Turquia: o retorno de uma velha potência

Crédito: Kayhan Ozer/Reuters.

Os teatros de disputas geopolíticas existentes hoje no Oriente Médio, onde a Síria e Líbia são os maiores expoentes, evidenciam o reaparecimento da Turquia no cenário global como importante potência política e militar. Embora o país nunca tenha deixado de ser um importante ator internacional, ainda que de segunda categoria, em razão de seus recursos militares e posicionamento estratégico entre a Europa, África e Oriente Médio.

No entanto, há um século atrás, nenhum nacionalista turco mais otimista talvez viesse a imaginar a posição de seu país em mais de cem anos. O Estado turco não apenas era reconhecido no mundo como O Doente– um termo usado pelo Czar Nicolai I da Rússia para descrever o Império Otomano em meados do século XIX-, mas também estava virtualmente ocupado por tropas britânicas e francesas, e dividindo-se em diversas áreas independentes que escolhiam seu destino em meio a incapacidade do então sultanato otomano agonizante de estabelecer a autoridade sobre as suas províncias imperiais no Oriente Médio. Um iminente colapso já havia sido inclusive acordado anteriormente em tratados secretos entre os países aliados da Tríplice Entente– Impérios Russo e Britânico, e a Terceira República Francesa.

O curso da história apenas começou a mudar quando a Grande Assembleia Nacional da Turquia foi estabelecida em abril de 1920, liderada pelo já famoso ’’Jovem Oficial Turco’’ Mustafá Kemal– posteriormente apelidado de Atatürk, que significa pai da Turquia em turco-, e posteriormente o sultanato foi abolido em 1923, bem como britânicos e franceses expulsos de Constantinopla, que agora se chamava Istambul. Kemal foi responsável pelas principais reformas políticas e sociais no país durante as décadas de 1920 e 1930, que consolidaram o sistema republicano. Enquanto presidente do país, garantiu a laicidade do Estado, e buscou uma aproximação- já existente desde meados do século XVIII- entre a Turquia e o ocidente. Não por acaso ficou conhecido como ’’Pai da Turquia Republicana’’.

Mustafa Kemal Atatürk. Crédito: Wikipedia.

Os novos rumos da política turca eram inclusive mais pacifistas e neutras que os existentes no período otomano. Kemal manteve durante as décadas de 1920 e 1930 relações amistosas com a União Soviética, algo que foi inédito na história de conflitos entre russos e turcos pelo Cáucaso. Embora tenha tido uma certa aproximação com o Eixo na Segunda Guerra Mundial, manteve uma neutralidade em relação às ações alemãs nos Balcãs e Oriente Médio, assim como em relação aos soviéticos no Cáucaso que garantiu a eles e aos britânicos, segurança para vencer as tropas do eixo no auge da guerra.

Em 1950, o kemalismo foi derrotado pela primeira vez desde que a república fora instaurada, e o país não apenas abandonou a posição neutra assumida no pós-primeira guerra, entrando na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em 1952, como usou esta posição para ganhar vantagens em disputas contra países regiões fronteiriças. A escolha de integrar-se completamente ao ocidente, decisão que nenhum governo turco anteriormente havia tomado, trouxe consequências para o país, onde a desconfiança dos vizinhos- como a URSS durante a Crise dos Mísseis de 1962-, e setores militares internos, colocam em cheque a estabilidade política do país. Até 1999, a Turquia passaria por quatro golpes de Estado e seria tutelada politicamente pelos militares.

A estabilidade política a partir de 2002, concomitante a emergência do Partido Justiça e Desenvolvimento, presidido pelo atual presidente Recep Taiyp Erdogan, representou o fim de décadas de uma guerra aberta entre setores turcos secularistas nas forças armadas, religiosos otomanistas também presentes entre os militares, e civis religiosos radicais- como os membros da organização pan-islâmica Irmandade Muçulmana. O acordo selado entre as forças propiciou ao país iniciar um novo período histórico de estabilidade, onde o país sustentou seus índices econômicos saudáveis em um século, com um salto do PIB per capita de 3,1 para 10,8 bilhões de dólares entre 2001 e 2008. Isso lhe valeu um assento permanente no Grupo dos 20 (G20) junto com a Arábia Saudita, representando o Oriente Médio.

