Acusações em tela: “A Little Pond” e a tenacidade da memória

Cena do filme “A Little Pond” (2009). Crédito: alchetron.com

“The morning sun over the hill Shining brightly through the clouds With the blue endless sea at its feet Dear village under the hills Have you slept well overnight?”

É com essa inocente canção que o filme apresenta um dos momentos mais infelizes da Guerra da Coreia. O filme “A Little Pond(작은 연못), escrito e dirigido por Lee Sang Woo tem o papel de denúncia e apoio às memórias dos coreanos assassinados no Massacre de No Gun Ri. O fato histórico ocorreu durante a Guerra da Coreia (1950-1953), ao longo das disputas da Guerra Fria. Com o fim da 2ª Guerra Mundial em agosto de 1945, o Japão após duas bombas atômicas, rendeu-se. Ao término da guerra, na demarcação geográfica no território coreano, conhecida como 38º Paralelo, à área norte encontravam-se os soviéticos e o exército vermelho da China a espera da rendição japonesa, enquanto na área sul, estava o exército americano também esperando a rendição.

Enquanto colônia do país derrotado, jovens líderes de resistência espalhavam movimentos de libertação nacional durante todo período colonial. Norte e Sul continham seus grupos de resistência coreanos, que exaltavam seu país Coreia, mas passavam por disputas ideológicas e mais uma vez, ligados a países externos em seu território. O que inicialmente era uma luta para o fim do Império Japonês e seu exército, tornou-se rapidamente palco de lutas ideológicas culminando na divisão nacional. 

 

Pois bem, lá estava o exército americano em território coreano, em meio a ocupações de cidades motivado para iniciar a Guerra. No final de junho de 1950, as invasões gerais de exércitos em cidades no norte e sul deram início à Guerra da Coreia. A recém-saída de uma colonização enfrentava novamente perseguições e disputas. A massa geral encontrava-se na linha do fogo sem realmente entender que era preciso escolher um lado e lá ficar até o fim. Ao menos era o que parecia que os comandos gerais dos exércitos propunham.

Um mês depois dos EUA assumir a grandiosidade das batalhas e invasões, houve uma ordem para o 8º Exercito Americano, em julho de 1950, impedir o deslocamento de qualquer civil coreano que estivesse viajando ou se movendo pelo país. “Nenhum refugiado é permitido atravessar as linhas de batalha”. Mas a incerteza e medo de que refugiados atravessassem a ponte ferroviária próxima da vila de No Gun Ri, fez com que, ao seguir ordens do decreto americano, soldados abrissem fogo sob o comando de “Acabe com tudo. Mate todos”. Por três dias, civis coreanos foram assassinados.

Memorial pelos refugiados mortos em No Gun Ri no ‘No Gun Ri Peace Park’. Crédito: The Asia-Pacific Journal/ Japan Focus.

Sobreviventes contaram sobre as memórias dos trilhos da ponte, que chegaram a mudar de cor, tornando-se vermelhos e dos constantes gritos de crianças. Cerca de 300 civis foram mortos em No Gun Ri. Apenas reconhecido em 1999, após uma investigação publicada na Associated Press, o incidente de No Gun RI chamou a atenção de pesquisadores, que estabeleceram o objetivo de diminuir as controvérsias que os relatórios oficiais ofereciam. Em uma pesquisa histórica, a memória de No Gun Ri dependia dos relatos de sobreviventes e relatórios oficiais do exercito norte-americano- que insistiam haver armas automáticas, não responsabilizando as tropas em si.

Após a publicação do livro “A Ponte No Gun Ri” (2001) de Charles J. Hanley, Sang Hun Choe e Martha Mendoza, jornalistas da Associated Press, e responsáveis pela investigação e narração dos fatos envolvendo o, até então, esquecido Massacre No Gun Ri, junto com o produtor Lee Eun Jung (Myung Films) mostraram-se determinados em narrar a história nas telas de cinema. O intuito era lembrar e levar a “verdade” sobre esse fato da Guerra da Coreia, ignorado e esquecido por tantos anos.

A ponte de No Gun Ri, palco do Massacre em 1950. Crédito: The Asia-Pacific Journal/ Japan Focus.

“A Little Pond” é um filme que narra a evacuação de um pequeno vilarejo da península coreana, pouco tempo após a Guerra da Coreia iniciar. Assim, a retirada dos moradores aconteceu sob ordem do exército americano devido à aproximação do exército vermelho. Idosos, crianças, mulheres e homens caminharam então por uma estrada de terra em direção ao sul.

