
Quer dois motivos para ver o capítulo “Don’t call it Curry” (“Não chame isso de curry”), da segunda temporada da série “Ugly Delicious”, da Netflix ? Oferecemos quatro. Mas certamente haverá mais razões do que essas para gastar 50 minutos de sua vida, que passam como cinco, com esse programa. Você entenderá que as folhas de curry e os pós de curries não tem conexões. Você perceberá que quando repete a expressão “gastronomia indiana” é como se você dissesse gastronomia europeia: a variedade dos pratos na Índia é maior do que na Europa.
Você será informado de que que os próprios indianos não tem conclusões idênticas sobre a sua comida (as opiniões e visões são tão diversas quanto se imagina de um país com uma população de 1,3 bilhão de habitantes). E você saberá que na Índia rural muitos ainda usam esterco seco de vaca como combustível para cozinhar. Não faltam motivos para assistir pelo menos esse capítulo do “Ugly Delicious”.
A belíssima modelo indiana e apresentadora de TV Padma Lakshmi abre a cena subindo na bancada de sua cozinha para alcançar uma caçarola, onde preparia um delicioso peixe ao molho no estilo indiano. Ela recebe em seu apartamento, em Nova Iorque, o amigo Dave Chang, chef famoso que apresenta o programa.
Eles se deliciam em um restaurante especilizado em thalis (essa palavra significa prato): o Shree Thaker Bhojanalay. Esse é um sistema no qual você come à vontade. O prato thali tem várias cumbuquinhas que os atendentes vão preenchendo com diferentes delícias, conforme você vai devorando a comida. “Não sei o que escolher, não sei como diferenciar os pratos. Tudo o que sei é que é a comida indiana é vasta, abundante e que tem uma história incrível “, diz Chang. O âncora do programa vai até a Índia, e passeia pelas feiras de Mumbai acompanhado de Vikram Doctor, blogger indiano especializado em gastronomia.

A pergunta inevitável de Chang para Vikram: De onde vem o curry, o prato mais icônico e incompreendido da culinária indiana? Vikram sorri e responde: “Não é apenas um prato, é uma variedade de pratos. É um prato líquido”, diz, referindo-se ao fato de que curry pode ser qualquer molho. Ele conta que os curries são cozidos em um processo lento, devido à tradição rural indiana de usar esterco seco de vaca como combustível para o fogão. “Não gera fogo alto, mas sim um fogo lento e consistente”, conclui.
O assunto curry rende, daí ter dado o título para o capítulo. Padma , que foi casada com o famoso escritor Salman Rushdie, prepara o peixe com folha de curry e explica que não há conexão entre esse ingrediente insubstituível e os pós de curry vendidos no Ocidente. Ela explica que os curries são misturas variadas, mas geralmente contém cominho, pimenta malagueta, cardamomo preto, canela, pimenta-do-reino, cúrcuma, sementes de anis e erva doce, tudo em pó. “Minha avó prefere ter seus dedos cortados do que contar a sua receita”, ri Padma.

Após Mumbai, Chang visita Lucknow, capital do estado de Uttar Pradesh, onde há uma forte tradição da chamada gastronomia Awadh, delicada com a francesa, mas com toques de especiarias, cujos pratos cozinham por horas. Uma das grandes aparições da série é Madhur Jaffrey , a grande dama da culinária indiana dos anos 80, quando ela aprsentava um programa de gastronomia na BBC. Ela conta que curry foi uma palavra criada pelos britânicos, a partir de uma outra palavra de uma língua indiana no Sul do país, e comemora o fato de um ministro das Relações Exteriores do Reino Unido ter decretado que o frango tikka masala era o prato nacional britânico, de tão apreciado que é naquele país. A Índia — ri Jaffrey — fez a sua colonização inversa na culinária.

Mas Priya Krishna, de origem indiana, colunista de gastronomia do jornal The New York Times, confessa a Chang que “odeia” a palavra curry: “foi popularizada pelos colonizadores”. Editora da revista “Food & Wine”, Khushbu Shah, a seu lado, concorda, afirmando que curry não existe porque não tem um cheiro característico. Junto com elas, Sonia Сhopra, colunista de gastronomia da revista “Eater”, arremata: “e curry em pó não é indiano, é coisa europeia”.
Chang vai a Kerala, estado no Sul da Índia, onde mostra como é a culinária aiurvédica, com seus pratos vegetarianos deliciosos feitos com óleo de coco e ghee. Kerala é o paraíso global das especiarias. Lá, Chang visita um local de secagem de pimenta-do-reino. “As especiarias são o motivo de o mundo ser como é. Cristóvão Colombo procurava especiarias, não ouro. Ele procurava pimenta-do-reino. Se o mundo não tivesse a Índia e suas especiarias, seria muito tedioso”, concluiu.
Florencia Costa
Jornalista brasileira, escritora e curadora cultural. Ela edita o Beco da India e é cofundadora da plataforma BRiC Street. Costa já foi correspondente de jornais e rádios em Moscou (Rússia), Mumbai e Nova Delhi (Índia). A partir de 2006, Costa trabalhou na Índia como correspondente do jornal O Globo. Em 2012 voltou a viver no Brasil, onde trabalha como jornalista. Lançou, em outubro de 2012, o livro Os Indianos (Editora Contexto). Ela ministra palestras e seminários sobre Índia no Brasil e é cofundadora do Bloco Bollywood, o carnaval de rua da comunidade indiana em São Paulo.
Fonte: Texto originalmente publicado no Beco da Índia.
Link direto: http://becodaindia.com/o-mundo-gastronomico-seria-um-tedio-sem-a-asia-uma-viagem-sensorial-a-india-em-uma-serie-da-netflix/
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