Ao mesmo tempo, o neo-otomanismo entre os militares ganhou espaço graças à importância que a OTAN dava-lhe não somente no Oriente Médio, mas sobretudo no Cáucaso em relação à União Soviética e ao Irã, onde os Pahlevi mantinham uma posição dúbia em relação ao ocidente até 1978. A invasão ao Iraque em 2003 contou com apoio da Turquia inclusive, que chegou a enviar tropas ao país em 2007. No entanto, isso não significa que Ancara tivesse pleno acordo com os Estados Unidos, Grã Bretanha, França e Alemanha. Em 1974, os olhos destes países são fechados ante a invasão grega ao Chipre, recentemente independente da Turquia, que quase levou a uma guerra no mediterrâneo oriental. Outro episódio foi a entrada do próprio Chipre na União Europeia à revelia da posição turca, que em tese seria uma futura membra da organização, contudo essa promessa jamais se realizou.

Esses ressentimentos, alimentados década a década, chegaram a seu ápice em 2015, quando no ponto crítico da crise migratória na Europa, Bruxelas promete ajuda econômica e um futuro lugar na União Europeia, em troca de que os turcos segurassem os imigrantes árabes e afegãos nas fronteiras. Era um acordo vantajoso economicamente, mas péssimo politicamente, pois reforçaria a visão do país de um Estado autoritário ao fazer o ’’trabalho sujo’’ de conter a imensa corrente de imigrantes. Ahmet Davutoglu, primeiro-ministro no período, responsável pela negociação do referido acordo, tinha sérias divergências com Erdogan que não se alinhava completamente com as posições do ocidente, em especial em relação aos conflitos com a Rússia, com quem tinha disputas na Síria, esta última então no auge de uma Guerra Civil que começava a se alastrar para território turco.

A posterior saída de Davutoglu do governo, o retrocesso no acordo com a União Europeia e as suspeitas de um golpe em articulação no alto comando das forças armadas, levou o país a fazer um giro político naquele momento, pois forças radicais muçulmanas também estavam transformando o cenário do país em uma extensão da guerra na Síria. O golpe de Estado fracassado contra Erdogan em julho de 2016- onde tudo indica que existiu um apoio dos Estados Unidos hoje-, foi uma importante vitória política para o governo- não apenas porque sobreviveu, mas porque reforçou sua retórica que garantiu uma mudança da trajetória histórica do país. O triunfo de Erdogan sobre o golpe garantiu ao mesmo a possibilidade de vencer o plebiscito de reforma constitucional de 2017 que lhe deu amplos poderes para determinar os rumos do país à semelhança de Atatürk há um século.

O kemalismo oficialista das forças armadas foi com sucesso substituído por um ’’erdoganismo’’ de raizes neo-otomanistas. Setores religiosos até então marginalizados passam a ganhar espaço maior na sociedade, e o país passa a ter mais ingerência em outras regiões no Oriente Médio, como a Líbia com apoio destes setores, hoje desacreditados com a OTAN. Mas não é somente isso que ocorre pelo lado de Ancara. Uma política soberana mais firme é estabelecida no país com o fechamento da principal base estadunidense no mediterrâneo oriental em Incirlik, na região sul de Adana. Assim como, na contramão dos demais Estados membros da aliança atlântica, Erdogan ensaia uma aproximação com seus adversários históricos, russos e persas para resolver a questão síria.

Não apenas regionalmente, mas internacionalmente a Turquia sustenta hoje diferentes posições desde então, onde a relação com a União Europeia é uma delas. Em fevereiro de 2019, a organização anunciou que suspenderia a entrada turca em razão de questões relacionadas a violações de direitos humanos. O curioso é que o acordo firmado envolvendo os imigrantes em 2016 mantinha-se e o país não demonstrou uma vigorosa reação. Pelo contrário, sua fronteira de entrada- considerada uma ’’torneira’’-, é usada politicamente para receber apoio em sua política regional relacionada à Síria e à Líbia.