Desta forma, supostamente eles estariam livres das agressões provocadas pela Guerra e principalmente de possíveis situações como uma que ocorreu após uma noite em que um ex-comunista, convertido ao sul foi executado, chamando a atenção de ambos os exércitos para aquela vila. Enquanto caminham, é inevitável o encontro com soldados americanos. A comunicação impossível devido à língua define o destino dos migrantes, com o fim da paciência do exército estadunidense.

Cena do Filme “A Little Pond” (2009). Crédito: dramastyle.com

Cinematograficamente, as paisagens são um presente aos olhos, com as cadeias de montanhas, verdes campos, rios e lagos no enquadramento da câmera. Trazendo a representação da paz, da calma, da pureza intocável. “Por que os comunistas viriam para um lugar como esse?“, pergunta um ancião calmamente em seu banco embaixo de uma árvore, após ouvir rumores dos motivos da evacuação no início do filme. Assim, o filme não envolve apenas a denúncia e registro do Massacre. Não há apenas o sentimento antiamericano e o desejo de retratação por parte dos sobreviventes e a memória dos falecidos. Por mais breve que tenha sido, ficou subentendido entre as linhas da narrativa o transtorno que o exército do norte causou aquelas pessoas.

Enquanto trilhavam seus passos pela estrada em direção ao sul do país, a câmera foca a descontração e amizade entre os moradores daquela vila. Nos momentos que soldados americanos impacientes e truculentos os empurravam cada vez mais para bordas, barrancos e floresta garantem a atenção com a falta de empatia com aquele povo. Carregando pertences pessoais, e apenas seguindo os instintos, eles são empurrados para outra trilha: a do trem. Para que assim a estrada de terra estivesse livre para passagem de carros militares.

Cena do filme “A Little Pond” (2009). Crédito: themoviedb.org

O filme pode parecer parado, afinal no inicio são apenas os avisos de que a população deve se mudar. Há algumas conversas paralelas de adultos incrédulos com as ordens impostas. São mostrados, seguindo para a trilha em que as cenas de violência fazem questão de enfocar a atitude dos soldados com relação aquelas pessoas, ao mostrar a insignificância daqueles civis para os militares. Logo surge a suspeita de que poderiam ter armas e bombas entre os migrantes. A tentativa de descansar e se alimentar, logo é interrompida pelos soldados americanos. A impossibilidade de comunicação gera o medo, bastante retratado nas expressões faciais, em cada enquadramento da cena. 

Por causa da desconfiança sobre aqueles retirantes, eles são impedidos de continuar a viagem. Amontoados na trilha do trem, sem entender o que se passa, apenas esperam qualquer sinal. Este sinal nada passou de aviões soltando algumas bombas logo após que os soldados americanos correram para longe daquela área. Terror e correria dos sobreviventes. Pessoas atropelam-se, tentando salvar os mais queridos entes, fugindo pela floresta. O cinema coreano destaca-se com cenas de sofrimento e ataques como esse. Típico da característica cultural, os elementos realistas conseguem demonstrar a luta pela sobrevivência no desespero daquelas pessoas ao tentarem sair daquela trilha, enquanto alguns, emocionados, debruçavam-se em corpos mutilados no chão.

Além do bombardeio, inicia-se o tiroteio. Aqueles que não foram atingidos pelas bombas e desviaram da margem pela floresta, correram para o local que mais parecia seguro: embaixo da ponte ferroviária de No Gun Ri, desviando ainda de mais tiros. Neste momento, quando o tumulto cessa por uns segundos, a cena volta para a trilha de trem, onde poucos homens  arrastam-se gritando: “corram por suas vidas”. E outros respondem: “são os comunistas!” Alguns conseguem correr, pois são salvos por corpos falecidos que colocam em cima de si. A confusão de pensamentos, de ações, o lutar pela sobrevivência e culpar a todos pelo ocorrido, todo este contexto retratou perfeitamente a ânsia e o desespero, na atitude instintiva humana de procurar a maneira mais fácil de escapar.

Cena do filme “A Little Pond” (2009). Crédito: hancinema.net

Cenas de crianças levantando-se enquanto choram e gritam pela mãe; algum corpo sem vida entre tantos é o background para a cena em que soldados americanos aproximam-se pelos trilhos, ignorando o choro do bebê com cerca de 3 anos. Havia apenas um foco para os soldados: aqueles que se amontoavam em baixo da ponte. Novos tiroteios, novas mortes. A noite cai. Ainda havia tiros.

Ninguém podia sair, ninguém podia se mexer ou fazer barulho. Exaustos e acordados pelo medo e o choro da criança, as pessoas começam a sussurrar: “faça-o parar de chorar”. Olhos voltados para aquele bebe e o pai, que sem opção, o leva para uma pequena poça d’agua e o mata. Uma vida por tantas. Ao menos era essa a lógica.

