
Dois anos depois de apresentar o seu “Mata Negra” (2018), o diretor Rodrigo Aragão lança o seu projeto fílmico mais ambicioso: “O Cemitério das Almas Perdidas” (2020), filme pensado pelo seu realizador desde o início da sua carreira e que marca um novo ciclo criativo para o seu cinema. Mas não é só isso. O “Cemitério…” representa um marco para o cinema fantástico brasileiro, seja pela sua escala ou mesmo, e sobretudo, pela sua ambição estética.
Eu gostaria de avançar no meu hiperbolismo: Rodrigo Aragão fez um filme que todos nós, brasileiros e amantes desse gênero, sonhávamos desde sempre. Um filme brasileiríssimo no seu universo fantástico e que remete à nossa história, nossos sotaques e cores. Eu tive a oportunidade de assistir a pré-estreia da obra na abertura do 10º Cinefantasy, no Memorial da América Latina, dia 6 de setembro, como convidado do Instituto de cinema de São Paulo.
Desde a fotografia de Alexandre Barcelos, que dá luz, sombras e forma ao universo concebido por Aragão (ainda que o filme seja, em alguns momentos, muito escuro na sua paleta de cores, ressaltando sua necessidade ser visto no cinema, com toda a tecnologia disponível para ressaltar os seus aspectos técnicos) até a edição de Thiago Amaral, que organiza e dá ritmo ao filme, com as suas idas e vindas por épocas tão distintas, construindo uma elaborada caricatura da nossa história, onde os brancos europeus atravessam o oceano trazendo, além da sua volúpia exploratória, o próprio mal, na forma do “Livro Negro de São Cipriano”. Destaco também a trilha sonora composta por João MacDowell, que mesmo excessivamente presente na narrativa, compõe com sucesso a ambientação proposta pelo longa.

O primeiro ato do filme apresenta a vinda de um jesuíta desgarrado para o Brasil, em pleno período colonial, carregando consigo o tal “Livro Negro”, escrito sob a influência do próprio diabo e abrigando as feitiçarias, praguejamentos e maldições infernais. O roteiro (do próprio Aragão) aponta o dedo para a violência explícita da “aventura colonial” europeia na américa. Sujos, maltrapilhos e muitas vezes fugitivos de crimes cometidos no passado, o homem branco traz, literalmente, o mal para essas terras.
Conforme avança o filme, somos deparados com o Brasil de Aragão, meticulosamente – e pacientemente – criado desde os seus primeiros filmes: uma sociedade pré-industrial, não urbanizada, envolta em natureza misteriosa e suas criaturas, além do fanatismo religioso e violência social, elementos sempre presentes em suas histórias. A história é tematicamente simples: uma trupe circense (liderada por Fred – Francisco Gaspar) faz uma parada numa cidadezinha misteriosa e envolta em mistérios.
Após experimentar o repúdio das lideranças religiosas do local, são agredidos e sequestrados, encaminhados para um cemitério isolado nas aforas da cidade, que circunda um antigo mosteiro dos tempos coloniais. Sobre esse eixo central a história desenvolve-se, com as já citadas idas e vindas ao passado daquele local. O roteiro evolui e vai construindo as pontes entre épocas distintas e seus personagens.
Ainda que o segundo ato possa perder algum ritmo, pelas sucessivas idas e vindas que o enredo costura para entendermos a trajetória dos personagens, em especial do grupo que cerca Cipriano (Renato Chocair, numa ótima – e soturna – interpretação), o filme conduz bem a história até a explosão de sons e imagens dos últimos 30 minutos. E é quando Rodrigo Aragão empenha seu talento na confecção e emprego dos efeitos práticos e digitais – quase todos eles bem eficientes – para desenvolver aquela trama, ainda que pontas sejam deixadas propositadamente abertas para o progresso – e expansão – daquela história.
Ficamos com a impressão que o diretor vai montando um intrincado – e muito ambicioso – universo fílmico, onde suas referências e personagens vão intersecionando outros filmes e projetando o seu épico fantástico para um patamar nunca alcançado pelo nosso cinema. Pleno de referências (o longa abre com a tocante dedicatória ao mestre Mojica Marins), em especial do cinema do horror dos anos 80 e auto-referências do próprio universo de Aragão (como o próprio Livro negro de São Cipriano), o filme oferece uma riqueza visual inventiva e esteticamente bela.
O Infortúnio da pandemia, impedindo o lançamento do filme pelo circuito de exibição, é mais uma barreira a ser vencida por Aragão e sua família criativa – além da equipe técnica, atores como Carol Aragão, Diego Garcias e Francisco Gaspar, dentre outros, estão sempre presentes em seus projetos. É certo que o filme tem viabilidade por outros mercados e canais de exibição.
O filme de Aragão é mais um exemplo do prodigioso momento do cinema fantástico brasileiro. Realizadores como Rodrigo Aragão, Dennison Ramalho, Marco Dutra, Juliana Rojas, Marcos DeBrito e tantos outros, apontam para a consolidação de um “horror brasileiro” de qualidade internacional, que se utiliza das nossas assimetrias, gostos, estilos, cores e da nossa história, violenta e fantástica, para produzir aqui, no Brasil das incertezas de hoje, um cinema muito original e necessário. Viva o cinema Brasileiro!!!
Fonte: texto originalmente publicado no site do O Beco do Cinema
Link direto: https://obecodocinema.wordpress.com/2020/11/01/o-cemiterio-das-almas-pedidas-2020-diretor-rodrigo-aragao/
Título: O Cemitério das Almas Perdidas
País: Brasil
Direção: Rodrigo Aragão
Elenco: Carol Aragão, Diego Garcias e Francisco Gaspar
Duração: 94 minutos
Lançamento: 6 de Setembro de 2020
Idioma: português
Legenda: inglês/espanhol
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