A reinvindicação da hegemonia turca sobre o mediterrâneo oriental, enquanto sua zona de influência, perdida há um século atrás para o ocidente em um primeiro momento, e depois para o pan-arabismo, hoje é novamente disputada não apenas mediante à estabilidade do país nas últimas décadas, mas sobretudo como derivação do caos causado pela intensificação da Guerra Híbrida na região desde 2010, responsável pela queda de diversos governos nacionalistas árabes. Essa reinvindicação tem superado estes termos e tornado-se mais ampla, abrangendo o mundo islâmico como um todo, onde o governo Erdogan apoia abertamente a Irmandade Muçulmana. Esta organização chegou a presidir o Egito com Mohamed Morsi– derrubado por um golpe militar em 2013-, e possui hoje membros no Governo do Acordo Nacional na Líbia (GNA)– cuja autoridade não passa da região cosmopolita Líbia de Tripoli.

A última destas tentativas de estabelecer uma direção sobre os movimentos radicais islâmicos no Oriente Médio foi a mudança do status do atual museu público que já foi Igreja, Basílica e Mesquita de Hagia Sofia. Esta medida polêmica, que deseja reconverter o edifício em um centro religioso muçulmano, recebeu protestos de diversas organizações políticas, religiosas e culturais internacionais dos mais amplos espectros. Contudo, Erdogan não mira seus esforços de rivalidade hoje com Roma, ou Moscou (Sedes das Igrejas Católica e Ortodoxa), mas com a própria Meca (Sede da parte sunita do mundo muçulmano), onde reivindica de volta uma liderança que possuiu no passado.

Esta condição traz mais problemáticas para própria região que não vamos aprofundar aqui, mas pelo menos citar. A Turquia e a Dinastia Saud são adversários históricos, inclusive porque os segundos foram usados- e ainda o são-, enquanto peões da política anglo-estadunidense na região. Um outro problema que permanece em suspenso no momento- causado pelos desdobramentos da Guerra Civil Síria e a questão do povo curdo- é o conflito de interesses entre iranianos e turcos, onde nunca é demais dizer que os turcos foram adversários históricos do milenar Estado persa também, chegando a travar algumas guerras nos últimos séculos.

No entanto, não apenas na Europa, na América Latina, a Turquia tem uma posição política firme em relação á Venezuela, onde defende a soberania do país frente as ingerências estadunidenses capitaneadas por Juan Guaido. As relações sino-turcas também seguem em sentido inverso às orientações do Estados Unidos. Com os chineses, a Turquia faz com que os projetos conjuntos relacionados à Nova Rota da Seda continuem a andar. Aliás, esta posição encontra âncora na própria política de Donald Trump em relação à OTAN, onde os turcos já são persona non grata, mas traz ao mesmo tempo uma relevante discussão para o futuro próximo. Qual será o papel turco na OTAN?

Esta é uma pergunta que está em aberto a partir de posições do próprio governo, que apesar de criticar a aliança e manter posições beligerantes com os outros membros como França e Grécia- onde a Líbia é um exemplo-, não manifestou desejos abertos de sair de uma aliança que dota seu setor de defesa militar de equipamentos modernos. Este giro do governo turco em direção ao sul-global não pode ser considerado como algo unilateral por parte do governo de Recep Taiyp Erdogan.

O apoio da sociedade turca a ele é inegável, e mais do que existente, é massivo, pois com exceção de uma minoria pró-ocidente no país, boa parte da população e dos setores dirigentes da sociedade não têm mais esperança na integração ao ocidente, como forma de promover a resolução dos seus problemas. Em certo sentido, mas com todas as mais diferenças e particularidades possíveis, o dilema turco de hoje tem aspectos semelhantes ao da Rússia na década de 2000, mediante ao fracasso de sua entrada na União Europeia e na OTAN. Contudo, os turcos apresentam muito mais ressentimentos com os ocidentais que os russos, e desafia os membros da aliança não apenas com gestos simbólicos como as chantagens com a União Europeia, mas com ações.

