
A pesquisa acadêmica e o conhecimento geral que engloba diversas áreas relacionadas ao continente asiático ainda encontra barreiras no Brasil, tendo muito espaço para avançar. Conforme diversos estudiosos das relações internacionais, estamos entrando em uma nova era, onde a Ásia terá papel preponderante. Contudo, os brasileiros e os campos de estudos sobre os paises desta região enfrentam uma cultura intelectual no país ainda muito eurocentrada. Desta forma, diversas questões históricas que se acredita conhecer como a Era Meiji (1867-1912), período histórico de modernização e industrialização do Japão, acabam sendo questionadas, pois até o momento são vistas por lentes ocidentais, Desta forma, não levam em conta o trabalho de pensadores e estudiosos nacionais destes países, ou até de pesquisadores de outras regiões do mundo, que teriam também algo a dizer sobre história do Japão, talvez até mais que qualquer estadunidense, ou europeu.
Diferentemente do que se pensa, Meiji não foi um momento histórico de submissão e ocidentalização do Japão. No entanto, o que houve foi um processo de transformação conduzida e adaptada pelo japoneses, em iniciativas independentes que almejavam a construção de um projeto de nação e de um império que aspiravam na época. É certo que no século XIX, o imperialismo europeu e norte-americano fazia-se presente na Ásia. Porém, seria errado afirmar que os japoneses para sobreviver ao braço forte europeu e dos EUA tiveram de incorporar valores totalmente ocidentais, fugindo de suas raízes e se submetendo como bons servos locais, a partir da chegada do comodoro estadunidense Matthew C. Perry, que forçou o Japão a abrir seus portos para os EUA. Na realidade, grupos políticos do Japão aproveitaram a oportunidade para dar fim à estrutura política, dominante há séculos, do Xogunato, cuja figura política maior estava na autoridade de vários xoguns, os supremos líderes militares. E estes estavam submetidos de certa forma ao Imperador.

A revolução Meiji daria fim ao poder destas figuras e implementaria o poder supremo simbólico na pessoa do Imperador. Para tanto, os japoneses usariam da mitologia nipônica e do xintoísmo para fornecer à sociedade japonesa a ideia de que seu chefe maior era descendente de deuses e que o futuro da nação, portanto, seria glorioso. Assim, anos de guerra civil chegaram ao fim. O Japão testemunhou uma coesão nacional sólida e um desenvolvimento econômico e social sem precedentes. Contudo, a sociedade antiga japonesa constituída de classes e que tinha o poder centrado no Xogum não foi eliminada, mas adaptada para os novos tempos. Seria o fim dos conflitos bélicos domésticos, mas o início da expansão imperial e da invasão a outros países. Foi o período que os nacionais do Japão creditavam-se a certeza de serem uma nação modelo a ser seguida pelos demais asiáticos que, na visão dos líderes japoneses da época, em especial os militares, eram considerados inferiores.
Quem apresenta estas informações é Mateus Nascimento. Ele é mestrando em história social pela Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF) e graduado em história pela mesma universidade. Colunista da Revista Intertelas, é também pesquisador efetivo do Centro de Estudos Asiáticos (CEA) da UFF, do Núcleo de Estudos Tempo Literário do Instituto Cultural Brasil-Japão, do MidiÁsia/UFF e do Grupo de Pesquisa em Mídia e Cultura Asiática Contemporânea. Ainda é membro da Red Iberoamericana de Investigadores en Anime y Manga (RIIAM) e da Academia Nipo-Brasileira de Estudos de Literatura Japonesa, tendo passado pelo Grupo de Estudos Japoneses (GEHJA) da UFF. Aqui ele responde algumas questões à Intertelas sobre este tema, ainda tão pouco conhecido do público em geral no Brasil, e fala da trajetória de sua pesquisa, indicando material de estudo para quem se interessa pelo assunto. Acompanhe abaixo!

