
Como filha de professores, ao longo das minhas quase quatro décadas de existência li muito. Ótimos autores, especialmente europeus, levaram-me a dar a volta ao mundo em 80 dias, a viajar com um principezinho que habita um asteroide, a caminhar pela Terra Média junto a anões, humanos, elfos e hobbits e a fazer tantas viagens quantas o tempo de leitura e o acesso aos livros no interior do Brasil permitiram. Essas histórias continuam a me acompanhar simbólica e também literalmente – mantenho esses livros fisicamente perto e não raro abro-os em uma página aleatória para espiar o que está se passando em um ou outro espaço-tempo diferente do meu.
Há poucos anos percebi que, por mais que me tenha dado, em grande medida essa literatura construiu-se a partir de narrativas de perspectiva única. Só para ficar no exemplo dessas três histórias que mencionei acima, clássicos da literatura mundial, em todas elas os protagonistas são homens brancos, nos quais uma ou outra diferença mal disfarça a homogeneidade do perfil dos heróis nas grandes histórias ocidentais. Não que sejam dispensáveis ou ruins – ao contrário, continuo achando-as incríveis. O problema é que, como já disse a escritora nigeriana Chimamanda Adichie, elas contam apenas uma parte da história. Não o tinha percebido até os primeiros contatos com a literatura feminista, negra, indígena, enfim, literatura de ou sobre as gentes que vivem às margens (que vou chamar de literaturas do Sul).

O interessante nessa literatura é a diferente perspectiva de vida que nos apresenta (como seria uma história contada por outro personagem?), as certezas que ela nos faz questionar (como conseguimos não enxergar o que esteve sempre na nossa frente?), a humanidade que ela desperta ao provocar-nos a habitar um mundo diferente do nosso. Achile Mbembe, por exemplo, com “Necropolítica” (N-1 Edições, 2018), provocou em mim um olhar para as políticas do Estado como escolhas sobre quem deve viver ou morrer em determinada sociedade. Afinal, ao destinar recursos para infraestrutura e saneamento para algumas regiões e abandonar outras, não é isso que se está a fazer? Ao não combater uma cultura que pré-julga o negro pobre como bandido e autoriza contra ele a violência, não é isso que se está a fazer?


Yaa Giasy, com “O caminho de casa” (Rocco, 2017), convidou-me a acompanhar a história de sete gerações das famílias das irmãs Effia e Esy, desde o período pré-escravidão em Gana até a vida de seus longínquos descendentes nos Estados Unidos. Como pudemos (e como podemos, ainda hoje) admitir o acorrentamento e o açoite de seres humanos? Quanto de história e identidade é negada aos descendentes de pessoas escravizadas que não conseguem retraçar, por nomes de famílias e registros cuidadosos, suas origens? Quanta dor se carrega quando o mundo ao redor não foi feito considerando você e os seus como dignos ocupantes de tudo que a sociedade constrói?

Svetlana Alexievitch, com “Vozes de Tchernóbil” (Companhia das Letras, 2016), plasmou a humanidade que ficara perdida entre razões de Estado e de oportunidade política ao tratar abertamente sobre o que aconteceu com gente como a gente no maior desastre nuclear fora de um contexto de guerra. A monumentalidade da tragédia ficou infinitamente maior quando as perdas das pessoas comuns, que viveram a dor das desintegrações de animais e pessoas para uma radiação implacável (a dor da perda de um mundo) foram traduzidas pelas vozes daquela gente sem farda e sem pompa. Como não ler nos testemunhos recolhidos por Alexievich uma pergunta de fundo sobre as escolhas que fazemos sempre que flertamos com a morte em nome do avanço tecnológico? Como, a partir de sua obra, não refletir sobre essa espécie de caminhar à beira do abismo que ensaiamos cada vez com mais ousadia?


