“A Grande Guerra Patriótica dos Soviéticos” resgata a participação da URSS na Segunda Guerra Mundial

Crédito: Mariana S. Brites/Revista Intertelas.

A grande influência de setores acadêmicos e intelectuais provenientes dos Estados Unidos e Europa ocidental sobre a estrutura de pesquisa e ensino brasileira não deixou grande espaço para que fontes de outros países e regiões do mundo tivessem as suas versões dos fatos contadas à sociedade brasileira. Com a Segunda Guerra Mundial não foi diferente. Aprende-se nas escolas e universidades brasileiras que o ocidente foi o responsável pela derrocada nazista. E a máquina midiática e cultural norte-americana só contribuiu para salientar ainda mais esta afirmativa. Porém, ao se realizar um estudo maior de dados, documentos e até publicações e periódicos da época que provam o contrário: os soviéticos foram chave para derrota nazista na Europa e em outras partes do mundo.

Por esta razão, o livro “A Grande Guerra Patriótica dos Soviéticos” (1941-1945), , lançamento da Multifoco, organizado por Francisco Carlos Teixeira (doutor em história social pela Universidade de Berlin, pós-doutor pela Universidade Técnica de Berlin e ex-docente titular de história moderna e contemporânea da Universidade do Brasil /Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ), João Claudio Platenik Pitillo (especialista em Segunda Guerra Mundial, professor de história formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em história comparada na UFRJ, doutorando em história social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e membro do Núcleo de Estudos das Américas – NUCLEAS-UERJ) e Ricardo Quiroga Vinhas (graduado em engenharia química pela UFRJ, em direito pela UERJ, servidor público federal do Judiciário Trabalhista (Tribunal Regional da 1º Região) e pesquisador da Segunda Guerra Mundial, com ênfase na participação soviética) busca preencher esta lacuna existente na bibliografia brasileira.

Falar sobre o exército vermelho no Brasil não é uma tarefa fácil. O revisionismo histórico, a Guerra Fria, privaram os brasileiros de ter acesso a outras fontes sobre o assunto. Então, para compor esta falta, nós tivemos que reunir uma série de pesquisadores e professores e que compreendem, têm conhecimento e informação importante sobre o papel da URSS na Segunda Guerra. Esta obra em si é um ponto fora da curva, porque o grande entendimento da população brasileira, o que foi contado a eles pela bibliografia e pela historiografia brasileira, pautada pelas escolas dos Estados Unidos e Europa é que a Segunda Guerra Mundial foi ganha no desembarque da Normandia, com o total de somente 200 mil homens. Isso em uma guerra que teve milhões envolvidos. Ao não levar em conta as fontes e o que ocorreu no lado soviético você faz um desserviço à verdade histórica”, salienta Pitillo.

Os colegas dedicaram-se a diversos assuntos da participação soviética na guerra, mas o que foi em comum é que todos nos baseamos em livros e literatura que não é conhecida no ocidente. E até em alguns livros que estão em português. No meu caso trabalhei com obras escritas em tcheco, ou em russo. Por isso, esta publicação será um marco para começarmos a trabalhar com esta literatura da antiga União Soviética e que também foi e é produzida no leste europeu, tentando equilibrar a visão predominante disseminada pela literatura ocidental sobre o assunto no Brasil”, explica Quiroga.

Da esquerda para a direita: Francisco Carlos Teixeira (organizador da obra), João Claudio Platenik Pitillo (organizador e colaborador), Alessandra Scangarelli Brites (colaboradora), Ricardo Quiroga Vinhas (organizador e colaborador), Vinícius da Silva Ramos (colaborador) e Eden Pereira da Silva Lopes (colaborador). Crédito: Mariana S. Brites/Revista Intertelas.

O livro é um projeto de pesquisa a longo prazo de grande parte dos envolvidos. Através do resgate deste assunto, relembramos uma época que ficou esquecida aqui no Brasil e que se tenta hoje repensar, às vezes, de forma não muito correta, manipulando fatos. É preciso difundir a verdade histórica mundial e brasileira, que estão conectadas, e com isso promover um projeto de desenvolvimento econômico que resguarde a soberania, com a participação popular, algo que o Brasil ousou realizar na época da Segunda Grande Guerra e que perdeu ao longo dos anos”, conclui Teixeira.

