A centralidade da China nos BRICS e sua relação bilateral com os demais membros

Crédito: VCG/CGTN.

O agrupamento dos BRICS, além de favorecer a concertação política e econômica entre seus membros, funciona – para a China – como uma das plataformas para a expansão global chinesa de maneira assertiva, mas menos impactante. Funciona, portanto, como instrumento catalizador de ganhos em legitimidade, poder, influência e, sobretudo, respeitabilidade, além de promover uma melhor inserção entre demais países em desenvolvimento. As iniciativas da Cinturão e Rota, do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), e dos arranjos inter-regionais (China-Países Árabes, China-África, China-CELAC, Fórum de Macau) também são plataformas com tal intento.

Os chineses são conhecidos não só por sua cultura e tradição milenares, mas por serem grandes estrategistas, por sua visão de longo prazo e pragmatismo, sobretudo pelo apuro com a imagem e reputação. Apesar de já ser a segunda maior economia do mundo – superando os EUA em vários setores, inclusive tecnológico – à China não interessa confrontar a hegemonia estadunidense no cenário internacional, e sim manter sua inserção autônoma, status de país em desenvolvimento e tratamento diferenciado na Organização Mundial do Comércio (OMC), sobretudo, para que sua penetração entre os países mais pobres e de menor desenvolvimento dê-se de forma mais livre e fluída e, assim, com menor resistência e alarmismo.

O presidente chinês Xi Jinping fala em um diálogo de divulgação que agrupa líderes do BRICS, do “BRICS Plus” e de países africanos na 10ª cúpula do BRICS em Joanesburgo, África do Sul, 27 de julho de 2018. Crédito: Xinhua Photo.

Por que o Bloco? O que ele representa?

A despeito da iniciativa russa de sediar a primeira BRICS Summit em junho de 2009, destaca-se  a centralidade da China como a grande “força motriz por trás das tentativas de institucionalizar e formalizar o grupo” (Financial Times apud GGN 2011). A atuação em bloco  decorre de uma clara mudança de paradigma da inserção chinesa, quando esta assume escala global; mas vem principalmente dos esforços da China em conferir maior grau de institucionalidade ao BRICS, um agrupamento com alto potencial de representatividade nos cinco continentes, inclusive na África, região de grandes interesses geopolíticos e rápida expansão chinesa. Assim, por meio do bloco, a China ganha visibilidade e consegue reverberar sua agenda global em evolução, sem a presença interferente dos EUA.

Logo, há boas razões para uma “China globalizada” instrumentalizar os BRICS

O professor Li Xing, da International Relations Aalborg University, reforça a força simbólica por trás do agrupamento, ao fazer uma evolução histórica dos BRICS. Na primeira etapa (2001-2007), o “BRIC” (ainda sem a África do Sul) representava tão somente uma categoria de investimento inventada pela Goldman Sachs; na segunda (2008-2014),com a inclusão da África do Sul, os BRICS tonaram-se uma plataforma política, mas ainda informal; e na terceira fase (a partir de 2015) há uma transição, marcada pelos processos de institucionalização e lançamento do Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS – NBD.

O que muda a partir de 2015?

Para o indiano Pankaj Mishra, autor de “From the Ruins of Empire: The Revolt Against the
West and the Remaking of Asia” (Das ruínas do império: a revolta contra o Ocidente e a reconstrução da Ásia – tradução livre), a China agora não só deseja ser vista como via alternativa à “longa ascendência econômica e geopolítica do Ocidente”, mas deseja criar o próprio sistema internacional por meio do bloco. O autor refere-se então à “respeitabilidade outorgada pelos fóruns internacionais” como parte estratégica dos BRICS para a “autoafirmação global” de seus membros (Bloomberg 2014).

Afinal, estes ascenderam como potências emergentes, sobretudo China e Índia, após a crise financeira de 2008, conquistando maior espaço, poder de fala e influência no cenário internacional. No entanto, a atuação desses países ainda está circunscrita não só aos ditames, mas também à realidade organizacional do mundo ocidental (travada por instituições anacrônicas que necessitam de ajustes e atualizações, principalmente no período pós-Guerra Fria). As reformas, como a do Sistema Financeiro Internacional que, contudo, não saíram do papel, estão restritas ainda ao campo das ideias e promessas de um futuro melhor.

