
Depois de renascer para o audiovisual no intenso contexto da Síria, tendo o Estado Islâmico e o emaranhado geopolítico do século XXI como palco (link), Jack Ryan retorna para a segunda temporada da série produzida pela Amazon. Agora, o economista que trabalha para a CIA se vê diante de vários acontecimentos que os coloca na Venezuela atual. O que vemos nos oitos episódios é mais um capítulo do vasto leque de recursos de propaganda presentes nas produções televisivas e cinematográficas, agora conectados com a estratégia das Guerras Híbridas (reconfiguração das Guerras indiretas utilizada pelos EUA no presente). Como isso é abordado pela série? Esse breve texto propõe algumas reflexões.
O primeiro episódio inicia no Mar da China meridional, palco de várias tensões recentes entre EUA e China. De um navio parte um foguete que abre a narrativa da segunda temporada de Jack Ryan. O protagonista, agora trabalha como assessor de um senador e aparece em sua primeira cena proferindo uma conferência. Poderia ser uma cena banal, não fosse o conteúdo de sua fala. Após exibir diversas reportagens televisivas sobre a atualidade, Ryan pergunta a plateia qual a maior ameaça da atualidade. Rússia? China? Coréia de Norte? Venezuela? Após a maioria da plateia escolher as duas primeiras opções ele apresenta uma falsa questão: qual pais tem a maior reserva de petróleo do mundo, porém enfrenta uma série de crises humanitárias?

Sua explicação segue apresentando o atual presidente da Venezuela, Nicolas Reyes (uma clara simbiose de Nicolas Maduro e Hugo Chavez), tido como nacionalista e um dos responsáveis pelo Estado fracassado e o aumento da taxa de pobreza em 400% (dado inverídico). Em contraponto a Reyes, a candidata da oposição Gloria Bonalde (professora de História e ativista) é apresentada como uma possibilidade de civilidade política diante da crise, mesmo tendo uma posição política inclinada para a esquerda. A conclusão da fala de Ryan retoma a importância da América Latina como quintal estadunidense.
De cara a série destaca a geopolítica contemporânea apresentando a rivalidade global EUA x Rússia/China. Contudo, seu palco de ação será a Venezuela, um dos países escolhidos para compor o eixo do mal (conceito maleável que organiza os inimigos dos EUA após a dissolução da URSS e solidão hegemônica). A importância do petróleo á apresentada, porém não discutida. Fica em segundo plano, como um dado tido como normal. Não há na análise de Ryan um aprofundamento na História da Venezuela.

Seu histórico de dependência do petróleo e suas oligarquias exploradoras não são mencionados. A demarcação temporal (e, portanto, dos problemas que o país enfrenta) inicia com a gestão do atual presidente, ou seja com Hugo Chavez e Nicolas Maduro, governos que impuseram posturas de enfrentamento a presença e interesses dos EUA na América Latina. Interessante que Ryan questiona a mídia pela sua abordagem do presente, fator que serve como contraponto ao que será apresentado pela série.
A possibilidade de que o foguete lançado do mar da China, no início do episódio, levasse um satélite russo para atuar sobre a Venezuela, leva Ryan a convencer o senador para quem trabalha a realizar uma visita ao país latino-americano. Em paralelo seu ex-chefe da CIA, Greer, que agora trabalha na Rússia também encontra na ida ao país latino-americano uma possibilidade de se esquivar do problema de saúde que oculta de seu superior. Junto com a ida do Senador, Ryan propõe uma missão secreta na selva para investigar o ocorrido.

As cenas que mostram a visita do senador ressaltam um ambiente urbano empobrecido, filas por comida, protestos nas ruas, favelas precárias por onde desfilam os SUVs pretos estadunidenses. A imagem do presidente venezuelano que vemos em discursos na televisão é aquela idêntica a figura de Chavez: uniforme militar, boina, faixa presidencial com as cores da bandeira do país. No palácio Miraflores a imagem de Simon Bolívar, retratado num suntuoso quadro, ganha destaque. Diante da negativa de fornecer informações para os estadunidenses, a comitiva do senador retorna para os EUA. Porém antes de chegar ao aeroporto é vitimada por um atentado a bomba. O senador é morto a tiros, fato que inicia a incansável jornada de Ryan pela busca do autor do crime.
Aqui a narrativa joga com o histórico do estereótipo de insegurança e violência da América Latina. Graças à corrupção um senador é morto nas ruas da capital da Venezuela. Essa cena insere na narrativa o elemento de vingança, seja no âmbito pessoal, seja no âmbito institucional/nacional. Um ataque dessas proporções certamente produziria reações mais incisivas dos EUA. O segundo episódio apresenta a preparação de uma missão dos EUA na selva amazônica utilizando ex-soldados de forma clandestina. Também entra em cena o chefe da estação da CIA da embaixada dos EUA, Mike November.