Fazer perguntas é muito importante. Em um mundo com tantas certezas, recuperar a capacidade de fazer perguntas é recuperar a criticidade, a capacidade de pensar, e é nisso que mora todo potencial revolucionário de uma literatura que toca nossa percepção para enxergarmos outras possibilidades de vida. Percebi que as perguntas que passei a me fazer a partir das literaturas do Sul são as perguntas urgentes que temos que responder num mundo em franca degradação.
O contexto que vivemos é de aumento da violência contra a mulher; de gentrificação de espaços urbanos e intensificação do deslocamento das pessoas pobres para as periferias sem a infraestrutura, a qual fica concentrada nos centros; de destruição irreversível da natureza; de inversão sobre quem são as vítimas e quem são os privilegiados em um sistema que herdou da colônia a inferiorização da mulher, do índio, do negro, do pobre. Nesse contexto, há uma urgência por textos que nos apresentem diferentes perspectivas, que nos desloquem daquilo que já conhecemos, que nos provoquem a pensar o que estamos construindo se seguirmos com os mesmos repertórios de desenvolvimento, padrões de relacionamento, estruturas de consumo e perfis de exploração material e simbólica da terra e das pessoas.
Toda a literatura é importante, mas há uma literatura urgente. É urgente uma literatura que seja, para usar os termos de Manoel de Barros, alargadora de horizontes. Só alargará nosso horizonte uma literatura nova, que nos leve por caminhos que ainda não trilhamos e nos faça sair de nossas certezas para encontrar o diferente e, talvez, para ponderar novas possibilidades de vida: mais integradas, menos elitizantes, mais alegres e mais solidárias.
Ailton Krenak, desde o icônico discurso em que pintou o rosto de preto na Assembleia Constituinte de 1987 para protestar contra o retrocesso dos direitos indígenas, tem sido um alargador de horizontes. É dele “Ideias para adiar o fim do mundo” (Companhia das Letras, 2019), em que convoca a pensar sobre nossa aceitação acrítica de uma única forma de viver como a melhor e mais evoluída, mesmo ante todas as evidências que estamos a nos descolar de qualquer senso coletivo, da terra e uns dos outros. Lembra que temos interagido cada vez mais unicamente como consumidores, que perdemos qualquer senso de cidadania e que estamos desenhando um mundo de pessoas que, sem identificar suas próprias histórias enquanto coletividade que compartilha uma caminhada, encontra-se apenas no mundo desprovido de afetos do mercado, como zumbis.
Krenak não escreve sobre como evitar essa sensação de queda. Para ele, estamos caindo há muito tempo, mas talvez ainda estejamos em tempo de, em suas palavras, pegarmos em paraquedas coloridos. Para isso, nos convoca a pensar com liberdade, a reconhecermo-nos uns aos outros em nossas diversidades, a restabelecermos nosso senso de unidade com a natureza. Afinal, para onde vamos se continuarmos a interagir somente como consumidores? Para onde vamos com esse modelo de progresso, mineração e industrialização? O que faremos quando a Terra não suportar mais nossa demanda?


É tempo, urgente, de ampliar horizontes:
“Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte (…) É enriquecer nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades – as nossas subjetividades. Então vamos vive-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência” (Krenak, 2019, p.32-33).
Em um país em que livros com muitas coisas escritas não são bem-vindos e em que discursos de inferiorização dos povos originários, de negros, de mulheres, de idosos, de pessoas com deficiência habitam textos e manifestações institucionais dos poderes constituídos, viver as subjetividades é um ato de resistência. Entrar em contato com as muitas diversidades como um guia de opção pela vida é, igualmente, resistência. As literaturas do Sul – não necessariamente do Sul geográfico, mas as oriundas das margens do sistema, das vozes historicamente silenciadas -, são uma porta para olharmos o mundo sob diferente perspectiva e uma oportunidade de ampliarmos horizontes. E ampliar horizontes talvez seja a mais urgente e revolucionária ação nos tempos que vivemos.
Cristine Koehler Zanella
Professora e Coordenadora do Curso de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (São Bernardo do Campo – São Paulo). Doutora em Ciências Políticas (Ghent University – Bélgica) e Doutora em Estudos Estratégicos Internacionais (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Graduada em Direito e em Economia e Mestre em Integração Latino-Americana (Universidade Federal de Santa Maria). Organizadora do livro “As Relações Internacionais e o Cinema”.
Deixe seu comentário