Inicia-se, por conseguinte, todo um debate acerca de hegemonia/contra hegemonia e insatisfação com a ordem mundial existente, levantado pelos emergentes. Tome-se como exemplo os processos decisórios. A China está para superar os EUA e vir a ser a maior economia do mundo (com base no poder de compra doméstico, impulsionado pelo consumismo crescente de uma classe média urbana em ascensão). Mas a despeito dos países do BRICS representarem mais de 40% da população mundial – só a China responde por 20% – e corresponderem a um quarto da economia global (Bloomberg 2014), tanto os critérios, quanto as tomadas de decisão para o financiamento e demais políticas dos bancos de desenvolvimento continuam sendo ditadas por estadunidenses e europeus.

A iniciativa de lançar um Banco dos BRICS, contudo, não foi a de contrapor, e sim servir de promessa alternativa aos bancos de desenvolvimento tradicionais, sobretudo por meio de acesso a crédito em condições mais vantajosas, prazos mais longos e juros mais baixos (BPC 2019). Isso porque desde a Conferência de Bretton Woods, em 1944, ao serem lançadas as bases do sistema financeiro internacional com a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, o controle dos fluxos globais esteve integralmente nas mãos dos EUA e seus aliados (seja dos termos dos empréstimos ao socorro aos balanços de pagamentos).

Paradoxos e desigualdades entre os BRICS

Na prática, verificam-se assimetrias e desníveis de poder internos que limitam a atuação e expansão do BRICS como bloco, exemplificados por realidades, contextos domésticos e índices socioeconômicos distintos, tais como coeficiente de Gini e renda familiar. Destacam-se, ainda, insatisfações e antagonismos intra-bloco, dependendo do interesse estratégico dos países integrantes, exemplificados principalmente por disputas territoriais. É o que Pankaj Mishra chama de aparente “inabilidade do BRICS de oferecer uma alternativa política e moral à hegemonia ocidental”. Para Mishra, nem a China foge a tal percepção, mesmo sendo “o país que mais tem condições para uma expansão econômica sustentada”. Os chineses ainda encontram grandes desafios, como de ajustar o foco e fazer a transição de uma economia de investimentos para uma economia de consumo (CEBC 2019).

Assim, é possível ver semelhanças entre as atuais condições econômicas da China com o Japão do final da década de 1980, já que há um investimento excessivo na economia: enquanto que o Japão investia em torno de 35% de seu PIB, a China hoje investe próximo de 50% para dinamizar as transformações necessárias para o crescimento nacional (CEBC 2019). O professor Li Xing é hábil ao elencar os paradoxos dos BRICS, fazendo com que este mais pareça uma “China com parceiros” do que um grupo com poderes igualitários (BPC 2019). Xing, no entanto, refuta o argumento de que o bloco e a China representam uma hegemonia alternativa às normas e valores universais, já que estariam conduzindo o mundo – e o próprio BRICS – ao que chama de “hegemonia interdependente”, funcionando como uma espécie de simbiose onde todos, de algum modo, retroalimentam-se dos interesses e liderança da China.

Assim, segundo ele: a) a despeito da promessa de inovação na governança global, o sucesso tanto dos BRICS, quanto da China foi alcançado graças à inserção na ordem mundial capitalista existente; b) percebe-se, ainda, que os BRICS e a China têm relações econômicas mais profundas com as atuais potências mundiais do que com as demais; c) ao mesmo tempo que o sucesso dos BRICS e da China desafia muitos dos “aspectos duradouros” e “arranjos globais” da ordem mundial existente, o legalismo desta ordem é o que também molda suas ações; d) e apesar de constituírem um só bloco, BRICS e China possuem diferentes antagonismos e insatisfações, tanto entre si, quanto com a ordem mundial existente; e) assim, os BRICS e a China são muito mais diversificados política, econômica e culturalmente entre si do que com o Ocidente (BPC 2019).

