Multilateralismo e cooperação socialista contra hegemônica: 70 anos do nascimento do COMECON

Emblema e bandeira do Conselho Econômico de Assistência Mútua. Crédito: Лобачев Владимир.

Moscou, 5 de janeiro de 1949. Uma reunião de seis países socialistas europeus estabelece uma instituição de cooperação, multilateralismo e integração cujo objetivo central era combater a influência do dólar e estabelecer um mercado alternativo ao existente no mundo capitalista. Foi assim que nasceu o Совет экономической взаимопомощи (СЭВ) -Conselho Econômico de Assistência Mútua (COMECON)- há sete décadas.

Apesar da curta vida da instituição, isto é, apenas 42 anos, foi a maior instituição de integração multilateral do período da Guerra Fria, abrangendo três continentes, dez países e 450 milhões de pessoas de forma direta. No ano de 1985, a organização possuía mais de 4 mil projetos espalhados pela África, Ásia e América Latina, tornando-a depois do Fundo Monetário Internacional a principal instituição de fomento ao desenvolvimento com seus dois bancos, o Banco Internacional de Investimentos e o Banco de Cooperação e Desenvolvimento criados na década de 1960.

Em vermelho escuro – membros do bloco;
Em vermelho claro – associados;
Em rosa – membros não participantes;
Em amarelo – abservadores. Crédito: NuclearVacuum.

Uma das poucas instituições internacionais situadas fora do raio de ação do Bretton-Woods, dentro do COMECON o dólar não era usado nas transações internas, sendo o ouro com base no rublo a principal base de conversão comercial. Inicialmente, apenas países da Europa faziam parte da organização, onde se localizam os seis países fundadores- Bulgária, Hungria, Polônia, Tchecoslováquia, Romênia e União Soviética-, entretanto abrangeria Ásia e Américas, a partir das décadas de 1960 e 1970, quando a organização expande-se.

Durante décadas, a Guerra Fria e a historiografia têm colocado que o COMECON era apenas um instrumento de controle econômico sobre seus membros por parte da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) como resposta unicamente ao Plano Marshall. Entretanto, existem sérias deficiências nesta visão por ignorar tanto os documentos internos da organização, quanto suas próprias tensões e evolução ao longo das quatro décadas.

Apenas recentemente uma importante pesquisadora, Elena Dragomir, ao fazer uma pesquisa nos arquivos romenos, trouxe uma nova hipótese acerca da fundação do COMECON, onde aponta que a iniciativa não teria partido das lideranças soviéticas, mas da Romênia. Tal teoria abre precedente para pensar-se que outros países do leste também tinham interesse em uma organização de integração econômica multilateral e, entendendo isso, pode-se avaliar a própria evolução institucional da organização.

Membros

País Entrada Nota
 Albânia 1949 Deixou de participar em 1961
 Bulgária 1949
 Checoslováquia 1949
 Hungria 1949
 Polónia 1949
 Roménia 1949
 Rússia Soviética 1949
 Alemanha Oriental 1950
 Mongólia 1962
 Cuba 1972
 Vietnã 1978

 

Associados

País Entrada Nota
 Iugoslávia 1964

 

Observadores

País Entrada Nota
 China 1950 Deixou de participar em 1961
 Coreia do Norte 1956
 Finlândia 1973
 Iraque 1975
 México 1975
 Angola 1976
 Nicarágua 1984
 Moçambique 1985
 Afeganistão 1986
 Etiópia 1986
 Laos 1986
 República Democrática do Iémen 1986

 

Havia outras maneiras de relacionar-se com o COMECON para além do status de país membro permanente, que apenas 10 países possuíam na década de 1980. Existiam os membros associados, os membros observadores e os membros não-socialistas, e que dava a cada um diferentes responsabilidades e participação nas comissões estabelecidas para discussão da integração. Inicialmente estabelecidas a partir da Sessão do COMECON de Berlim em 1956, as comissões rapidamente se multiplicariam, estabelecendo os braços institucionais da organização responsáveis por coordenar o planejamento entre os países e promover o conjunto desenvolvimento dos países e instituições econômicas socialistas e contra-hegemônicas. Devido a sua condição de instituição aberta, rapidamente, a organização cresce, onde em um espaço de duas décadas tem a adentrada de quatorze países de diferentes status na organização entre 1962 e 1986.

Os países socialistas do leste europeu- mesmo a Yoguslávia que é admitida como membro observador a partir de 1964- assim como muitos na África, Ásia e América Latina viam a organização como um caminho para o desenvolvimento. No contexto do pós Segunda Guerra Mundial, a retumbante vitória da União Soviética sobre o nazi-fascismo e seu papel libertador na Europa Oriental tornou-se referência para o desenvolvimento mais igualitário e rápido para diversos países- importante lembrar da rápida industrialização e da difusão da educação e direitos básicos a uma população de um país imenso e pobre no início do século, arrasado por três grandes guerras, sendo duas invasões externas e uma guerra civil interna.