O fechamento da base militar de Incirlik e a participação direta na Guerra Civil Líbia, onde ’’humilhou publicamente’’ os governos grego e francês ao demonstrar que eles enviavam ajuda às forças do Exército Nacional Líbio, liderado pelo general Khalifa Haftar– que curiosamente, não apenas é rejeitado pela OTAN, como também pela própria Organização das Nações Unidas (ONU), são exemplos concretos. Embora estas investidas não tenham chegado a ser uma ruptura aberta, onde claramente se observa na questão Síria – a Turquia tem apoio público da OTAN na ocupação do norte do país, bem como continua a considerar o próprio presidente Bashar Al-Assad e o baathismo como grandes inimigos-, os turcos não parecem querer uma saída imediata da OTAN, ou desistir por completo de integrar União Europeia, preferindo a via de uma relação tensa, mas que se mantém com estes atores. Erdogan também mantém relações conflituosas com o governo do Egito, e permite as passagens de embarcações militares dos Estados Unidos pelo Estreito de Bósforo, que fazem a Rússia desconfiar de suas atitudes.

Este jogo duplo, cuja orientação geral é um não-alinhamento a um bloco euroasiático, mas de manter conexões com o sul-global, e baseado no famigerado morde e ’’assopra com o ocidente’’ eleva a Turquia a um papel de ator independente. Isso, porém tem um risco, onde tendo como alicerce basilar de sua política o Oriente Médio, em caso de fracasso, um isolamento acompanhado de nova submissão seria possível. No entanto, em um momento de necessidade de reordenamento internacional como o atual, onde o mundo de um grupo pequeno de potências no globo será substituído por blocos e países importantes regionais- Estados Unidos, Brasil, Grã Bretanha, União Europeia, África do Sul, Rússia e algumas ex-repúblicas soviéticas, Irã, Índia, China, sudeste asiático, Austrália-, possuir preponderância regional no Oriente Médio será fundamental para Ancara.

A consecução deste histórico objetivo turco é a condicionante de seu peso em um assento na futura mesa de concertação citada. Os desafios existentes para isso, alguns dos quais já citados, contudo, demonstram uma importante fraqueza do país. O permanente conflito com os Estados vizinhos, a partir das relações tradicionalmente herdadas do período otomano, apenas diminuiu com o kemalismo, mas ressurgiu com sua entrada na OTAN. É impossível para a Turquia conseguir com sucesso harmonizar seu papel de potência regionalmente relevante com sua ideologia neo-otomanista, que acentua conflitos explosivos, como é o caso de armênios e azeris, em torno da região do Nagorno-Karabakh, e a própria questão Líbia. O próprio Império Otomano colapsou no passado em consequência de tais atitudes.

Vencido ou não este desafio, a Turquia já demonstra hoje ter retomado o seu papel de protagonismo no mediterrâneo oriental e um dos atores mais importantes no Oriente Médio. Questões que consagram no momento a posição de retorno dessa potência regional à condição de um importante ator global.

Fonte: texto originalmente publicado no site do Cotidiano.
Link direto: http://bit.ly/cotidiano-turquia-retorno-velhapotencia

Bibliografia:

AL JAZEERA. Erdogan demands ’’concrete support’’ from EU, NATO over Syria. 2020. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2020/03/erdogan-demands-concrete-support-eu-nato-syria-200309183710499.html.

ESCOBAR, Pepe. Clash of civilizations, revisited. In: Asia Times. 2020. Disponível em: https://asiatimes.com/2020/07/clash-of-civilizations-revisited/?fbclid=IwAR0JF94WnZhIvLV_chTYRSl1sJH9fC0TOhpBkjmbTpJjxXUo356RfL6RQkk

MELNIKOVA, Ksenia. Bolshe vlasti dlya Erdogana- Chto nuzhno znat o referendume po izmeniyo turetzkoy konstitutzii. In: Lenta.ru. 2017. Disponível em: https://lenta.ru/articles/2017/04/15/referendum_in_turkey/

ORTEGA, André. Marcha Turca: A sinfonia de Erdogan. In: Revista Opera. 2020. Disponível em: https://revistaopera.com.br/2020/05/02/marcha-turca-a-sinfonia-de-erdogan/

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por Anders Noren

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