
Se fosse imperativo ter de descrever o cinema coreano em algumas palavras seria possível argumentar: uma cinematografia onde, em muitas ocasiões, predomina a tragédia. A tragédia é uma forma de drama, que se caracteriza pela seriedade e atuação frequente do destino ou da sociedade na vida dos personagens em questão.
Já um drama é um termo, que quando aplicado ao mundo do cinema, significa filme de caráter “sério”, não cômico, que apresenta o desenvolvimento de fatos e contextos que podem ocorrer na vida real. Não se sabe exatamente onde a tragédia foi criada, mas, a maioria dos estudos, apontam que ela advém da poética e tradição religiosa da Grécia Antiga, nas performances realizadas em rituais promovidos ao deus do vinho Dionísio (para os romanos Baco).
Há uma grande possibilidade de sua origem ter raízes orientais, sendo absorvida pelo Ocidente, como muitos historiadores revisionistas tentam apontar. Não seria de todo estranho, já que se sabe da relação que gregos e romanos estabeleceram com muitos povos do Oriente.

Em um primeiro momento, pode-se pensar que se trata de algo comum ao cinema de praticamente todos os países, mas aqui se quer referir ao conceito de tragédia que foi elaborado na Grécia Antiga, em especial pelo filósofo Aristóteles. É possível constatar que muitas obras apresentam algumas características que fazem recordar a chamada tragédia grega.
À exemplo estão: a atuação implacável do destino sobre a vida dos personagens, fazendo com que estes tenham um desfecho trágico, por mais que eles tentem lutar contra isso; e a catarse do público. Ou seja, a purificação, a limpeza das emoções dos espectadores, que ao assistirem aos eventos terríveis, pelos quais passa a vida do/da herói/heroína (personagem), ficam comovidos, sensibilizados com tal horror, resultando em uma profunda compaixão por ele/ela, pelo que o infausto destino reserva a ele/ela.

Aristóteles era filho de médico e estudioso das ciências naturais, por isso, muitos cientistas acreditam que ele compreendia a encenação dramática como um conforto para alma, ajudando os espectadores a livrarem-se de suas próprias dores, sofrimentos, ao assistirem tais obras. Em sociedades como a coreana, russa, ou europeia em geral, que experimentaram guerras, perda, ou separação de suas famílias, em razão de tais conflitos políticos, este tipo de narrativa pode ser muito encontrado em todas as formas de expressão artística.
Algo contrário, por exemplo, que ocorre com a maioria dos filmes produzidos nos Estados Unidos, em Hollywood, onde no final, de forma geral, tudo acaba bem. Pode-se dizer que a noção de destino para algumas sociedades tem a máxima contrária à do Ocidente, em que o rumo da existência é o próprio homem que decide.
É o caso de três filmes coreanos: Oldboy (2003), de Park Chan wook, Mother (2010), de Joo Ho bong, que foi exibido no Festival de Cinema Coreano, em São Paulo, este ano, e Pietá (2013), de Kim Ki duk. Nestes três enredos, os heróis cometem grandes atrocidades que vão resultar em seus finais trágicos, mas a situação que acabam experimentando parece ser totalmente avessa a possibilidade de que a eles possam ser atribuídas às causas de tal infelicidade e acontecimentos terríveis.

Em OldBoy, o personagem principal, Oh Dae su (Choi Min sik), um homem bem casado e pai de uma filha é preso por estar alcoolizado. Ao sair da delegacia, telefona para casa, mas logo desaparece, sendo raptado e acordando horas depois em um quarto que vai permanecer por 15 anos. Neste cômodo ele recebe pouca comida, assiste televisão e dorme após aspirar um gás que o deixa sonolento. Um dia, o noticiário informa que ele é um dos principais suspeitos do assassinato de sua mulher. Sem poder escapar, ele acaba aceitando a sua condição e tenta sobreviver, sempre pensando o que o levou a estar preso. Um dia, ele é solto e sai em busca de respostas e de vingança. Fica sabendo que sua filha foi adotada por um casal sueco e decide não tentar encontrá-la.
Um dia, ele entra em um restaurante de sushi, onde conhece a jovem Mi do (Kang Hye jung), com quem vai manter um caso amoroso. Ao longo da busca do herói por seu sequestrador, um homem rico, Lee Woo jin (Yoo Ji tae) entra em contato com ele e, no final acaba revelando que ele fora preso por 15 anos por, em sua adolescência, ter visto Woo jin cometer incesto com a irmã, que se mata após Oh Da su contar a todos o que tinha presenciado.

Woo jin também revela que Mi do é, na verdade, a filha de Oh Dae su. Em choque ele imporá a Woo jin que mantenha em segredo tal informação, o que o vilão concorda. Ao fim, Oh Daer su não consegue afastar-se de Mi do a quem vê como uma mulher e não mais como filha. Sua solução é buscar ser hipnotizado para seguir vivendo.
Certamente, há uma grande carga cristã nos diversos elementos psicológicos explorados no filme, uma vertente religiosa que tem forte presença na Coreia do Sul. No mundo dos deuses da Grécia Antiga, a relação íntima entre os pais deuses e seus filhos era algo natural e permitido. Contudo, para além da questão moral, o que nos leva a perceber os traços da tragédia grega em Oldboy é que Oh Dae su foi o escolhido pelo destino para presenciar o incesto de Woo jin com a irmã e a tornar-se amante da própria filha. A vida de ambos está condenada, como a de Édipo, uma clara analogia a noção moral que coreanos e gregos antigos parecem compartilhar de que há algumas coisas que são imperdoáveis e os que as cometem devem ser punidos para sempre.
Tal imposição das regras morais pode ser claramente observada na vida real, com questões até menos polêmicas. Por exemplo, no mundo do entretenimento e das artes, muitos K-idols, ao cometerem algum deslize condenável, tiveram suas carreiras terminadas da noite para o dia.