Reunião do Comitê Executivo do Conselho Econômico de Assistência Mútua em 1964. Crédito: livro “Twenty Years of the People’s Republic of Poland”.

Esse referencial não somente potencializa a luta anticolonial enquanto desdobramento da Segunda Guerra Mundial, que tomou feições abertamente anti imperialistas, como também fortaleceu a posição dos socialistas e seus projetos mundiais, incluso o COMECON. O México por exemplo, o país latino americano depois de Cuba que manteve mais íntimas relações com a URSS durante a Guerra Fria para contrabalançar o poder estadunidense, entra para organização como membro não socialista na década de 1970, após a histórica visita de Leonid Brezhnev ao país. Uma das queixas recentes de diversos pesquisadores russos da organização, por exemplo, é a balança negativa da relação da URSS com estes países que eram beneficiados com empréstimos a poucos juros e compra de matérias primas a alto preço.

A industrialização destes países foi determinada pela relação com a URSS- com exceção da Polônia, Tchecoslováquia e Alemanha já industrializadas, mas ainda assim se reconstroem após a Segunda Guerra devido a ajuda soviética-, países agrários como Romênia, Hungria e mesmo Cuba e Coreia conseguiram atingir um bom nível de industrialização nunca antes alcançado. Aqui vale uma ressalva, todos os países membros permanentes da organização tinham igual peso de voto, neste sentido, caso um projeto obtivesse negação de um dos países, ele não seria aprovado, e houve um caso neste sentido por ocasião da tese de Nikhita Khrushchev sobre a Divisão Internacional Socialista do Trabalho na década de 1960, que recebeu protestos por parte do governo da Romênia.

Com tudo, o único problema da organização era de maneira irônica seu objetivo fim, o estabelecimento de um mercado alternativo ao capitalismo mundial. No período inicial, este problema não era algo tão sentido em razão da estruturação do mercado internacional do pós-guerra, porém a partir da expansão do sistema Bretton-Woods, entre as décadas de 1960 e 1970, o mercado socialista passou a apresentar buracos e desregulações. Por exemplo, o mecanismo de preços estabelecido a partir da Sessão de Bucareste em 1959 estabelece a famosa Fórmula Bucareste, cuja a base era os preços mundiais reajustados a cada cinco anos com base no padrão ouro, teve que ser modificada ao longo da década de 1970, devido a pressão da dolarização das economias energéticas como consequência da Crise do Petróleo.

Em razão da crescente indústria energética dos países socialistas, e igualmente as reformas descentralizadoras do planejamento a partir de 1965- em especial na URSS-, os países produtores e exportadores de petróleo como União Soviética e Romênia, inundam-se de dólares. Esta situação gera uma alta de preços e desregulamentação no planejamento e mercado. Em 1975, houve uma tentativa de reforma do mecanismo de preços, entretanto o crescimento baixo e a penetração do mercado mundial causava uma disfunção interna em diversos mecanismos de planejamento que eram cada vez menos eficiente no controle sobre o mercado, pelas reformas administrativas descentralizadoras que vinham sendo aplicadas desde a segunda metade da década de 1950.

Exibição de computadores na União Soviética em um dos pavilhões de Exibições de Conquistas da Economia Nacional. Crédito: Don S. Montgomery, U.S. Navy (Ret.)

O problema não era apenas este, a desatualização da tecnologia soviética e dos demais países do campo socialista frente ao mundo capitalista que adentrava a Revolução Técnico Científica era outro fator de importância considerável, portanto eram necessárias reformas profundas não somente na economia, mas no âmbito político. Cada país neste sentido buscou um caminho de acordo com a sua referência político e ideológica, e a China, apesar de não ser parte do Conselho desde 1961, resolveu rumar também para a abertura e reforma com o objetivo de desenvolver as forças produtivas internas e adentrar na Revolução Técnico Científica já a partir de 1978. No COMECON, o primeiro dos países a assumir posições mais radicais foi a Romênia, que em 1981 já entra para o General Agreement on Tariffs and Trade (GATT-) – Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio-, e abre o caminho para muitos outros posteriormente, inclusive a URSS, já em meio a Perestroika, aderirem ao acordo.