Por que, na sua visão, a Era Meiji é descrita por muitos outros especialistas ocidentais de forma equivocada? A exemplo, há a constante explicação de que a esquadra naval de Matthew C. Perry teria sido a causa principal das transformações profundas pelas quais passou o Japão na época.
Meiji aparece no imaginário das pessoas através de um conceito que sempre me causou certo desconforto: ocidentalização. Meiji é para muitas pessoas a ocidentalização do Japão. Eu não concordo com isso por dois motivos principais. O primeiro é que nenhuma sociedade ou cultura é uma ilha, homogênea e estanque. Essa é uma das críticas àquela noção de estrutura. Toda a pactuação da cultura, que envolve a vida das pessoas, é sempre uma negociação entre o macro e o micro. Todas as pessoas só se entendem no mundo através de grupos, nos quais as diferenciações acontecem. Cultura então é ao mesmo tempo essa teia de conceitos e de prática destes conceitos, o que supõe haver improvisações eventuais na vida em sociedade que subvertem um dado cultural. Gosto muito do Clifford Geertz para pensar sobre isso, principalmente quando ele fala que um piscar de olhos pode ter vários significados, que só serão descobertos no decorrer da observação acurada do pesquisador.
O segundo é o fato de uma potência americana ter agido violentamente, abrindo portos e bombardeando uma baia japonesa e ter promovido uma submissão do Japão. Isso não significou uma postura passiva dos próprios japoneses diante daquele mundo que estava sendo desenhado. Ao contrário! A chegada inicialmente abrupta dos EUA permitiu ao Japão repensar o seu papel nas relações internacionais do séc. XIX, o que proporcionou ocorrer um dos mais amplos projetos de modernização da época. Além do fator externo, o próprio governo do Xogunato Tokugawa estava em crise desde pelo menos 1840, pois a diminuição do número de guerras e batalhas deu origem a um sistema cortesão mais desenvolvido em termos culturais.

Por outro lado, as negociações intensas com potências europeias, por exemplo, como a Holanda, auxiliaram na queda desse edifício de paz e luxo. Comerciantes desde sempre vistos como aqueles que deveriam estar fora da ritualística de poder da época, passaram a financiar as elites em troca de influência simbólica e nisso consiste a crise do poder do Xogum. Não sem razão, grupos surgem criticando esta situação e pedindo a restauração do estado anterior das coisas, do sistema passado. Portanto, “nunca foi só o Perry e sua esquadra”, como explicam os livros didáticos. Eu prefiro pensar que a crise interna somou-se à intervenção ocidental. E a resposta japonesa a isso é original e digna de lugar no estudo da história. Aqui nasceu meu objeto de pesquisa!
E como foi a sua trajetória nesta pesquisa?
Eu defendo que não houve uma ocidentalização do Japão no séc. XIX. Obviamente, que para embasar teoricamente e historicamente esta afirmação precisava antes desenvolver toda uma compreensão com mais profundidade sobre a análise destes conceitos ocidentais. Na minha busca bibliográfica encontrei vários livros sobre Meiji que abordavam o período nessa perspectiva da ocidentalização. Existem muitos livros escritos pelo José Yamashiro que reforçam essa tendência, outros mais acadêmicos como o texto de Barbosa Lima Sobrinho “Japão: o capital se faz em casa” (1990), que acompanham esta linha também.
O livro de Barrington Moore Jr, “As origens sociais da ditadura e da democracia” (1983), que no famoso capítulo nove fala do “Fascismo Asiático” e aborda as mudanças que ocorreram nos tempos finais do Xogunato aos anos iniciais do período Meiji. Também encontrei livros menos conhecidos com uma perspectiva mais crítica, os quais fundamentaram um pouco mais a minha pesquisa. Refiro-me aqui ao livro de Renato Ortiz, “O próximo e o distante: Japão e modernidade-mundo” (2000), que se tornou um ponto de partida incontornável para os interessados em estudar Japão. Também há o texto clássico de Ruth Benedict, “O crisântemo e a espada” (2009), que mesmo com todos os seus problemas, é um bom início para qualquer estudo da área. Ambos falam de Meiji como se estivessem comentando os significados da época e isso me ajudou muito a pensar que deveria escolher algum elemento social deste período para pensar.
Nesse ínterim, encontrei outros textos e fui descobrindo que, na verdade, existem muitos autores renomados que já escreveram sobre o Japão. O que acontece é que seus textos não receberam a audiência adequada em meio a um conjunto de pesquisas pouco preocupadas com a Ásia. Lévi-Strauss por exemplo, dedicou um livro inteiro ao Japão. Enfim, existem outras obras para dizer com muita propriedade que a história do Japão não se resume aos momentos em que a nação aparece no mundo contemporâneo e nem a uma ocidentalização que não dá conta da riquíssima estratégia japonesa de comentar a tradição ocidental.