Uma punição é o que também recebe a personagem de Mother. Uma mãe (Kim Hye ja) vive sozinha com filho de vinte e oito anos, Yoon Do joon (Bin Won), que é doente mental. Para sobreviver, ela fornece ervas e acupuntura aos vizinhos. Um dia, uma garota é brutalmente assassinada, e Do joon é acusado da morte. A mãe tenta provar a inocência do filho, mas ocorre que ela descobre que ele realmente cometera o crime. Entre esconder a realidade ou deixá-lo preso, ela mata a única testemunha e foge com o filho. Para esquecer da situação, aplica em si mesma um método de acupuntura que provoca perda de memória. É outro exemplo do destino implacável, da punição, e de que a única solução é o esquecimento do fato, se o desejo de permanecer vivo ainda incide sobre o personagem.
A outra opção seria a morte, que foi a escolha do personagem Lee Kang do em Pietá. Ele é um cobrador de dívidas e apela para os mais terríveis métodos de tortura para que os devedores paguem seu chefe. A maldade nele é por um tempo justificada pela ausência da família, mais particularmente pelo abandono da mãe. Um dia uma mulher misteriosa Jang Mi sun (Jo Min su) chega a sua casa afirmando ser sua mãe. Ele tenta afastá-la e continua a realizar o seu trabalho, mas com o tempo e o afeto de Mi sun, eles estabelecem uma relação próxima, de mãe e filho, que acaba também se tornando íntima em alguns momentos.
Ocorre que Mi sun é, em realidade, a mãe de um dos clientes torturados por Kang do e que acaba morrendo. Ela vai buscar vingança, mas acaba se compadecendo pela vida trágica do rapaz. Ela resolve desenterrar o próprio filho e morrer com ele. Kang do quando descobre, acaba também optando pelo suicídio. Neste último filme são vários os elementos trágicos: o rapaz cujos pais abandonaram, a mulher, cujo filho, certamente, contraiu dividas pelas dificuldades de ter uma carreira profissional bem-sucedida e a fatídica compaixão de Mi sun, promovem o desfecho trágico.
Não é por acaso que os filmes coreanos possam apresentar temáticas com elementos provenientes da chamada Tragédia Grega e isso não se dá apenas pelo passado de guerras. A influência do cristianismo poderia ser a explicação para um destino, ou porque não, um Deus que não perdoa. Mas qual relação isso teria com os gregos? Acontece que pouco se fala sobre o estreito vinculo que a moral cristã tem com pensamento da Grécia Antiga. Esta, à medida que perde poder representativo, tem sua cultura e moral absorvidas pelos romanos, que séculos depois irão desaparecer, tendo seu lugar ocupado pela Igreja Apostólica Romana.
O código moral cristão que irá servir de base para os dogmas da Igreja é proveniente de Platão, mestre de Aristóteles. Conforme a visão platônica, o homem atinge uma condição ideal quando atua somente pela razão, sendo as emoções e qualquer outra ação impulsionada pelos sentidos, demonstrações do estado evolutivo inferior daqueles que assim se comportam. Para os gregos antigos em geral, diferentemente dos deuses que são imortais, o ser humano deve agir de forma racional, pois é a única forma que encontra de sobreviver à vontade dos deuses de fazer o que quiserem fazer, por puro prazer.
O discípulo Aristóteles vai contrapor o tutor e assim será descartado pela Igreja e demais instituições de poder. Contudo, a sociedade contemporânea, e outras anteriormente, acaba recuperando o pensamento aristotélico e provoca uma disputa com a própria Igreja. Todos as nações, cujo cristianismo tem forte influência, acabam por expressar através da arte estas questões polêmicas, sendo a Coreia do Sul, uma delas.
Assim, percebe-se que tais filmes visam trazer uma reflexão sobre este destino que não se consegue modificar e a sociedade que condena implacavelmente, sem levar em consideração que o ser humano é um todo complexo. Sociedade que como um Deus grego imortal brinca com a vida de seus súditos mortais; ou um Deus cristão que empurra para o inferno quem não seguir as suas regras, não admite, de forma real, a compreensão como forma de trazer uma solução positiva a questões tão polêmicas.
Afinal, Oh Daer su nutriu uma paixão pela jovem que ele, na ocasião, nem sabia ser sua filha, situação armada por uma pessoa que cometera espontaneamente incesto no passado; o filho doente mental em Mother mata uma garota, que ele acredita ter caçoado dele, já que, a vida toda, foi ridicularizado pela sua deficiência; e Kang do foi abandonado e brutalizado muito antes de se tornar uma pessoa cruel. Em Oldboy e Mother os personagens enfrentam o fatídico destino, criado pelo Deus, ou deuses, pois esquecer a dor é poder viver bem novamente.
A catarse provocada por tais filmes pode também auxiliar os espectadores que, por ventura, passaram por situações igualmente complicadas. Já Kang do, em Pietá, sucumbe, pois nem gregos, nem coreanos, nem ninguém parece ter forças para viver bem, sem o convívio e o carinho familiar.
Fonte: Texto originalmente publicado no site do Koreapost
Link direto: https://www.koreapost.com.br/destaques/tragedia-grega-e-os-dogmas-cristaos-em-oldboy-mother-e-pieta/
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