Os movimentos ocorridos no fim da década de 1980 que levam a desagregação do sistema socialista têm diversas causas de raízes políticas, sociais, econômicas e culturais que advém não da inferioridade do socialismo, visto que enquanto ideologia ainda está no mundo presente em países da América Latina e Ásia, mas da incapacidade do modelo socialista soviético- chamado pejorativamente por vezes de socialismo real- de romper a quarentena imposta pelos países capitalistas em todos os seus níveis e esferas. O COMECON que se localiza dentro da esfera econômica não conseguiu, enquanto projeto, estabelecer um mercado mundial alternativo, e sua dissolução na década de 1990 dá-se como consequência da desagregação do modelo socialista soviético, que junto aos países do leste europeu não conseguem consolidar o projeto inicialmente estabelecido.

No ocidente, infelizmente ainda existe uma carência grande de leituras críticas para estabelecer fatores acerca da implosão do conselho, e que talvez até expliquem a desagregação do modelo socialista soviético. A disparidade de desenvolvimento entre os países do bloco, e nem o dirigismo soviético tem ligação com a destruição do projeto do COMECON, e ressoam como fracos argumentos de caráter extremamente ideológico. Os fatores que desde 1949 prejudicam o bloco eram as limitações e contradições históricas do modelo socialista soviético que tendia ao isolamento por forças externas e internas.

Com tudo, as quatro décadas de existência da Comunidade Econômica de Assistência Mútua foram responsáveis pela construção de um importante bloco econômico contra hegemônico durante a Guerra Fria, que disputou a hegemonia no mercado internacional, e que ainda sem sucesso em seus objetivos iniciais, estabelece uma importante agenda multilateral e de cooperação entre nações, que se tornou exemplar e beneficiou diversos países. Os projetos de assistência tecnológica e estrutural do COMECON foram responsáveis pela reconstrução da Europa oriental durante as décadas de 1950 e 1960 e também na assistência do desenvolvimento de uma série de países do mundo pós-colonial principalmente.

Tradução: “Às vezes conhecida como ‘Vale dos Silícios’ da União Soviética, ao ponto de ter produzido todos os computadores do bloco soviético. Mas quando o colapso soviético expôs o país à competição ocidental as exportaçõs entraram em colapso”. Crédito: Foreign Trade of Bulgaria, NIS.

Entre 1950 e 1983, o volume de produção industrial dos países membros do grupo aumentou mais de quatorze vezes. Na década de 1980, a produção destes países já representava 1/3 do volume de produção industrial do mundo e 1/4 do rendimento nacional dos países do mundo. Recursos que tornavam este bloco uma poderosa organização ainda que possuísse as deficiências apresentadas de atraso na revolução técnico científica e dolarização cada vez maior do comércio interno e externo. Muitos dos países mais beneficiados por essa organização eram os que tinham acabado de sair de guerras civis ou eram países atrasados até 1950, como por exemplo Vietnã e Mongólia.

O Vietnã destruído no início década de 1980 após décadas de guerra civil e intervenções do ocidente, recebe assistência com empréstimos do Banco Internacional de Investimentos para a construção de infraestruturas internas. Mesmo que o sistema financeiro e o crescimento ao longo da década de 1990 e depois 2000 tenham sido impulsionados pelas negociações com a China, sem a ajuda soviética na década de 1980 dificilmente o país teria conseguido estabilizar-se econômica e politicamente. A Mongólia também foi outro país beneficiado, desde a sua entrada no COMECON em 1961 até a dissolução 30 anos depois. O país ganhou quatro importantes centros industriais que elevam o volume e a qualidade da produção industrial, além de ter obtido melhora significativa na agricultura, sistema de transporte e telecomunicações que permanecem ainda hoje.

Exportações e importações COMECON e outros países socialistas. Crédito: CIA.

O fim do COMECON para os países do leste europeu foi bastante difícil em virtude da ’’Terapia de Choque’’ imposta com medidas neoliberais em toda a região na década de 1990. Contudo, muitos países já se achavam ligados ao mercado mundial e foram abandonando a prioridade das negociações com o bloco ao longo da década de 1980. Além disso, diversos programas de assistência financeira com empréstimos como o Poland and Hungary: Assistance for Restructuring their Economies (PHARE) -Polônia e Hungria: assistência para a reestruturação de suas economias- evitou o completo colapso financeiro. O caso, porém, não foi o mesmo para os países da América Latina, Ásia e África, onde o desenvolvimento inevitavelmente passou por um regresso violento.

