
Ao pensarmos na Segunda Guerra Mundial, dois teatros de conflito desenham-se em nossa imaginação quase automaticamente: a Europa e o Extremo Oriente, mais especificamente, a luta pelas ilhas do Japão. Mas existe uma região onde as batalhas foram tão sangrentas quanto na União Soviética e na Alemanha, e que mobilizou muito mais pessoas do que os badalados aliados anglo-americanos: a China.
A princípio, um leigo pode associar como principal obstáculo ao domínio japonês sobre a Ásia, os fuzileiros navais estadunidenses e seus porta-aviões. Entretanto, desde 1937 a China já resistia com todas as suas forças à dominação imperialista japonesa e via milhões de seus civis serem mortos. Para ter-se uma ideia da dimensão dos conflitos, na batalha de Shangai, um milhão de soldados estiveram em confronto, sendo esse quantitativo (do ponto de vista urbano) superado apenas pela batalha de Stalingrado (MAGNO, 2018).
A Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945) foi um conflito que se iniciou antes da Segunda Guerra Mundial e acabou por envolver-se diretamente nas disputas entre o Eixo e os Aliados. As pretensões japonesas no Extremo Oriente confundiam-se com a estratégia alemã de cercar a União Soviética com duas frentes. Ou seja, o conflito entre japoneses e chineses tanto se relaciona com a guerra mundial, quanto tem particularidades próprias.
Esta guerra não pode ser compreendida sem que observemos o século XIX e suas implicações para o capitalismo. A busca pela exploração de novas áreas comerciais sob a égide da industrialização fez com que diferentes nações entrassem em conflito por mão de obra, matérias-primas e mercados consumidores. Nesse contexto, asiáticos e africanos foram os que mais sofreram com o processo. Vítimas do método do neocolonialismo, essas populações precisaram encontrar caminhos para a libertação nacional em suas próprias forças.
No caso japonês, um elemento o difere dos vizinhos asiáticos: o processo de industrialização acelerado da era Meiji, que permitiu que de potencial vítima do imperialismo, o Japão resultasse um agente do mesmo. Sua projeção na região e a aliança com a Inglaterra fizeram com que vários tratados desvantajosos assinados com potências ocidentais fossem cancelados, abrindo espaço para seu desenvolvimento (MAGNO, 2018). Especificamente no caso da relação com a China, notava-se a declarada vontade da classe dominante japonesa de suplantar toda a ordem regional que colocava os chineses como principais atores.
Os habitantes do arquipélago japonês resistiram durante muito tempo a serem incorporados em um sistema que naturalmente os colocaria em segundo plano frente ao vizinho gigante. Seus contatos com o universo exterior foram muito limitados, e quando muito alcançavam a península coreana. Esse panorama foi modificado sensivelmente durante o século XIX, e principalmente após a Primeira Guerra Mundial, onde os japoneses empreenderam um esforço significativo de dominação do extremo-oriente (KISSINGER, 2011).
O caso chinês tomou caminho inverso. Assolada pela fragmentação política e sendo vista como oportunidade de exploração por vários países europeus, a China foi vítima de vários tratados que a prejudicaram seriamente, sendo assinados em sua esmagadora maioria, sob a ameaça militar, a “diplomacia do canhão”. Ou seja, enquanto o Japão tomava o caminho da industrialização e servia de ponta de lança do imperialismo na região, a China mergulhava em conflitos internos, rebeliões e caos social, em muitas situações com a participação direta dos países europeus e do Japão.
Obviamente, entre todas as intervenções militares feitas contra a China na primeira metade do século XX, a Segunda Guerra Sino-Japonesa foi a que levou mais destruição ao país. Relacionando-se com o contexto de crise do capitalismo após 1929, o conflito foi resultado, entre outras questões, de dois fatores principais: a diminuição do potencial de exploração do Japão sobre a região após o crash da Bolsa de Nova Iorque e o ganho de autonomia das tropas japonesas que ocupavam locais disputados com a China, o exército de Kwantung.
Assim, constituía-se uma espécie de Estado paralelo que tomava decisões independentes de Tóquio sobre a região, e que fizeram valer sua vontade na manutenção da exploração, mesmo que recorrendo à guerra. A região de fronteira já era extremamente tensa e possuía homens engajados em ambos os lados, sendo o início do conflito provocado pelas tropas japonesas em ataques esporádicos até a declaração de guerra e invasão do território chinês em 1937 (MAGNO, 2018).
Infelizmente, devido a questões como a barreira do idioma, ou mesmo certo etnocentrismo ocidental, temos raríssimos trabalhos sérios sobre um tema tão complexo. A valiosa exceção é a dissertação de mestrado de Bruno Magno, “Revolução nacional e guerra prolongada na China”, onde o autor faz uma discussão aprofundada sobre as táticas de guerra usadas pelos chineses e como esse modelo bélico acabou ajudando a moldar as feições da revolução nacional chinesa, servindo de exemplo para outros países da região, como o Vietnã. Este texto é tributário, e muito, de sua minuciosa pesquisa.
Na contramão da consagrada ideia de que os chineses utilizaram somente as táticas de guerrilha para o enfrentamento do Japão, Magno (2008) discrimina inúmeras situações onde forças e táticas convencionais foram utilizadas pelo exército chinês sob a liderança de Jiang Jieshi (Chiang Kai-shek). Embora se possa falar em táticas de guerrilha nas tropas ligadas ao Partido Comunista Chinês, sob a liderança de Mao Zedong, isso não significa dizer que a totalidade dos confrontos na região seguiu esta lógica.
Nas tropas ditas regulares, a estratégia adotada pelo Estado chinês assemelhava-se muito mais a um conflito de atrito, buscando grandes batalhas contra os japoneses, mas sempre evitando confrontos decisivos e cedendo algum território para estender as linhas de comunicação do inimigo e exaurir suas forças. Ou seja, a China não se absteve de utilizar uma estratégia defensiva e que tirava vantagens de elementos como: superioridade numérica e conhecimento do terreno.
Assim, ao mesmo tempo que resistia aos avanços japoneses e desgastava suas forças, denunciava internacionalmente as agressões tentando angariar apoio político, numa estratégia de aliar a guerra à diplomacia. Assim, o foco da atuação chinesa seria negar aos japoneses a possibilidade de usar sua superioridade técnica e econômica em toda plenitude. Os ensinamentos militares de Sun Tzu foram fundamentais para isso, onde a valorização do aspecto psicológico da guerra é nítida (KISSINGER, 2011).
Quando do início do conflito, a China possuía ciência de sua inferioridade militar em comparação aos japoneses, e para tanto baseava sua doutrina militar em evitar combates definitivos e atrair os inimigos para dentro do seu território. Assim, utilizava a visão japonesa de guerra rápida como isca para um conflito prolongado e desgastante, onde as cidades litorâneas não seriam tão cruciais para a resistência quanto o exército de Kwantung imaginava.
Essa falta de conhecimento japonês sobre a realidade chinesa foi fundamental para o sucesso da estratégia de Jiang Jieshi (MAGNO, 2018). A crença na superioridade inata e a ideia de que os chineses ainda estariam desunidos como fora sempre nos conflitos anteriores, deu ao exército de Kwantung a certeza de vitória, algo semelhante ao que ocorrera entre nazistas e soviéticos no teatro europeu: a certeza da vitória foi o primeiro passo para a derrota.
Após um primeiro momento em que as atenções dos invasores voltavam-se para o norte do território, o exército chinês conseguiu atrair as principais forças militares para um confronto em Shangai, onde sua pretensão era a abertura de uma nova frente de batalha para os japoneses, no que obteve sucesso. Após desembarques de tropas na casa das centenas de milhares de soldados, o Japão tomou a cidade, mas o que aparentemente poderia ser visto como uma grande vitória, tornou-se um problema a médio prazo.
As tropas japonesas estavam cada vez mais envolvidas no conflito, a perspectiva de uma vitória rápida desaparecia no horizonte, e a distração com conflitos mais ao sul, deixou as comunicações entre China e URSS ainda abertas. De quebra, os planos japoneses para a invasão do território soviético precisaram ser paralisados. O próximo passo era atrair os invasores, cada vez mais, para o interior do continente (MAGNO, 2018).
A partir de 1938, ou seja, às vésperas do início da Segunda Guerra Mundial, o conflito passa a gravitar em torno do interior do território chinês, levando a um desgaste muito mais profundo das tropas japonesas. A partir das experiências da batalha de Shangai, um diálogo modesto, mas ainda assim produtivo, ocorreu entre as tropas de Jiang Jieshi e Mao Zedong. As trocas de experiência proporcionaram novas interpretações para o exército regular chinês, que passou a prezar por uma retirada de forças mais ordenada e levando efetivo custo aos soldados japoneses (MAGNO, 2018).

A partir desse momento, a ausência do apoio naval tornava cada vez problemática a tomada dos territórios chineses, o que servia de incentivo para elevar a moral das tropas. Assim, garantia-se a cada mês que as forças defensivas não capitulassem e que o governo central continuasse a existir. O tempo passava e os auxílios, aéreo da URSS, terrestre da Inglaterra e financeiro dos EUA, demonstravam o quanto aquelas batalhas eram decisivas para o futuro da guerra após 1941, o que colocava os chineses numa posição cada vez mais importante para o mundo como um todo, e não mais somente para a Ásia.
Se a China resistia, o Japão não poderia concentrar o grosso de suas forças em nenhum outro local. Este impasse permaneceu até meados do ano de 1944. Em maio, então, o Japão prepara uma ofensiva de grande escala para impedir a continuidade do apoio anglo-americano aos chineses. Apesar da vitória numérica, as tropas chinesas continuavam a existir, e o governo não capitulara frente aos japoneses. A tão sonhada rápida e final vitória japonesa jamais chegaria.
Referências
MAGNO, Bruno. Revolução nacional e guerra prolongada na China: análise estratégica e operacional da Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945). Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Ciências Econômicas da UFGRS. Porto Alegre, 2018.
KISSINGER, Henry. Sobre a China. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
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