O assassinato do senador acaba desvelando uma trama de conexões mundiais. Um ex-agente alemão, uma agente alemã que busca seu conterrâneo, um satélite russo e uma empresa que realiza operações desconhecidas no meio da floresta. A tentativa de assassinato de um soldado da Guarda bolivariana, pelo ex-agente alemão, acaba levando o soldado a pedir abrigo na embaixada dos EUA, o que permite a Ryan especular a participação do presidente da Venezuela no atentado. Reyes rapidamente providencia um bode expiatório para o crime acusando guerrilheiros de esquerda (capturados e torturados para confessar o crime). O destaque desse episódio é a luxuosa festa que o presidente oferece a sua filha em comemoração aos seus quinze anos. A comparação com a pobreza do país e do povo fica anteposta a elite política que vive no luxo e na riqueza.
O terceiro episódio destaca a história de Gloria Bonalde, principal candidata da oposição. Ela cuida dos filhos, prepara sanduíches para motoristas, é apresentada como uma mulher dinâmica e atenta as demandas populares. O espectador fica sabendo que seu marido trabalhava no governo e se encontra desaparecido. Gloria faz um discurso para jovens e estudantes. Destaca a importância de união do povo venezuelano. Ela se antepõe ao presidente dizendo que ele esqueceu a História e termina seu discurso citando Simon Bolívar: “Um povo que ama a liberdade no final sempre será livre”. Com Reyes a imagem de Bolívar era vista de forma estática, agora com Glória ela faz parte do discurso e tem um caráter mobilizador. O episódio termina com Ryan e sua equipe descobrindo que o material na floresta era um equipamento de mineração e muitas dúvidas são levantadas.

Nesse ponto a série apresenta uma alternativa política ao atual presidente, ancorada nos princípios democráticos e moralmente ilibada. Há um diferencial com a figura de Juan Guaidó, autoproclamado presidente da Venezuela, figura polêmica, envolvido em escândalos e conexões com o tráfico de drogas. Guaidó rapidamente recebeu apoio e reconhecimento dos EUA e do Brasil, contudo seu caráter democrático é questionável e até os dias atuais sua importância se esvai paulatinamente, perdendo apoios internos e externos. Uma das formas de atuação das Guerras Híbridas é desestruturar o Estado alvo, seja no âmbito político, seja no âmbito institucional. Questionar as ações do Estado, inserir uma constante oposição na mídia e na sociedade é um dos pontos chave da ação. Formar e promover uma autoridade paralela são uma das estratégias das Guerras Híbridas. A série suaviza esse recurso, dando um viés institucional, legal e moral a personagem Gloria Bonalde.
O uso das redes sociais para promover a oposição é constante e destaca-se como fator de resistência diante o aparato do Estado dominado por Reys. Uma das estratégias chave da Guerra Híbrida é fazer com que os movimentos questionadores sejam vistos como espontâneos e autênticos. Qualquer possibilidade de conexão com a fonte promotora deve ser ocultada. A candidatura de Gloria é vista como autêntica, ela simplesmente ocupou o espaço do esposo desaparecido. Ela tenta resgatar os valores do povo e se apresentar como representante de todas as classes sociais. A CIA só aparece para oferecer segurança a candidata, ameaçada constantemente pelo estado de terror político. Ironicamente, quando uma conexão com a CIA é revelada há uma insurgência popular, fator que corrobora por vias tortas (ou de forma não intencional) a estratégia da Guerra Híbrida.

Nos dois episódios seguintes, Ryan tenta desvendar o xadrez de informações e dados, no melhor estilo dos seriados estadunidenses. Sua atuação “outsider” o coloca em confronto com o chefe da CIA da embaixada. Para tentar solucionar o crime ele vai a Londres seguir as pistas do assassino do senador. Ryan não tem pudores de ameaçar a filha adolescente do ex-agente. Diversas cenas de ação ocorrem. No final do episódio Gloria tem contato com Greer, que tenta entender o envolvimento do ex-marido da candidata no episódio.
Também é descoberto que a empresa mineradora busca prospectar reservas de Tântalo, um mineral raro e muito valioso. Gloria, agora realiza um discurso em um bairro pobre. Ela ressalta a discrepância do país que tem a maior reserva de petróleo do mundo enfrentar inflação, blecautes e insegurança. Todas as cenas de discurso apresentam a reação emocionada da plateia, o que valoriza a popularidade da candidata, fato que é encoberto pela mídia influenciada pelo Estado.

O sexto episódio apresenta uma virada na postura de Reyes, que parte para o ataque apresentando nos meios de comunicação a relação de Gloria com a CIA, bem como uma imagem de um soldado dos EUA capturado na floresta. Seu discurso ressalta a postura imperialista dos EUA. Estes episódios impulsionam diversos protestos nas ruas, onde bandeiras estadunidenses são queimadas. A tensão crescente faz com que a embaixada seja evacuada. Documentos são queimados. Contudo, o trio Jack, Greer e Mike permanecem no país para terminar a investigação.
Os dois últimos episódios são intensos em ação e tratam de encerrar a narrativa. Greer acaba preso e é levado para o campo de prisioneiros políticos que o país mantém na floresta. Ali ele se depara com artistas, políticos, jornalistas, professores, todos opostos politicamente ao presidente. O caráter antidemocrático também se destaca quando Reyes resolve adiantar as eleições e evitar qualquer oportunidade de derrota. A polícia bolivariana aparece distribuindo material de campanha. Um comício é contraposto a um luxuoso jantar com seus correligionários. Para conseguir resgatar Greer, Ryan contrata mercenários. Ele não encontra seu amigo, porém encontra alguns prisioneiros ainda vivos e outros fuzilados.

