoje em dia, de norte a sul, leste a oeste do planeta, com raras exceções.

No caso de Ratsuko, uma jovem que introjeta muito da violência gratuita que recebe diariamente, os exemplos são mais numerosos ao nosso redor. Em uma época que se romantiza muito a exploração desproporcional e a desigualdade social, tratando como milagre, ou heroísmo, ou até superação uma realidade em que é necessário ter três empregos para comprar artigos alimentícios básicos, vai-se submetendo a um stress cada vez maior uma geração, que explode violentamente, ou escolhe acabar com a própria vida.

E este é o problema da série Aggretsuko. Ela suaviza e torna aceitável o que é extremamente grave e deveria ser punido. Através de elementos cômicos, ou de atitudes das personagens, como a do chefe que, do nada, reconhece o trabalho de Ratsuko, de amigos bacanas que surgem no ambiente de trabalho, Ratsuko segue aceitando a sua situação e toca sua vida. No fundo, não passa de uma verdadeira escrava pós-moderna, onde além de ter de realizar o trabalho duro, é exigido dela que goste de fazê-lo e que o realize sorrindo, enquanto “leva chibatadas nas costas”… e por uma compensação salarial irrisória.

FICHA TÉCNICA:

Título: Aggretsuko
Título em romaji: Aguresshibu Retsuko
Título em japonês:  アグレッシブ烈子
País: Japão
Direção: Rarecho
Roteiristas: Rarecho
Elenco Dublagem: Kaolip, Komegumi Koiwasaki, Maki Tsuruta
Produção: NetFlix/ TBS Television (original)
Episódios: 10 + um especial de Natal
Exibição: abril de 2018 (na Netflix)
Idioma: Japonês
Legendas: português e outros

2 comentários em “Aggretsuko: os abusos do ambiente coorporativo japonês

Adicione o seu

  1. Você acha algumas músicas em sites em inglês. Coloca no site de busca aggretsuko, ou retsuko, lyrics, romaji.

Deixe seu comentário

por Anders Noren

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: