Olhar estrangeiro de Lúcia Murat e a representação do Brasil em telas estrangeiras

Cena do filme “Feitiço do rio” (1984), de Stanley Donen. Crédito: Dailymotion.

“Samba, Sugarloaf, jungle, piranha” 

Frase famosa pronunciada por Steve McQueen em “The Thomas Crowne Affair” (1968) na hora de avaliar as vantagens e desvantagens de fugir para o Brasil. Nota-se que o país reduz-se a quatro clichês (samba, Pão de Açúcar, floresta, piranha)

O documentário de Lúcia Murat, “Olhar estrangeiro”, é baseado em um livro do acadêmico Tunico Amâncio, “O Brasil dos gringos: imagens no cinema” (2000), um estudo fascinante que contém uma lista exaustiva de filmes feitos por diretores estrangeiros que filmaram no Brasil ou que incluem referências significativas ao Brasil. Enquanto o livro de Amâncio tenta uma ampla cobertura e fornece um exame de uma variedade de temas em relação a essa representação, o filme de Murat concentra-se na representação da sexualidade feminina (a tal “carne e osso” citada no filme pela própria diretora em voice-over) no sexo e nos erros factuais cometidos por cineastas estrangeiros.

O filme é composto por entrevistas com várias pessoas-chave envolvidas na produção de filmes no Brasil desde a década de 1960 até a década de 1990, incluindo sucessos de bilheteria como “Blame it on Rio” (O feitiço do Rio, de 1984), “L’Homme de Rio” (1964), com Jean-Paul Belmondo, e o blockbuster “Anaconda” (1997), bem como filmes lançados diretamente para TV ou DVD, como “Last stop wonderland” (1998) e “Lambada: The forbidden dance” (1990). Murat informa na narração que, no momento de fazer seu documentário, 220 filmes com enfoque no Brasil já tinham sido feitos fora do país, então, um documentário de longa duração sobre a representação do Brasil em telas estrangeiras é amplamente justificado.

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De fato, dado esse número de filmes, é surpreendente que existam tão poucas obras críticas, sejam filmes ou ensaios, que se envolvam substancialmente com esse assunto. Contudo, além do livro de Amâncio, é digno de menção aqui o filme de Sylvio Back, “Yndio do Brasil” (1995), uma exploração poética da (má) representação dos povos indígenas do Brasil nas mãos de cineastas estrangeiros e brasileiros (e a inclusão de estrangeiros e as tentativas nacionais de retratar os povos indígenas em tela revelam a noção de “estrangeiro” em relação a esses povos no Brasil).

Em um ensaio importante de Sergio Augusto, “Hollywood Looks to Brazil: From Carmen Miranda a Moonrake”, publicado pela primeira vez em 1982, está incluído “Brazilian Cinema” (1995). Bianca de Freire Medeiros explorou um tema similar em, por exemplo, “Hollywood Musicals and the Representation of Rio de Janeiro, 1933-1953” (2002).

Este presente artigo procura fazer uma análise do filme Olhar estrangeiro, considerando não só o sucesso de Murat em “mudar de posição” com cineastas estrangeiros, como ela afirma fazer na seção de abertura de seu documentário, mas também o que é omitido no filme, e o significado de tais omissões. Em seguida, procura continuar a discussão iniciada pelo texto de Amâncio e o filme de Murat, incorporando reflexões sobre as representações audiovisuais mais recentes do Brasil produzidas fora do país.

A maior parte do documentário de Murat é composta de clipes ilustrativos de um número seleto de filmes, juntamente com entrevistas cuidadosamente editadas com aqueles ligados aos filmes em questão. Ambos os comentários ocasionais de Murat e intertítulos fornecem detalhes de produção dos filmes, com curiosidades factuais (como o fato de que mais de 40 filmes envolvem criminosos que fogem para o Brasil). Murat também inclui imagens de entrevistas com membros do público estrangeiro em lugares não especificados (embora um desses lugares pareça ser uma praia no Rio, assim como, supomos, os lugares nos Estados Unidos e na Europa que Murat visita para fazer entrevistas).

