
Eu já escrevi em outras ocasiões sobre o meu interesse por trilhas sonoras e de como alguns diretores, utilizando-se de trilhas originais (ou não), radicalizam a estrutura narrativa do filme, tornando a música um elemento central e protagonista da trama. Como não se lembrar de “Tubarão” (1975), de Steven Spielberg, e das cordas em acordes ameaçadores de John Willians, ou mesmo a abertura do poema sinfônico de Richard Strauss, “Assim falou Zaratustra”, inspirado na obra de mesmo nome de Friedrich Nietzsche, que nas mãos de Stanley Kubrick torna-se um quase hino da aventura humana na terra e do mistério fundamental da existência, numa ressignificação maravilhosa da obra para o clássico “2001: uma odisseia no espaço” (1968) ?
Bem, a composição original para o cinema é uma obra de arte. Cabe ao compositor, em função do seu gênio, das suas referenciais musicais e artísticas e, acima de tudo, da sua sensibilidade, estabelecer um recurso narrativo para o filme. A contribuição criativa dá-se também pela parceria estreita com o próprio diretor do filme, que compartilha sua visão da trama, da ambientação, dos personagens e da própria estratégia narrativa. Logo, se um filme trata um tema histórico e épico, a trilha normalmente deve ser sinfônica e com recursos polifônicos, ao passo que um filme noir, que ambienta a trama nos becos escuros de uma Nova Iorque sitiada pelo crime, tem na sua trilha sonora quase a imposição de um jazz com seus característicos solos de saxofone…
Dentro dessa arte segmentada e muitas vezes pouco conhecida, destacam-se alguns mestres. Gênios criadores e inventivos, que serviram o cinema com a fronteira do pensamento musical e da sensibilidade artística. Gênios como Ennio Morricone. Maestro Morricone…

Escrever um resumo da obra do mestre é desnecessário. Com mais de 500 obras no currículo (entre filmes e seriados para a TV) e com trabalhos ao lado de cineastas como Sergio Leone, Brian de Palma, Terence Malick, Bernardo Bertolucci e tantos outros, o mestre italiano é o compositor preferido da maioria dos cinéfilos. Todos conseguem solfejar alguma composição sua, assoviando as bem humoradas trilhas do período dos Western Spaghettis, ou mesmo aquelas de imenso lirismo melódico, que o caracterizam, principalmente após “1900”, de Bertolucci.

Esse post, portanto, é uma espécie de declaração de amor ao mestre, à sua música e sua decisiva contribuição para a minha própria formação de cinéfilo. Eu já preenchi espaços de dias tristes da minha existência com as suas músicas… Já adotei composições suas como trilha sonora não original para os meus dramas e felicidades.
E aqui resgato uma das suas obras mais memoráveis: a trilha sonora composta para o filme “A Missão” (1986), de Roland Joffé, com Robert de Niro e Jeremy Irons. O filme, mesmo conquistando a Palma de Ouro deste ano, possui claros problemas. Eu adianto em afirmar que gosto do filme, ainda mais pela bela reprodução histórica do período das missões na América do Sul.
Mas, indiscutivelmente, a força maior do filme está na trilha sonora de Morricone, que faz uma poderosa e sensível combinação de estilos musicais, dialogando o rigor clássico das formações orquestrais do estilo barroco (concerto grosso) com os instrumentos e vozes indígenas. Essa experiência proporciona à produção o caráter épico necessário à trama, ao mesmo tempo em que combina a tristeza lírica do Barroco (e, de certa forma, dos próprios Jesuítas, algozes e vítimas do processo histórico que acabaria por liquidá-los) e os cânticos indígenas, naturais e puros ante a opressão dos europeus.
Morricone consegue a fusão de duas civilizações tão distintas, que unidas no drama histórico através de sua música, produz a trilha sonora mais bela e lírica já composta para o cinema. Destaco algumas passagens. Na trilha “Oboé de Gabriel”, o compositor assume a narração da ação. O belo solo de oboé tocado pelo Jesuíta (Jeremy Irons), no início do filme para atrair os índios Guaranis, serve também para apresentar o personagem, acompanhando-o durante a trama, feita de forma elegante, o que deve também entrar na conta do diretor (Joffé).

Em outras passagens, como “Assim na terra como no céu”, que encerra a película, podemos apreciar puro concerto, com a fusão da música Sacra, sua arquitetura musical barroca, entremeados com atabaques e sopros indígenas. Ficamos ali, ao término do filme, observando os caracteres técnicos do filme, enquanto a composição desenvolve-se…
Nesta trilha singular, Morricone apresenta todo o seu grande e vasto conhecimento de composição e de como sua música é equilibrada, utilizando todos os recursos da orquestra. Compositores como o John Willians ou mesmo James Horner, importantes para a história da música no cinema, utilizam-se, em excesso diria, das cordas e dos metais graves, o que diz muito sobre os filmes (ou a maioria deles) que eles trabalharam: épicos e de ação…
Morricone, mesmo nas cenas de ação, adicionava suas madeiras, lindos solos de clarineta e oboé, que emolduram a cena e a própria experiência do espectador. Homem que carregou a tradição de Luigi Boccherini, Giovanni Pierluigi da Palestrina e Arcangelo Corelli, mas sem ignorar o som dos novos tempos (o saxofone por ele utilizado em “Os intocáveis” (1987), de Brian de Palma e “A lenda do Pianista do Mar” (1998), de Giuseppe Tornatore, por exemplo) tem a sua importância compreendida e celebrada por todos aqueles que amam o potencial artístico do sincretismo único entre o cinema e a música.
Fonte: texto originalmente publicado no site do O Beco do Cinema.
Link direto: https://obecodocinema.wordpress.com/2015/11/18/a-mais-bela-trilha-sonora-da-historia-do-cinema/
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