Composta por vários autores que se dedicaram ao assunto nas suas mais diversas áreas, a obra foi lançada no dia 5 de dezembro, em evento realizado no Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge-RJ), que contou com a presença do Consulado Geral da Rússia no Rio de Janeiro, na figura do chefe de protocolo Artem Fomin, do presidente da Câmara Brasil-Rússia de Comércio, Indústria e Turismo e cônsul honorário da Embaixada da República de Belarus no Brasil Gilberto F. Ramos e do vereador no Rio pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol) Leonel Brizola Neto que comentaram à Revista Intertelas sobre o trabalho dos pesquisadores.

Este tipo de publicação é muito importante em razão da falta de conteúdo que aborda em detalhes a atuação da União Soviética na Segunda Guerra Mundial, que para nós russos tem a denominação de Grande Guerra Patriótica. Infelizmente, nós acompanhamos e observamos que não há muita informação verdadeira sobre todas as partes envolvidas nesta guerra, o maior conflito bélico do século XX. No dia 5 de dezembro, por exemplo celebra-se o avanço das tropas soviéticas durante a Batalha de Moscou, que integra o conteúdo desta publicação. Nós do consulado apoiamos este tipo de iniciativa, pois a participação da URSS e do próprio Brasil na guerra ainda é de certa forma desconsiderada no mundo”, conclui Fomin.

O impacto da Segunda Guerra na Rússia, em outros países da Europa do leste e Ásia foi enorme e por isso é do nosso interesse que o público brasileiro também conheça o nosso lado da história. O front oriental europeu irrompeu uma frente enorme contra as tropas nazistas e seus aliados. Foi nele onde ¾ destas forças pereceram. Aproximadamente 30 milhões de pessoas morreram nestas batalhas, muitos partisans (membros dos movimentos de resistência que participavam de guerrilhas contra as forças do eixo na União Soviética), guerrilheiros, deram suas vidas em prol da grande vitória. Portanto, a missão atual desta geração é preservar o esforço deles, a memória e o sacrifício que tiveram” enfatiza Fomin.

Da esquerda para a direita: o vereador no Rio pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol) Leonel Brizola Neto, o chefe de protocolo do Consulado Geral da Rússia no Rio Artem Fomin, o organizador e colaborador da obra João Claudio Platenik Pitillo, o presidente do Senge-RJ Olimpio Alves dos Santos, o organzador da obra Francisco Carlos Teixeira e o também organizador e colaborador do livro Ricardo Quiroga Vinhas. Crédito: Mariana S. Brites/Revista Intertelas.

“E não apenas das tropas soviéticas, mas também das tropas brasileiras, nas batalhas no norte da Itália. Temos a missão de fazer com que nunca sejam esquecidos.  Para tanto, existe o movimento popular iniciado na Rússia denominado Regimento Imortal (que faz homenagem aos que combateram na Segunda Guerra), que o consulado da Rússia está sempre apoiando, com os amigos brasileiros e a comunidade russa que vive no Rio”, explica o chefe de protocolo do consulado da Rússia no Rio.

O chefe de protocolo do Consulado Geral da Rússia no Rio Artem Fomin. Crédito: Mariana S. Brites/Revista Intertelas.

Eu cheguei a conhecer a União Soviética. Fui para lá em 1988 e morei em Leningrado, atual São Petersburgo. Falo russo e acompanhei um pouco a transição pela qual a Rússia passou com o fim da URSS. E ao longo destes 30 anos, muito pouco, ou nada foi divulgado por inciativa dos brasileiros sobre este tema. De certa forma, parece haver uma inclinação a ignorar de propósito esta questão, ou qualquer outro assunto que venha daquela região do mundo. A Guerra Fria em grande parte é a causa disso”, lembra Ramos.

“Durante o Regime Militar, é fato, estes assuntos foram censurados, em razão do alinhamento do Brasil com o bloco ocidental, liderado pelos EUA. Mas, mesmo com o fim da URSS, o surgimento da Federação Russa e a democratização no Brasil, observo que a falta de trabalhos que versem sobre a participação soviética na guerra persiste. Com o desconhecimento vem uma dificuldade de compreender, até de se colocar no lugar de um povo que teve o seu país invadido, resultando em perdas enormes. Tanto que os russos chamam a Segunda Guerra Mundial de Grande Guerra Patriótica”, conta Ramos.

Segundo ele, este foi um conflito genocida, onde o fascismo e nazismo tentaram literalmente exterminar e escravizar a população que habitava na União Soviética, considerando os russos, demais povos eslavos, etnias caucasianas, asiáticas, tártaras como inferiores. “Mas, todos uniram-se para combater estas ameaças. São fatos históricos que livros como este tentam difundir e trazer conhecimento às pessoas. E para o Brasil isso é de grande importância, pois China e Rússia são parceiros nossos tanto na esfera econômica, quanto política, e é de extrema importância compreender a história deles e entender o impacto de momentos históricos chaves como a Segunda Guerra para seus povos”, explica o presidente da Câmara Brasil-Rússia.