O documentário mostra Murat montando um estande para realizar essas entrevistas públicas na praia: a forma e os materiais brilhantes do estande lembram forçosamente a instalação artística “Tropicália”, de 1967, de Hélio Oiticica, em si uma referência à excessiva exotização com a qual o Brasil está visualmente associado. E, inevitavelmente, alguns (mas, curiosamente, nem todos) dos membros do público que participam das entrevistas apresentam clichês quando descrevem o Brasil e o povo brasileiro, demonstrando até que ponto eles imitam os retratos fílmicos do Brasil em telas estrangeiras.

Enquanto Murat raramente intervém durante as entrevistas com os cineastas, ela interrompe a conversa e pede responsabilidade a seus entrevistados em três ocasiões, com um sentimento de frustração aparentemente incontrolável, para corrigir (em off) três noções erradas sobre o Brasil: que fazer topless é comum, ou mesmo permitido, que há macacos andando pela orla do Rio de Janeiro, e que a cidade de São Paulo tem praia. Outros erros recorrentes que são comentados no documentário incluem a justaposição geográfica da cidade do Rio de Janeiro e da floresta amazônica, casamentos em estilo vodu, e uso da língua espanhola, ou pronúncia errada de termos e nomes próprios em português.

Alguns dos entrevistados de Murat minimizam o significado dos erros, enquanto outros tentam explicá-los alegando que os cineastas têm licença para apresentar espaços de fantasia na tela. Nisso Murat faz a observação muito saliente de que o nível de fantasia usado nas representações do Rio não seria possível, digamos, em relação à cidade de Nova York. Nova York não pode ser representada de forma realista na tela como, por exemplo, tendo uma selva dentro de seus limites, porque o público sabe muito bem que nenhuma selva existe por lá.

É, portanto, a falta de conhecimento, ou talvez a falta de interesse histórico em olhar além dos clichês, de lugares como Rio de Janeiro ou Brasil em geral, que torna essa ideia de licença criativa tão problemática. Revendo o documentário em 2018, no contexto do movimento #metoo, e do grande número de casos de sexismo e abuso sexual em Hollywood revelados recentemente, é difícil não se ofender com o humor machista, desdenhoso e francamente despreocupado da maioria dos entrevistados. Para evitar a representação constante do Brasil como um lugar apenas sensual, e que seja levado a sério, Michael Caine sugere que as mulheres brasileiras deveriam parar de dançar e tornar-se mais feias.

Philippe Clair, diretor francês de comédias populares, faz comentários sobre adolescentes brasileiras de quinze anos com calças apertadas. E Gerard Lanzier, cineasta francês radicado no Brasil, diz sobre o próprio comportamento: “Sou responsável, mas não tenho a culpa”. Em outras palavras, o Rio de Janeiro e o Brasil, em geral, são lugares inerentemente pecadores que proporcionam aos visitantes e aos cineastas uma licença para se comportar mal. O modo padrão de reagir a essas reflexões no filme de cineastas e atores estrangeiros é, imagino, total desdém, pois suas palavras e descrições do Brasil os revela preconceituosos e/ou ignorantes.

Neste importante sentido, Murat, com sucesso, “muda de posição” e vira o jogo contra seus entrevistados. Em relação a essa ideia de se esquivar da responsabilidade citada por Gerard Lanzier, é interessante notar que o emblemático “Blame it on Rio” (1984), discutido extensamente no filme de Murat, foi um remake do filme francês “Un moment d’égarement” (1977 e refilmado em 2015), um filme rodado nas praias topless da Côte D’Azur. Aparentemente, no imaginário dos Estados Unidos, precisava-se encontrar um lugar “fora” das fronteiras dos Estados Unidos (e ao sul do Equador, onde Hollywood nos ensinou que não há pecado) para sinalizar o que a Côte D’Azur representava na versão francesa do filme (libertinagem, expressão sexual, contraste com o mundo do trabalho da metrópole).

O próprio título do filme em inglês, “Blame it on Rio” (literalmente, a culpa é do Rio), particularmente devido ao foco do filme nas relações intergeracionais (homens de meia-idade tendo affairs com adolescentes), reforça esse senso de licença para se comportar mal. No contexto do documentário de Murat, “Blame it on Rio” é, de longe, o filme mais portentoso em relação à promoção de mitos nocivos sobre o país e seu povo.

O impacto do filme sobre a imaginação internacional em relação ao Brasil pode ser visto no empréstimo do título para o que é considerado um dos episódios mais notórios da série de desenho animado “Os Simpsons”, “Blame it on Lisa” (2002) (literalmente, a culpa é da Lisa, e no Brasil o episódio teve o título de Feitiço da Lisa), tão notório que provocou uma carta de denúncia amplamente divulgada da parte do RioTur pela imagem supostamente negativa da cidade que retratou, com suas ruas infestadas de ratos, meninos de rua assaltando em todos os cantos, sequestros e aquilo que atormenta Murat: a presença de uma floresta tropical no meio do Rio de Janeiro e animais exóticos vagando pelos espaços da cidade.

O produtor James L Brooks pediu desculpas publicamente pelo episódio, embora isso não impedisse “Os Simpsons” de revisitar muitos dos clichês e estereótipos problemáticos em outro episódio de 2014 na altura da Copa do Mundo do Brasil. A omissão de qualquer referência a “Blame it on Lisa” no filme de Murat é reveladora, dado que o uso do humor irônico, cenas cômicas deliberadamente extremas e uma dose de crítica social típica de “Os Simpsons” problematizam a questão da representação e tornam mais difícil descartá-la como totalmente negativa ou injusta. 

Considere, por exemplo, a representação exótica do Brasil nos longas animados mais recentes “Rio” (2011) e “Rio 2” (2014). Em seu artigo sobre “Rio 2”, Lopes, Nogueira e Baptista (2017) citam Nogueira (2010), que argumenta: “esse gênero convive pacificamente com a irrealidade, pois está no campo do sonho, da fantasia, da fabulação e das abstrações. […] A animação pode suspender, manipular, subverter, ou desafiar as leis da física, as normas culturais e as premissas éticas, etc.” (NOGUEIRA, 2010, p. 59).

“Blame it on Rio” é um alvo muito mais fácil, digamos assim, do que “Blame it on Lisa”, em termos de discussão sobre a falsa representação da cultura brasileira – o episódio foi visto por mais de 11 milhões de americanos na época do seu lançamento nos Estados Unidos (BELLOS, 2002, tradução nossa). E, em relação às referências (relativamente escassas) ao sexo e à sensualidade, que, afinal, são o foco do filme de Murat, essas imagens talvez não sejam tão exageradas e longe da realidade como outros aspectos da cultura brasileira retratados no episódio de “Os Simpsons”. Não obstante, a força do sentimento no momento do lançamento do episódio “Blame it on Lisa” e seu potencial impacto sobre o turismo no Rio de Janeiro em particular, chega a ser insignificante quando o consideramos ao lado do ultraviolento filme de terror “Turistas” (2006), lançado após o documentário de Murat.

No filme, os turistas titulares são mochileiros americanos cujo feriado de sonho transforma-se em um pesadelo quando são enganados, drogados e assassinados. Mais uma carta rapidamente despachada, dessa vez pela Embratur para os produtores do filme, e não apenas como resultado do retrato do país no próprio filme, mas, mais especificamente, o falso site on-line turístico usado para promover o filme. Assim, existe uma consciência aguda no Brasil, tanto do Estado, quanto da própria indústria cultural, visto que a nação foi vítima de estereótipos negativos. Talvez seja necessário ter isso em mente ao avaliar obras acadêmicas e atos de governo que criticam como o Brasil é retratado na tela. 

Outra “omissão” no filme de Murat pode ser rastreada, em parte, ao texto acadêmico em que o documentário baseia-se. O título do livro de Amâncio, “O Brasil dos gringos”, é, imagina-se, deliberadamente brincalhão, mas o uso do termo gringo sugere que estamos limitando a um tipo de estereótipo semelhante, quando se trata de falar sobre outras culturas àqueles que são criticados no documentário. O termo gringo, como muitos termos culturalmente específicos, é sobrecarregado de sentidos. Enquanto ele engloba problematicamente todos os estrangeiros em conjunto, ele também costuma ser usado exclusivamente para se referir a europeus e americanos (brancos) que geralmente são vistos como forasteiros que se sentem ou agem de forma “superior” (e essa superioridade, muitas vezes, é expressada como tendo alguma vantagem econômica) em relação aos brasileiros.

Assim, o termo localiza os brasileiros de antemão em desvantagem quando comparados aos não brasileiros, em um lugar de inferioridade, aparentemente reforçando o clichê simplista do complexo de vira-lata brasileiro. Murat pode ter evitado o termo gringo em sua adaptação cinematográfica do livro de Amâncio, mas é interessante notar que o olhar estrangeiro que ela investiga em seu filme é quase exclusivamente representado por homens brancos e de meia-idade dos Estados Unidos, França e norte da Europa, como o ator britânico Michael Caine e os roteiristas norte- -americanos Larry Gelbert e Charlie Peters (Blame it on Rio); o diretor francês Philippe de Broca (L’Homme de Rio) e o diretor americano Zalman King (Wild orchid).

De certa forma, “Olhar estrangeiro” reforça a noção de que apenas algumas visões estrangeiras importam. Portanto, o que o documentário não captura, por exemplo, são obras de diretores latino-americanos que retratam o Brasil como uma terra de abundância, e os brasileiros como trabalhadores e empreendedores, como o filme uruguaio “Whisky” (2004), aclamado pela crítica. Da mesma forma, em um filme uruguaio posterior, o hit no circuito dos festivais “El baño del Papa” (O banheiro do Papa, de 2007), o Brasil é retratado como o vizinho economicamente mais forte e os brasileiros como salvadores ricos de uma pequena cidade que pretende ganhar dinheiro com uma iminente visita do Papa. E outro filme de festival e coprodução, “Cidade de plástico” (2008), cita São Paulo como um ótimo lugar para imigrantes chineses fazerem negócios, mesmo que esses negócios sejam ilegais em boa parte.

Não se menciona, por exemplo, o filme alemão “Stefanie in Rio” (1960), que, apesar do título, é rodado em parte na nova capital, Brasília. O Brasil é retratado positivamente como um espaço moderno voltado para o progresso, dentro do modo “país do futuro”. E vale a pena lembrar que os dois personagens principais do filme Blame it on Rio são, de fato, baseados inicialmente em São Paulo, mas de férias no Rio como resultado do excesso de trabalho na capital paulista. Vale a pena notar a diferença entre o Rio e São Paulo em termos de como os visitantes estrangeiros relacionam-se com as duas cidades: o turismo para São Paulo é quase exclusivamente de negócios.

O sucesso do cult “The girl from Rio” (também conhecido como Rio 70, de 1969) faz um excelente uso da arquitetura futurista do Museu de Arte Moderna do Rio e do Aeroporto Santos Dumont. As mulheres do filme podem ser sexualmente irresistíveis e perigosas, aderindo a um estereótipo da feminilidade brasileira, mas as mulheres amazonas ficcionais são transformadas no filme em um grupo exclusivo e forte de mulheres que ocupam um espaço estilizado, materialista e moderno dentro do Brasil. Provavelmente, nossa leitura do filme como gênero, exploração e ficção científica oferece outra maneira de apreciar as imagens na tela: o filme foi, afinal, dirigido pelo cineasta cult espanhol Jesús Franco.

Dentro do panteão de filmes estrangeiros que incomodam a crítica por sua representação errada do Brasil, é interessante notar que os filmes aclamados pela crítica e galardoados, muitas vezes, escapam da crítica. É o caso da coprodução franco-brasileira de 1959, “Orfeu negro”, baseada na peça “Orfeu da Conceição”, de Vinícius de Moraes, e dirigida pelo cineasta francês Marcel Camus. O filme ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes em 1959 e o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1960. Não há referência a “Orfeu negro” no documentário de Murat, apesar de um certo revisionismo por parte dos críticos em relação à representação altamente exótica do filme da cultura brasileira.