Afinal, o que cada um dos BRICS almeja com o Bloco

O discurso dos BRICS é de contribuir para uma mudança de mentalidade, servindo de esperança futura para uma governança global, comércio internacional e cooperação para o desenvolvimento mais responsável e igualitário (Oxfam 2013). A mensagem é de ajuda,
sobretudo a outros mercados emergentes, não pela via excludente e conflitiva, mas pela cooperação, compartilhando prosperidade em âmbito global. Mas há também o desejo indireto da China de contrabalançar o jogo do poder e exercer influência, propagando a visão chinesa de mundo por meio do bloco, sobretudo um modelo chinês de desenvolvimento.

A China, desse modo, articula uma via de mão dupla na qual não só sustenta e apoia negócios que são de seu próprio proveito, como também contribui para o desenvolvimento mundial (Carta Maior 2015). Por outro lado, existe o esforço coletivo em sustentar o próprio papel de centralidade da China nos BRICS e legitimar a chamada “hegemonia interdependente” (BPC 2019). Algo que é consentido pelos demais BRICS. Afinal, hoje a China parece ser a única a ter condições de manter um crescimento econômico sustentado e, assim, ocupar espaço de liderança no grupo graças à relevância de suas credenciais: superávit comercial, Produto Interno Bruto e grande capacidade de investimento devido à sua poupança interna (Bloomberg 2014).

A própria Declaração de Sanya, de 2011, contém termos que demostram que a China está no controle e centralidade do bloco, não havendo maior unificação ou integração coletiva, a não ser pelas intensas e crescentes relações bilaterais de cada um dos países membros com a China (Financial Times apud GGN 2011). Há, sim, preocupação destes em evitar o desequilíbrio econômico-comercial em favor dos chineses, exportadores de produtos de alto valor agregado. Não é à toa que o Brasil é dos poucos países a terem superávit com a China. Assim, nem sempre interessa contestar essa centralidade ou acaba não havendo muito incentivo para tal, pois todos, de algum modo, acabam beneficiando-se da ascensão chinesa (BPC 2019). O que faz com que o BRICS mais pareça um “fórum dominado pela China”.

Mesmo o prestígio da Índia, quando comparado ao atual momento de desaceleração chinesa e crise dos demais BRICS, não tem conseguido frear a predominância dos interesses chineses, certamente pela proximidade destes com o Paquistão. Tamanha disputa intra-bloco tem feito com que os interesses da China também migrem para outros arranjos, como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB, em inglês), que apesar de ser um banco regional, tem alcançado cada vez mais projeção global.

Ainda assim, se comparado ao momento de formação do bloco, o papel da Índia tem tornado-se mais ativo, mormente pelas credenciais que a destacam (crescente inserção internacional, tendência de PIB maior que a China, estabilidade macroeconômica, e o fato de não ser tão dependente de matérias-primas externas, e representar boa parte da mão de obra qualificada em setores chaves do comércio mundial, como serviços e tecnologia) (O Globo 2016).

Quanto a Brasil, África do Sul e Rússia, se nos anos 2000 os mesmos desfrutavam de um período de maior visibilidade e protagonismo no bloco, beneficiados pelo crédito barato e boom das commodities, nos dias de hoje são bem menos atuantes, por demais ocupados com suas mazelas internas. Brasil e África do Sul são assolados por crises políticas e escândalos de corrupção, mas também por desafios socioeconômicos típicos de países em desenvolvimento.

A Rússia busca retomar seu prestígio global como superpotência, mas vive dependente das exportações de combustível fóssil e sob o efeito de sanções internacionais em razão das questões relativas à Crimeia e à Ucrânia. Todos os quatro, enfim, necessitam não só da desenvoltura da China e do acesso facilitado a uma das maiores reservas de poupança do mundo, mas também da respeitabilidade e dos ganhos econômicos e políticos conferidos pelo bloco (Bloomberg 2014).

Assim, resta à China administrar a visão simbólica de que o BRICS é uma plataforma construída em bases estritamente pragmáticas, no intuito de estabelecer consensos, minimizar eventuais diferenças e enfatizar as áreas onde é possível a cooperação (Wu Hailong apud Financial Times 2011). Isso faz com que o atual avanço da China em direção ao Ocidente, sobretudo de investimentos chineses no mundo em desenvolvimento, não represente ameaça, perigo ou motivo para alarmismo. A mensagem, via BRICS e NBD, é de cooperação e prosperidade compartilhada, e não de dominação dos mercados globais. Em contrapartida, é preciso estar atento ao alcance dos negócios da China, ou seja, que haja verificação constante acerca da imposição ou não de condicionalidades e se os ganhos são verdadeiramente mútuos.