Eu como um brasileiro que por muitos anos atuou no comércio, levando produtos brasileiros para a Rússia e trazendo fertilizantes para o Brasil, posso dizer que estes dois países têm muitas complementariedades que podem trazer desenvolvimento e prosperidade para ambos.  E por isso também a necessidade de os compreender melhor.  Assim, penso ser importante o surgimento de mais publicações e eventos que visem preservar a memória da participação soviética na guerra. Nas comemorações de datas da vitória seria interessante além de Rússia e Brasil, ter a participação de representações da Bielorrússia, Armênia, a própria Ucrânia e tantos outros”, salienta o também cônsul honorário de Belarus no Brasil.

O presidente da Câmara Brasil-Rússia de Comércio, Indústria e Turismo e cônsul honorário da Embaixada da República de Belarus no Brasil Gilberto F. Ramos. Crédito: Mariana S. Brites/Revista Intertelas.

O vereador Leonel Brizola Neto também fez referência à obra: “como Brizola gostava de falar: o fio da história precisa ser resgatado. Atualmente, há uma total manipulação da história que tenta esconder os fatos, e as pessoas de uma forma geral estão perdidas, não sabendo em quem podem acreditar”, enfatiza. “Em específico, na América Latina, o lançamento de livros com tais temáticas é importante para enfrentar esta onda neoliberal, com inclinações fascistoides, que visa desinformar e fazer um revisionismo histórico. Em tempos em que se fala em Terra plana, marxismo cultural, nazismo de esquerda e outras inverdades, a história e seus fatos comprovam que não é nada disso. Sobre a Segunda Guerra é sempre bom lembrar a atuação dos pracinhas brasileiros que parece estar sendo esquecida pelos próprios militares e que também sofre com inverdades.  Assim, obras como estas surgem para orientar. Trata-se de uma espécie de bússola em meio à tempestade”, conclui Brizola Neto.

A importância da atuação soviética e brasileira é uma questão que nem os jornais da época negavam. Em maio de 1945, o jornal Diário de Notícia publicava: “A Força Expedicionária Brasileira escreveu uma das páginas mais importantes e gloriosas da nossa história, e é com o pensamento e o coração voltados para eles que devemos celebrar o grande feito das armas soviéticas”. Porém, ao longo dos anos os fatos pareceram perder validade e esta preocupação, segundo Eden Pereira Lopes da Silva, historiador pela UERJ e especialista em Segunda Guerra Mundial, que escreveu dois artigos da obra, foi uma das motivações para a realização deste trabalho. “Esta obra está sendo lançada em meio a um momento histórico onde os conflitos internacionais estão tomando proporções maiores e existe uma incitação ampla ao ódio. É preciso relembrar o que foi a luta contra o nazifascismo”.

Hoje se tenta dar uma determinada ressignificação às figuras históricas. Vemos isso ser feito na Ucrânia, mas vem ocorrendo em outros países da Europa também, causando uma onda de revanchismo. É uma época que o exército vermelho e a própria URSS vêm sofrendo um ataque constante, um ataque à sua memória, que tiveram um papel estratégico e definitivo na libertação destes países. Trabalhei com a Batalha de Rjev, que ocorreu em uma região próxima de Moscou, entre 1942 e 1943 e que impediu o avanço das tropas nazifascistas em direção à capital russa. Ainda pesquisei a libertação da região do báltico (Estônia, Letônia e Lituânia), que fazia parte da URSS naquele período e onde atualmente ocorre um amplo revisionismo histórico por forças de extrema direita”, explica o historiador.

O professor de história e doutorando pela UERJ, Vinicius da Silva Ramos, que foi responsável por relatar a Batalha de Smolensk e ainda lançou a publicação sobre a influência do integralismo na imprensa do Rio de Janeiro  “Páginas verdes de uma imprensa marrom”, pela Ciências Revolucionárias, lembra que a ascensão do fascismo na década de 1930 leva ao surgimento de movimento de resistência por este grande bloco de aliados que vai ser capitaneado pela URSS na parte oriental europeia. “É neste período que percebemos  que a Grande Guerra Patriótica é uma consequência do surgimento do nazifascismo e não parte dele como muitos querem fazer crer hoje em dia. Percebemos ainda que o discurso de muitos desses líderes nazistas e fascistas do passado têm muito em comum com vários políticos e chefes de Estado da atualidade”, lembra Vinícius Ramos.