A ideia do Japão imperial visava uma coesão nacional e a criação de uma nova identidade nacional. Qual a importância do xintoísmo e da mitologia nipônica, presentes na constituição da época, para a formulação desta ideia de Japão no pós-Xogunato?
Mapeados os dados cronológicos, parti em busca fontes. Para minha surpresa, fui encontrando algumas que refletiam os interesses do próprio governo em tornar o Japão conhecido. Encontrei textos da promulgação do Estado Meiji, éditos (como o édito de educação) e a própria Constituição do Império do Japão, promulgada em 1889 e lançada para o mundo todo, no ano seguinte em versão traduzida e bilíngue. Uma grande maioria já se encontra disponível na internet e eu penso que ainda há muito a ser dito cientificamente sobre esses textos.
Neles vemos um ministro muito influente, chamado Ito Hirobumi, conduzir as pesquisas e o projeto político Meiji, ancorando-o sobre a figura Imperial. De todos os símbolos, o império aparece como o mais revisitado e repaginado. Aliás, o Imperador foi posto no trono com idade juvenil justamente para autorizar esse projeto dos ministros comandados por Hirobumi. Quando notei este fato, optei por pesquisar como esse governo reformulou e reposicionou politicamente a presença simbólica do império. Fui ao texto jurídico para entender quem era esse Imperador e quais os seus poderes legais e me deparei com uma sequência de comentários do próprio ministro sobre seus pensamentos! Estava aí a minha fonte: os comentários de Hirobumi e os textos jurídicos de Meiji.

Basicamente, Hirobumi começou traçando um lugar mítico que justificou o império e o seu discurso. “Desde os tempos antigos” ou “herança de nossos antepassados” são duas formulações que aparecem corriqueiramente nos textos. Afinal, os políticos precisam justificar o seu projeto de modo a ter comprometimento dos novos cidadãos japoneses. Muitos desses líderes foram membros de clãs opressores e exploradores durante o governo Tokugawa, mas precisavam tirar o foco deles, enquanto ocorresse a implantação do projeto. A saída mais prática seria revisitar os textos antigos e inventar a sua autoridade perante a nação. Assim, fez-se: os pensadores retomaram textos e ideias dos textos mais antigos do Japão, sobretudo, o relato das coisas antigas, do Kojiki (o livro mais antigo sobre a história do país, nos seus primórdios como nação. As canções incluídas no texto são em japonês arcaico). Esta publicação serviu de baliza para o que se estava dizendo sobre as origens do Japão e do poder imperial. O Kojiki possui uma versão em português que é fruto de um trabalho de mestrado.
Na sua pesquisa, você afirma que os pensadores chineses tiveram certa influência nesta reformulação do que viria a ser o Japão do século XX.
Nessa retomada, um pouco do pensamento chinês também reaparece sim, com a noção de ordem (tao) e mandato do céu, os quais justificam o poder e o lugar moral dos indivíduos na China. Havia só uma diferença em sua aplicação no Japão: não havia uma formulação de meritocracia como a chinesa (a questão dos concursos públicos de admissão). Os políticos Meiji repaginaram a hierarquia, sem a abolir completamente. Novos grupos sociais surgiram e outros antigos foram desfeitos ou desmembrados.
Os samurais, por exemplo, perderam o seu papel de autoridade punitiva local. O império precisa seguir um pouco das novidades ocidentais, sem perder a originalidade japonesa. Isso significou o estabelecimento de novos conceitos para a ordem pública: honne, verdadeiro pensamento; tatemae, pensamento que segue o que está posto para manter a ordem; uchi, ser de dentro, ser aceito, insider; e soto, em síntese, outsider. Este talvez seja o maior legado dessa formulação oitocentista, visto que ainda existem muitas situações em que esses conceitos aplicam-se em espaços japoneses ou nipo-brasileiros.
Esta visão de um Japão destinado pelos deuses a ser uma raça e um povo eleito e predestinado teria contribuído para a expansão imperial a outros países e desencadeado o período de colonização, além dos genocídios durante a Segunda Guerra Mundial?
Lendo os documentos e vendo o nascimento dessa ordem pública, parece-me lógico dizer que o Japão não foi ocidentalizado. Vale considerar que esse caminho de investigação aplica-se também a outros campos. A tecnologia por exemplo. Muitos autores entendem que o desenvolvimento econômico de finais do período Meiji tem semelhança com os casos ocidentais, mas, destacamos, os grupos financeiros, zaibatsu, que financiaram e foram influenciados pelo Estado mesmo depois de Meiji.
Muitos deles tiveram suporte econômico em suas ações de expansão comercial. O Japão começa a entrar em terras de seus vizinhos com isso, e se torna uma presença na região, defendendo a especificidade japonesa. O discurso étnico¸ conhecido como nihonjinron (textos que abordam questões de identidade nacional e cultural japonesa, e compartilham a crença geral do Japão como uma nação singular), que na verdade é um campo vasto de estudos e publicações em diversas áreas que se juntam sob esta lógica, orienta a formação dos primeiros ataques e a realização das guerras. Com a vitória sobre a Rússia, o Japão tornou-se reconhecido no cenário internacional.
E como a franquia Rurouni Kenshin, Samura X como é conhecido no ocidente, ajudou a trazer conhecimento e instigar interesse em um público geral não conhecedor destes fatos históricos?
O Japão Meiji, curiosamente, está presente no imaginário da juventude, por conta do grande número de expectadores do anime Samurai X. Ele alcança o público não somente no espaço do virtual, informal, mas também do televisivo. Os episódios da franquia foram exibidos em dois momentos: de inícios de 1999 até inícios de 2000 pelo programa TV Globinho (Rede Globo) e entre 2001 e 2002 pelo bloco de animes do canal Cartoon Network.