Produto Interno Bruto per capita em doláres de alguns países não europeus membros permanentes e países observadores socialistas, antes e depois do fim do COMECON (1972 – 2012) 

  Angola Cuba Etiópia Iraque Moçambique Mongólia Vietnã
1972 0,9 0,3
1976 1,4 1,4
1980 0,6 2,0 3,9 0,2
1984 0,5 2,3 0,2 3,0 0,2 1,1
1988 0,7 2,6 0,2 3,7 0,1 1,5 0,3
1992 0,6 2,0 0,2 0,1 0,5 0,1
1996 0,5 2,2 0,1 0,2 0,5 0,3
2000 0,5 2,7 0,1 0,2 0,4 0,3
2004 1,0 3,3 0,1 1,3 0,3 0,7 0,5
2008 3,8 5,3 0,3 4,5 0,5 2,1 1,1
2012 4,5 6,4 0,4 6,6 0,5 4,3 1,7

Dados retirados do site do Banco Mundial.

Entre os países citados acima, observa-se que nos 20 anos anteriores ao colapso da organização, isto é, entre 1972 e 1992 existiu uma expansão considerável do desenvolvimento econômico e das forças produtivas. Olhando-se no período das duas décadas posteriores observa-se uma tendência geral de queda e crise entre 1988 e 1992, período em que Cuba entrou em uma crise generalizada e passou pelo famoso Período Especial, e que para o caso de países como Mongólia esta crise  extende-se até os anos 2000, recuperando-se apenas no geral a partir de 2004, isto é, doze anos após o fim da organização.

Compreender esta questão é importante porque muitos dos países socialistas não sobreviveram a maré anticomunista da década de 1990 e a crise causada pelo colapso do socialismo soviético devido a isso. Porém, ainda que tivesse disfunções, o COMECON contribuía para que muitos destas nações fora da Europa caminhassem para o desenvolvimento. Muitos países sobreviventes adotam em alguns níveis mais abertos e outros menos o socialismo de mercado como caminho a semelhança da China na busca do desenvolvimento, com tudo o papel exercido pelo COMECON para estes países não conseguiu ser superado em diversas situações, o que levou ao isolamento de alguns deles a nível internacional, como foi o caso do Iraque por meio das sanções econômicas advindas da Guerra do Golfo de 1991.

Mapa de ferrovias da URSS em 1986, muitas construídas com o investimento da COMECON. Crédito: Agência Central de Inteligência.

Apesar do Consenso de Washington durante os anos de 1990 ter tido sucesso na destruição virtual do projeto do Conselho com a desagregação da URSS, um importante legado acompanhado de lições históricas permaneceu. Os debates acerca dos limites da integração socialista e mesmo as relações com os mercados internos e internacionais foram responsáveis por grande parte do avanço do debate entre os socialistas nos últimos anos sobre o papel do mercado. O COMECON foi fundamental na luta contra hegemônica e no auxílio ao desenvolvimento dos países por meio do multilateralismo e cooperação durante a Guerra Fria. O multilateralismo enquanto política de integração e parceria desenvolveu-se no século XX por meio das instituições criadas pela URSS no pós-guerra, tal iniciativa não há como apagar ou diminuir, passe o tempo que passar.

Bibliografia utilizada e recomendada

BOKOFF, Michael S. The Framework of Trade in the Council for Mutual Economic Assistance. Honor. Tese de Dissertação do Programa de Economia da Universidade de Connecticut, EUA, 2010.

DRAGOMIR, Elena. The creation of the Council for Mutual Economic Assistance. Artigo publicado na Revista History Research, Universidade de Londres, Reino Unido, 2011.

GOODRICH, Malinda K. Anexo B The Council for Mutual Economic Assistance. In: Czechoslovaquia, a country study. Washington, D. C.: Federal Research Division, Library of Congress: For Sale and by the Supt. Of Docs., U. S. G. P. O., 1989.

KENNEDY, David; WEBB, David E. Integration: Eastern Europe and the European Economic Communities. In: Columbia Journal of Transnational Law. Cambridge-EUA, 1990, pp. 648-650.

ORLIK, Igor I. Централъо-Восточнная Европа: от СЭВ до Евросоюза (Europa Centro-Oriental: da COMECON a União Europeia.). Artigo publicado no site Perspektivy. Disponível em: http://www.perspektivy.info/srez/val/centralno-vostochnaja_jevropa_ot_sev_do_jevrosojuza_2010-07-12.htm. Acesso em 22 de maio de 2018.

Documentários e recomendações fílmicas:

СЭВ – новые рубежи. COMECON- Novas Fronteiras. Produzido pelo Estúdio de Documentários Fílmicos- URSS. 1985. 

Бренды Советской эпохи. “СЭВ”. Heranças da Era Soviética- COMECON. Produzido por Красная Линия – Rússia. 2014.

Внешнеэкономическая деятельность СССР в рамках СЭВ. Atividade da economia externa soviética dentro do COMECON. Produzido por Estúdio de Documentários Fílmicos- URSS. 1984. 

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por Anders Noren

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