Já o professor e ex-general do exército brasileiro Ivan Cavalcante Proença, que ficou encarregado de versar sobre a Batalha de Stalingrado afirma que o tema central do livro infelizmente é ainda muito ignorado no Brasil. “É pouco pesquisado e desenvolvido. Porque interessa manter obscura a verdade histórica mundial, o que inclui a Segunda Guerra. Eu fiz a tradução do livro do comandante soviético marechal Vassili Tchuikov, sobre Stalingrado, uma obra que foi lançada no Brasil pela editora Civilização Brasileira. É preciso conhecer todos os meandros deste conflito, para ter uma compreensão melhor sobre o custo de lutar por democracia, em um momento de obscurantismo social, político e cultural de hoje. Mas, infelizmente o que vemos é a história sendo repetida e farsas sendo contadas”.

O professor e ex-general do exército brasileiro Ivan Cavalcante Proença escreveu sobre a Batalha de Stalingrado neste obra. Crédito: Mariana S. Brites/Revista Intertelas.

O livro ainda teve a contribuição da jornalista Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), especialista em Política Internacional (PUCRS) e mestre em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Alessandra Scangarelli Brites sobre as relações diplomáticas da URSS com Estados Unidos e Inglaterra. Da mesma forma, ocorreu com o professor, pesquisador e historiador pela UERJ Luís Eduardo Mergulhão Ruas sobre o tratado de não-agressão entre URSS e Alemanha Hitlerista; com a doutora (bolsista pelo Ministério da Educação do Japão – MEXT) na área de ciência política, pela Universidade de Osaka e pós-doutora na mesma área pela Universidade do Estado Livre – África do Sul Marina Magalhães Barreto Leite e Silva, que dissertou sobre o conflito entre soviéticos e japoneses.; e do organizador Ricardo Quiroga que se dedicou a questões menos conhecidas da participação soviética no ocidente, como ele próprio explica.

A Batalha do Mar Ártico envolveu os grandes comboios que iam da Inglaterra para Murmansk na Rússia e forneciam materiais de guerra, dentro de uma perspectiva já de colaboração entre as forças aliadas. Não falo apenas desta cooperação, mas também das batalhas que ocorreram nesta região estratégica. Os nazistas almejaram ocupar rapidamente a área, mas a resistência soviética mostrou-se implacável, conseguindo resguardar Murmansk e toda aquela região do Mar Báltico e do Golfo da Finlândia, o que foi crucial para receber o material enviado pelo ocidente e para frear boa parte da máquina de guerra nazista. E o mais importante foi destruir o que se chamou de Esquadra Negra, que eram os grandes encouraçados nazistas, liderados pelo Tirpitz que permaneciam naquelas águas, objetivando atacar os comboios que ali passavam, inclusive comboios dos Estados Unidos para a Inglaterra, e da Inglaterra para a União Soviética. Então, os soviéticos tiveram importância estratégica para acabar com o centro da marinha de guerra nazista”, conta Quiroga.

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Sobre a obra, o presidente do Senge-RJ Olimpio Alves dos Santos também ressaltou a importância de reconhecer o empenho dos trabalhadores soviéticos e em todo o mundo que lutaram com as forças nazifascistas.“É um tema que causa grande interesse. Os documentos e obras que foram consultados trazem também uma noção melhor sobre como foi a luta contra o fascismo naquela época e sobre o que é o fascismo e sua violência. É preciso travar uma oposição e até batalha contra estas forças que ressurgem neste momento. É preciso desprendimento, vontade para tanto. E foi exatamente o que os povos soviéticos tiveram e, por isso, servem de exemplo. O combate ao nazismo foi perpetuado por trabalhadores, pessoas simples. A vitória deles representa a salvação da humanidade. A determinação dos trabalhadores soviéticos salvou o ocidente e isto, apesar de muitos não gostarem, terão que admitir um dia. A verdade vencerá”.

 

Um comentário em ““A Grande Guerra Patriótica dos Soviéticos” resgata a participação da URSS na Segunda Guerra Mundial

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  1. Uma sugestão que gostaria de acrescentar para a próxima pesquisa. Vocês sabiam que quando os bolcheviques terem chegado ao poder durante a Revolução Russa de 1917, muitos funcionários do Czar fugiram e vieram aportar no Brasil. Entre eles, a família do Chefe da Guarda Imperial do Imperador de Todas as Rússias, Nicolau II.

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por Anders Noren

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