De acordo com Tiago Mata Machado (2001), nenhum outro filme estrangeiro reforçou tanto a imagem clichê do Brasil exótico quanto o de Camus. Orfeu negro é o clássico da “macumba para turista”. Uma ausência semelhante de críticas à representação do Brasil e de seu povo pode ser encontrada em relação a um filme mais recente de um diretor aclamado pela crítica: “La piel que habito” (A pele que habito, de 2011), de Pedro Almodóvar. No filme, Antonio Banderas interpreta Robert Ledgard, um cirurgião plástico moralmente problemático, que é espanhol e mora na Espanha, mas tem algum vínculo familiar mal definido com o Brasil.

Em relação à família à qual Ledgard é chefe e sua conexão brasileira, o diretor declarou no lançamento do filme na Espanha: “Não queria que pesasse sobre eles uma educação judaico-cristã. Espero que os brasileiros entendam bem, adoro o seu país” (CLAUDIO, 2011). Enquanto a conexão brasileira com Ledgard pode ser tênue e pouco clara, o Brasil está representado no filme em extrema caricatura com a aparência de Zeca, meio-irmão de Ledgard. Zeca, um traficante de drogas criado na pobreza das favelas do Brasil, um ladrão ultraviolento e estuprador sem aparentemente nenhuma bússola moral, é introduzido no filme, na altura do carnaval (o clichê-mor?), vestido inexplicavelmente com uma roupa de tigre.

Zeca é interpretado pelo ator espanhol Roberto Álamo, que não consegue pronunciar de forma convincente as frases portuguesas para marcar sua nacionalidade e proveniência. Com o trabalho de Almodóvar, é perigoso realizar leituras superficiais, pois estamos lidando com um autor que regularmente faz uso crítico de estereótipos. Afinal, se fizéssemos isso, provavelmente chegaríamos à conclusão de que a objetivação das mulheres era a força motriz de todos os seus filmes.

No entanto, no que se refere ao presente estudo, é necessário pelo menos reconhecer que quase não foi questionado, ou mesmo envolvido, o presente temático brasileiro potencialmente problemático em “La piel que habito”. É impressionante que as implicações por escolher uma conexão brasileira para aliviar o peso de uma educação judeu-cristã na família Ledgard não tenham sido fonte de discussão no Brasil ou em outros lugares. Tampouco o personagem Zeca.

A reação negativa que Almodóvar aguardava simplesmente nunca se materializou. Esse tipo de retrato profundamente perturbador do Brasil e dos brasileiros é do tipo que vemos tão frequentemente no período contemporâneo em relação aos filmes estrangeiros (e em relação às produções nacionais que são exportáveis) retratando, por exemplo, a violência das cidades do Brasil, um assunto não coberto pelo documentário de Murat, mas sem dúvida muito mais perigoso em termos da marcação negativa de uma nação (Consideremos o impacto de filmes nacionais que fizeram sucesso no exterior, como “Cidade de Deus” e “Tropa de elite”, sobre a compreensão do Brasil para uma geração mais nova).

Tais retratos parecem muito longe dos filmes de história de amor brasileiros de baixo impacto que compõem uma parte considerável da produção cinematográfica em que Murat se refere em seu filme. Quando se trata de histórias de amor, há uma maneira típica de retratar o Brasil. Para começar, as boas histórias de amor começam e terminam na cidade do Rio de Janeiro, cuja representação na tela em tais filmes mudou pouco desde os dias dos musicais tecnicolor de Hollywood, em estilo de “That night in Rio”. Consideremos, por exemplo, o filme britânico “Girl from Rio” (2001), um filme que não é comentado no documentário de Murat, talvez por ter sido lançado após a publicação do livro de Amâncio, e por ser desconhecido no Brasil.