Como já foi dito, a era Imperial japonesa objetivou pôr fim ao período violento do Xogunato, regido por matadores, e promover a coesão do país. Contudo, a violência seria transportada para o exterior com a invasão e a agressão a outras nações. Muitas das estruturas do Xogunato permaneceram e não foram transformadas realmente para melhor. Todas estas questões são claramente exibidas no anime e no manga. Como esta questão é construída no personagem Kenshin? Seria ele a personificação fictícia de um Japão, ainda visto de forma negativa e desconfiada pelos vizinho, em busca redenção?
Eu fico pensando que realmente existe uma curiosa semelhança entre os elementos narrativos da obra e os fatos deste período histórico, pois, ficamos sabendo que em função da sua habilidade, tornada famosa por setores relacionados ao governo militar, Kenshin, recebe o título de Retalhador no período do Bakumatsu. Com a vitória do projeto imperial, seus pensamentos o fazem iniciar uma peregrinação pelo novo Japão que nascia, tendo como objetivo o apagamento desse passado. Na história do anime, conhecemos Hitokiri no Battousai, foi assim que Kenshin Himura ficou conhecido no período imediatamente anterior as intensas transformações da modernização. Durante o período de desordem que antecede a renovação da figura imperial, nosso herói vivia de vender seus serviços de espadachim.
A figura do samurai como um asceta foi dando lugar a uma progressiva capitalização do caminho da espada, pois mais e mais senhores desejavam manter o seu poder local e alcançar postos junto ao poder nacional, momentos antes do colapso do sistema. O autor Nobuhiro pensou em demonstrar uma espécie de desumanização daqueles que são vistos como símbolo da cultura japonesa justamente quando passam a desejar o poder e a autopreservação.

Não há datações tão específicas na obra, mas sabemos que o contexto de 1847-1867 é decisivo para a derrota do projeto tradicionalista e Himura e outros percebem o destino eminente da figura samurai, detentora do signo da violência desde meados do séc. XI. Eles ou abandonam o caminho da espada em prol do novo governo, sendo alguns de fato reaproveitados para fins de segurança pública, ou escolhem a errância e a peregrinação ensinadas pelo budismo, em busca de iluminação em um novo contexto. Após essa sua vida militarizada e desumanizada, o protagonista começa a peregrinar. Peregrina para tentar conviver com seus atos passados. Talvez, Nobuhiro, com todos os seus próprios problemas, tenha tentado mostrar o Japão em Kenshin.
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