Uma garota observa essa cena e sua imaginação leva o público a uma outra realidade que ela, provavelmente, gostaria de estar vivendo naquele momento. A música apresentada no inicio deste artigo é a canção que essa menina e suas colegas de escola estão cantando enquanto tocam piano. Uma realidade roubada para tantos civis. Os rostos de pessoas alegres ao ouvir a a letra e a melodia podem representar o desejo da menina, em seu último fio de esperança.

Cena do filme “A Little Pond” (2009). Crédito: dramastyle.com

Os tiroteios do Massacre de No Gun Ri duraram três dias. Portanto, o filme retrata justamente esses três dias. Não há cena do momento que os tiros terminam, mas para finalizar há a cena de um jovem do exército vermelho aproximando-se dos corpos da ponte. “Há alguém vivo? Os americanos se foram”. Apenas uma resposta: “um garoto”. Então o filme acaba fundindo o rumo daquele sobrevivente a um momento passado de sua vida. Em flashback, o enredo volta à vila, mostrando o ato em que seu pai despede-se dele, como se estivesse partindo para uma jornada e o alertasse: “não pare e tome cuidado”.

O filho parte e a emoção fica por conta de outra cena de encher os olhos, mostrando campos de arroz dourados e trazendo novamente a paz do início do filme. Na sequência, enquanto um filho se vai, uma outra criança volta para casa e recebe a comemoração de seus pequenos amigos que gritam: “Kooli voltou”. Todos encaram o retorno do garoto como um fato inacreditável. A ideia de que uma jovem parte, mas outro volta, percebemos que tal personagem, é, na realidade, um dos poucos sobreviventes do Massacre. Entenda-se que aquela vila não foi esvaziada como o pretendido e nem foi atacada por nenhuma parte.

Cena do filme “A Little Pond” (2009). Crédito: dramastyle.com

O filho retornou ao lar, mas não esqueceria jamais o que viu debaixo daquela ponte. A última cena do filme é o enquadramento de pessoas, observando o garoto distanciar-se. Mistura-se com a tomada do céu colorido, que vai escurecendo com o mover da câmera, tornando-se algo como o alto mar, em uma clara representação do sonho, com elementos imaginários de uma mãe baleia e seu filhote. Uma fantasia e uma inocência da vida que antes estava em paz, no início do filme. Enfim, continua a narração da Guerra da Coreia e os problemas em anunciar o massacre de No Gun Ri como um fato histórico daquela guerra. O diretor Lee Sang Woo enfatizou que este projeto foi feito em memória dos assassinados cometidos durante aqueles três dias de terror.

Um ponto problemático do filme é que por ser composto quase inteiramente de cenas de multidões, não há possibilidade de se envolver emocionalmente com nenhum personagem em específico. O anonimato dos papéis ajuda a aguçar o foco na ação em si, e a produção caprichada pelo realismo da carnificina representada, envolve o publico somente no Massacre, sem salientar, ou dar relevância em demasia a culpa dos Estados Unidos, ou focar em uma experiência especifica, ainda que se tenha dado destaque significativo às crianças que cantam na escola – como aquela garota que se imagina a cantar, ao invés de ver o bebe sendo morto pelo próprio pai. Em toda a história está a acusação mais grave: não foram apenas vidas tiradas, foram sonhos enterrados, assim como o fio de esperança de corações inocentes que desejavam viver em paz.

Cena do filme “A Little Pond” (2009). Crédito: themoviedb.org

O filme apesar da intenção de perpetuar o acontecimento, as “verdades” e as mortes do Massacre após tantos anos, não obteve o sucesso desejado. Pouco se fala da obra, e na época de lançamento a critica foi severa com a produção e o desinteresse em narrar algo “pequeno” perto de tudo que a Guerra da Coreia causou. Destacou-se também o problema diplomático quando a Coreia do Sul se posicionava de modo dependente dos Estados Unidos, impossibilitada de exigir maiores proporções de justificativas ou desculpas. Tal critica e problemática da época de lançamento, infelizmente esfumaçaram a importância da narração encontrada e eternizada nesse filme, aqui apresentado.

Título: A Little Pond (ingles) 
Título em coreano: 작은 연못 (Jageun Yeonmot)
País: Coreia do Sul
Direção: Lee Sang-Woo
Roteiristas: Lee Sang-Woo, Bang Jun-Seok
Elenco: Seong-kun Mun, Roe-ha Kim, Hye-jin Jeon
Duração: 1h26min
Lançamento: 15 de abril de 2010
Idioma: coreano
Legendas: português

 

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por Anders Noren

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