No filme, o papel principal é interpretado por Hugh Laurie, que, naquele momento do lançamento do filme, já era um grande astro de comédia no Reino Unido (mas antes de seu sucesso internacional na série de TV dos Estados Unidos, “House”). Girl from Rio abre com o banqueiro Raymond, interpretado por Laurie, dando uma aula noturna de percussão latina (samba) em um centro comunitário local. Os britânicos rígidos não têm ritmo e parecem mais interessados em refrescos do que melhorar seu desempenho. Com sua vida pessoal e profissional em farrapos, Raymond rouba uma grande quantia de dinheiro do banco onde trabalha e vai para o Rio de Janeiro.

A ideia de começar de novo no Brasil com ganhos mal adquiridos é típica de tantos desses filmes: a antiga falta de tratados de extradição é um dispositivo de trama comum para enviar personagens para o Brasil e ficou ainda mais pertinente para o contexto britânico graças ao infame assaltante de trem pagador, Ronnie Biggs, a quem Laurie faz referência nos extras do DVD. De acordo com Vanessa Barbara (2015): “Talvez o primeiro filme que faça referência à atração peculiar que o Brasil detém para fugitivos internacionais foi ‘The lavender hill mob’, uma comédia britânica de 1951, protagonizada por Alec Guinness. Seu personagem rouba um milhão de libras em ouro do Banco da Inglaterra, derrete as barras em Torres Eiffel em miniatura e vem ‘direto para o Rio de Janeiro. Alegre, dinâmico, terra da felicidade e da facilidade social”.

Em “Girl from Rio”, Raymond adquire um companheiro local malandro (interpretado pelo ator espanhol Santiago Segura, que é mais conhecido por seu papel recorrente como o policial politicamente incorreto, Torrente, em telas espanholas). Esta parceria de atores talvez se explique pelo fato de o filme ser uma coprodução com a Espanha. Esses filmes envolvem inevitavelmente imagens do ator principal rígido soltando-se aos poucos no calor, no sol e no alto- -astral do Brasil em contraste com uma Grã-Bretanha chata e cinzenta. O ator principal de tais filmes acaba cedendo e começa espontaneamente a dançar (isso ocorre tanto na praia de Copacabana quanto na escola de samba do Salgueiro em “Girl from Rio”), e cai pelos encantos irresistíveis de uma lindíssima e rítmica mulher local.

A ideia de fugir do norte frio, cinzento e cheio de tédio para o calor do sul tropical e colorido fixou-se em termos audiovisuais na década de 1940, com a série de musicais tecnicolor muito influentes produzidos em Hollywood durante a era da Política da Boa Vizinhança. Tais filmes são citados por Ana López (1993, p. 68, grifo nosso) para ilustrar a ideia de Hollywood ser um etnógrafo, significando “pensar em Hollywood não como um simples reprodutor de culturas ou ideologias fixas e homogêneas, mas como produtor de alguns dos múltiplos discursos que comentam, afirmam e contestam as lutas socioideológicas de um determinado momento”.

López demonstra seu argumento concentrando-se em estrelas latinas em Hollywood, incluindo a brasileira Carmen Miranda, que apesar de sua importância para discussões sobre a imagem do Brasil e especialmente em relação ao exotismo, ao sexo e à sensualidade no cinema, recebe pouca atenção no filme de Murat. A presença de equipes cinematográficas estrangeiras em solo brasileiro cresceu, sem dúvida, com o aumento dos incentivos para rodar filmes no país e film commissions regionais e empresas de production services mais ativas e organizadas. Além de um grande número de comerciais de TV exibidos no Reino Unido, por exemplo, que são muitas vezes reconhecidos como filmados no Brasil apenas por aqueles que estão familiarizados com, por exemplo, os Arcos da Lapa no Rio ou o Minhocão em São Paulo, muitos filmes e anúncios de TV aproveitam os incentivos favoráveis e rodam seus filmes no Brasil, sem referenciar explicitamente o país.

Um exemplo recente é “The twilight saga: Breaking dawn part one” (2011), que foi filmado em torno de Paraty. Alguns podem considerar este aumento na busca de production services como um passo positivo em termos da viabilidade do mercado de produção cinematográfica no Brasil e comparativamente inofensivo em termos de questões de representação. No entanto, nem todos estão felizes com esse desenvolvimento. O grupo de pressão Rio: Mais Cinema, Menos Cenário, formado por produtores de filmes e acadêmicos, questionou o que considera a abordagem permissiva da Rio Film Comission (RFC) para o uso de locais brasileiros.