É necessário verificar também se o financiamento chinês ocorre em termos transparentes e sustentáveis, direcionados à redução dos déficits de infraestrutura de regiões mais pobres e menos desenvolvidas. Cabe, ainda, analisar se a China objetiva tão somente a autossuficiência, desprovida de caráter predatório. Mas, mesmo no alto de seu status diferenciado no bloco e respondendo sozinha por 55% do PIB dos BRICS, a China não está imune a fatores de vulnerabilidade que, comumente, passam despercebidos. Assim, o maior anseio chinês é a redução da dependência estrangeira. Para tanto, o país aposta alto em inovação e capacitação tecnológica.

Há preocupação principalmente em inserir-se no sistema, mas também precaver-se, protegendo-se dos impactos da variação dos fluxos globais, garantindo a segurança de suas transações nas áreas econômica, financeira, militar e tecnológica. A partir de suas vulnerabilidades e da constatação de que não seria vantajoso substituir o sistema que lhe conferiu sucesso, é então possível descobrir “o que a China quer” com o Bloco: a) manutenção e ampliação constante dos canais de cooperação bi e multilateral; b) captação de recursos e garantia de acordos preferenciais, preservando não só a fidelização de mercados, mas também a presença chinesa no exterior; c) desejo de um sistema financeiro verdadeiramente global, menos centrado nos ditames do Ocidente; d) garantir a evolução da internacionalização do RMB (renminbi ou yuan), diminuindo a hegemonia do dólar como moeda de pagamento e de reserva, sobretudo em resposta à crise de 2008 e às oscilações do sistema monetário internacional (que costumam derrubar as moedas dos emergentes); e) inserir-se nas cadeias globais de valor, mas também tornar-se país centro das mesmas; f) preencher os espaços vazios dos mercados financeiros globais; g) apostar em diversificação e transformação dos investimentos, ampliando e aprofundando-os.

O chamado China Going Out, ou seja, a política chinesa voltada para fora, assume caráter mais defensivo do que ofensivo, no afã do país precaver-se e aumentar a resiliência de suas relações internacionais, sobretudo frente às inseguranças e turbulências do cenário global. Essa percepção decorre não só do fato de a China ainda estar aprendendo a inserir-se no mundo – e dentro da própria dinâmica da globalização – mas, também por ter sido um dos países mais atentos à internacionalização dos processos produtivos e aos impactos decorrentes dela, não só como meio de ampliar a competitividade de seus produtos, mas também de produzir em escala maior e mais eficiente (CEBC 2019).

Enfim, percebe-se que nos últimos anos houve uma curva de inflexão na política externa chinesa e, por isso, tem-se mostrado mais assertiva e instrumentalizada por iniciativas caras e ambiciosas, como Novo Bando de Desenvolvimento dos BRICS e a Inciativa Cinturão e Rota (BRI, em inglês) (primeiro por meio da negociação de parcerias preferenciais, a fim de contrabalançar uma eventual reação ao avanço chinês, para, em seguida, a China formalizar e acertar os trâmites institucionais de acordos de comércio e investimentos) (CEBC 2018). Assim, a crescente inserção global da China dá-se, sobretudo, por meio de inovação e experimentação, instrumentalizadas por plataformas que constituíram o BRICS, a BRI e o NBD, ou seja, por meio da criação de mecanismos nacionais e internacionais de apoio institucional ao investimento global chinês (CEBC 2018).

Em contrapartida, o momento atual é de transição, sendo preciso ainda conferir e constatar qual papel o BRICS assumirá daqui pra frente. É preciso observar se continuará como esperança de mudança e democratização da governança global, ou se isso não passará de uma ambição desmedida e, de fato, tenhamos mais do mesmo status quo (Bloomberg 2014, Diálogo Chino 2018).

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por Anders Noren

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