Ele registra diversas cenas do campo de prisioneiros e rapidamente envia as imagens que correm o mundo e fomentam protestos na Venezuela contra Reyes. As eleições são suspensas de forma violenta, contudo o declínio do presidente é iminente. Numa cena lúgubre, ele degola seu melhor amigo e membro do governo. A figura de populista e antidemocrático agora é atrelada a de frio assassino. Ryan e Mike decidem resgatar Greer (que havia sido levado para o palácio do presidente). Eles invadem o palácio com um helicóptero, entrando em confronto com os seguranças. A saída dos estadunidenses é seguida pela invasão do povo em fúria contra Reyes. A preservação da família é destacada quando Gloria e seus filhos reencontram seu ex-marido num navio dos EUA.
A cena da invasão ao palácio flerta com o absurdo, o inverossímil e o patético, mas tem sua justificativa. Ao mesmo que tempo que a Venezuela é uma ameaça ao mundo, também é apresentada como incapaz de defender seu território. Uma ação militar direta dos EUA não ocorreu no presente pelo preparo militar da Venezuela e seu aparato militar. O cenário venezuelano também serviu para a Rússia preparar e estudar formas de contra-ataque para as estratégias das Guerras Híbridas, colocadas em prática na Ucrânia, Síria e América Latina.

As Guerras Híbridas são articuladas em dois estágios. O primeiro, chamado de Revoluções coloridas, busca desarticular o Estado alvo através de mobilizações sociais e organização de movimentos políticos. Sua atuação tem menor custo e permite mais segurança para seus agentes e promotores. Caso esse estágio não encontre êxito, passa-se para as Guerras não convencionais. Aqui há a criação de um caos organizado, onde podem ocorrer ações paramilitares, atos terroristas e desestabilização nos espaços urbanos e rurais.
A Venezuela enfrenta diversos episódios há alguns anos: granadas lançadas por drones, bombas, protestos violentos reprimidos pelas forças estatais (registrados e divulgados). Apesar dessas ações, o governo resistiu e a promoção de Guaidó como presidente buscou criar um fator político-institucional no âmbito mundial. Fundamental é destacar que a série não menciona o bloqueio econômico que a Venezuela sofre há vários anos e que é vital para precarizar a situação social do país (a China enviou navios hospitais e Cuba enviou médicos para amenizar a situação).

A atuação dos EUA na Venezuela através das Guerras Híbridas explica-se pela geopolítica mundial. Há um claro interesse em retomar o domínio do quintal (mencionado por Ryan no início da série) que no século XXI afastou-se do grande irmão do continente. Diversos governos progressistas e orientados à esquerda surgiram e buscaram construir alternativas ao histórico domínio dos EUA.
O exemplo mais claro era a criação dos BRICS, que articulava o Brasil com a Rússia e a China na nova ordem mundial. O fator energético é vital, seja pelo lucro, seja pelo possível embate bélico com a China, proporcionando uma fonte de energia próxima ao território dos EUA. Há também um desafio ideológico ao sistema capitalista, mesmo que mínimo e embrionário, intolerável para a postura imperial que necessita do capitalismo para sua sobrevivência.

No final, Ryan retorna aos EUA, entretanto o ciclo ainda não estava concluindo. Havia uma ponta solta. Um senador dos EUA era um dos responsáveis pela conexão da empresa de mineração com o assassino. Ao ser confrontado por Ryan, ele argumenta que fez isso pelo país, para evitar a presença da China na disputa do mineral tântalo. Em seguida, agentes do FBI cercam a praça e o senador é detido. Ryan caminha pelas ruas sozinho, tal qual o herói solitário dos westerns. Há aqui uma anteposição a corrupção mostrada na Venezuela. Nos EUA ela ocorreu sob pretenso motivo nacionalista, mas foi combatida e punida pelo herói que é capaz de agir contra a tentativa de corromper as instituições. Diante de todos os desafios e inimigos é o modo de vida estadunidense que permanece.
Uma curiosidade: na mitologia o tântalo, metal disputado pelos EUA e China e motivo da morte do senador, também era o nome de um rei da Frígia. Conta a lenda que, resolvendo testar as divindades, Tântalo roubou comidas dos deuses e ofereceu seu próprio filho como alimento. Recebeu como punição dos deuses jamais conseguir saciar sua fome e sede. O atual império dos EUA é movido por uma fome infinita, fome que pode determinar o fim de sua hegemonia. Será que os Jacks Ryans conseguirão evitar o fim do Império?
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