O Rio: Mais Cinema, Menos Cenário procura chamar a atenção para o número de filmes (estrangeiros e locais) que faz uso dos production services da cidade sem se envolver de forma significativa ou autêntica com os problemas sociais e políticos que afetam o Rio. O contexto para algumas das frustrações expressas por esse grupo, que foi lançado no Festival de Cinema do Rio em 2014, é o sentido de que o Brasil tem sido sistematicamente mal representado em telas estrangeiras.

Considerações Finais

É importante reconhecer, ao descrever as “omissões” do filme “Olhar estrangeiro”, que estamos falando de uma produção de baixo orçamento, e que a diretora Lúcia Murat fez muito bem em acessar tantos cineastas e atores-chave e em incluir tantos clipes de filmes relevantes em seu documentário. O filme de Murat e o livro de Amâncio demonstram que, apesar dos exemplos contrários citados neste artigo e com umas poucas exceções à regra destacadas no filme de Murat, os cineastas estrangeiros que descem no Brasil têm, ao longo dos anos, mostrado pouca consideração pela verdade e pelas consequências de representações errôneas do país, da sua cultura e do seu povo.

Consequentemente, faremos bem em lembrar, ao debater Soft Power, diplomacia cultural e nation branding, que as questões e tensões enfrentadas pelas nações emergentes, como o Brasil, em relação à sua imagem no exterior, e os fatores motivadores para querer promover, contestar ou aumentar a presença dessa imagem no exterior não serão os mesmos que enfrentam, digamos, o Reino Unido ou a Espanha. Por isso, o gerenciamento da reputação é uma grande parte da história do Soft Power no Brasil, onde talvez não seja no Reino Unido, por exemplo.

O Brasil, sem dúvida, tem sido vítima de estereótipos negativos em telas estrangeiras, mas a história é muito mais complexa do que o “Olhar estrangeiro” sugere, com seu deliberado foco no sexo e na sensualidade. A cultura das drogas e a violência associada são, sem dúvida, um problema maior para a imagem internacional do Brasil (daí o clamor sobre o filme “Turistas”, em 2006). O filme também não reconhece em nenhum momento a contribuição dos órgãos do Estado brasileiro que interagem com as comunidades internacionais (como a Embratur) para sustentar esse mito prejudicial de mulheres sexy e disponíveis, como sendo a principal atração do Brasil.

A maior parte do foco do filme de Murat é o Rio de Janeiro, mas o subtítulo do documentário é “uma personagem chamada Brasil”, acompanhada por uma imagem de uma mulher indígena sexualizada. Isso remete aos tempos de primeiros contatos e, inevitavelmente, o primeiro foundational text (texto fundamental nacional) do Brasil: a carta de Pero Vaz de Caminha para a Corte portuguesa enviada em 1500, o que demonstra que, desde que os gringos chegaram ao Brasil, o foco da atenção tem sido sexo e sexualidade, particularmente em relação às mulheres. A medida que tais mitos foram apropriados pela cultura brasileira ao longo dos séculos, e particularmente em relação a alguns grupos regionais e raciais mais do que outros, complica o binário, talvez muito simplista, de “estrangeiros” versus “brasileiros” em tais discussões.

Fonte: Texto originalmente publicado na Revista Trama.

Stephanie Dennison
Professora titular de Estudos Brasileiros e membro-fundadora do Centre for World Cinemas and Digital Cultures na University of Leeds, Inglaterra. Autora, com Lisa Shaw, de dois livros sobre cinema brasileiro e organizadora do livro Word Cinema: as novas cartografias do cinema mundial. Diretora da rede de pesquisa Soft Power, Cinema and the BRICS

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OLHAR ESTRANGEIRO. Direção: Lúcia Murat. Produção: Luís Vidal e Paola Abou-Jaoude. Brasil: Limite, Okeanos e Taiga Filmes, 2006. 1 DVD (70 min).

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por Anders Noren

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