
É bastante característico que uma sociedade em meio a um período de transição, de crise, acabe por instigar a arte em geral e apresente ao público uma série de trabalhos que venham refletir sobre o estado atual das coisas. A Coreia do Sul, após décadas de desenvolvimento econômico, que exigiu um altíssimo esforço e sacrifício da sua população, parece viver um momento de repensar os seus valores sociais.
Direcionada apenas ao enriquecimento do país, muitas questões humanas acabaram de fora da equação, resultando em problemas sérios como um dos mais altos índices de suicídio no mundo, altas taxas de alcoolismo, um sistema de bem-estar social ainda deficiente, uma rigidez social que parece mais retirar energia dos indivíduos do que aprimorá-los e, principalmente, uma grande dificuldade, tanto vista da perspectiva de Estado, quanto de um ponto de vista individual dos cidadãos – o não saber lidar emocionalmente com épocas de grandes provações. Este é o tema principal que serve de ponto de partida para o thriller “Rastros de um Sequestro”, do diretor Jang Hang Jun, lançado em novembro de 2017.

O enredo conta a história de um jovem de 21 anos Jin Seok (Kang Ha Neul), que se muda com o pai (Moon Sung Keun), a mãe (Na Young Hee) e o irmão mais velho, Yoo Seok (Kim Mu Yeol) para uma casa nova. Aparentemente temos o clássico quadro da família amorosa, feliz e perfeita. Contudo, uma noite, Yoo Seok é sequestrado, permanecendo desaparecido por alguns dias, sem a polícia conseguir encontrar alguma pista de seu paradeiro.
Ele retorna após um mês, apresentando um comportamento diferente, em grande parte, suspeito e violento. Este mistério e tantos outros, como um quarto que permanece trancado e cuja entrada é proibida, começam a intrigar o irmão mais novo, claramente, uma figura mais frágil que Yoo Seok.
Com o desencadeamento dos fatos ocorridos na trama vai-se descobrindo que, na realidade, está presenciando-se a tragédia de duas famílias, vinculadas pelo destino através de um acidente de carro fatal e das consequências brutais sofridas pela sociedade sul-coreana, durante a crise asiática de 1997. Esta última provocou um alto número de desempregados e, consequentemente, por exemplo, um alto número de suicídios e outras atitudes impulsivas de cidadãos claramente desesperados. Tudo isto está relacionado aos acontecimentos pelos quais passam os personagens, que contam com atuações magistrais, em especial, dos irmãos, protagonistas desta estória.

A fotografia utiliza-se de alto contraste e a presença bastante intensificada de sombras, que dão a sensação de suspense e acentuam o caráter ameaçador do desconhecido. Ela auxilia no clima de tensão de Jin Seok, ao descobrir que aqueles que deveriam amá-lo, na realidade, seriam seus piores inimigos, em razão de terríveis atos cometidos no passado pelo jovem, parte de um plano horrendo, o qual ele é vítima e não o principal articulador. Trata-se de uma verdadeira tragédia grega, em que os personagens nada podem fazer para escapar de tal destino, ou melhor, da estrutura social, econômica e cultural caótica e rígida em que estão inseridos.
Tal situação é bastante parecida como as que já existem em produções consagradas, a exemplo de “Old Boy”, de Park Chan Wook (2005), “Eu vi o Diabo”, de Kim Jee Woon (2010), Mother de Bong Joon Ho (2010) e “Pièta” de Kim Ki Duk (2013), já descritos na resenha “A tragédia grega e os dogmas cristãos”. Estas e outras obras possuem uma espécie de cataclismo, algo muito recorrente nos enredos criados pelos diretores sul-coreanos, fruto de um contexto que quase sempre termina em um fim trágico. Esta e outras características como o gosto pelo alto número de reviravoltas na trama, meio que acabam dando um tom meio “mais do mesmo” para “Rastros de um Sequestro”, que deixa de aprofundar alguns pontos, de explorar mais algumas questões e dar uma dramaticidade mais complexa à narrativa, para a focar a construção da estória em torno do sentimento de vingança de Yoo Seok.
Este por sinal, torna-se apenas um fantoche de toda a situação, pois acaba infligido culpa a um inocente e vítima do destino/do contexto sócio, econômico e cultural como ele, o irmão Jin Seok. Ainda que apresente alguns elementos já bastante aplicados no cinema sul-coreano, “Rastros de um Sequestro” ainda entretém, provoca reflexões, e não deseja poupar o seu espectador de intensa crítica a falta de humanidade do sistema que rege as relações humanas da sociedade sul-coreana atual. Uma equação que o cinema da Coreia parece ter dominado de forma brilhante.
Fonte: Texto originalmente publicado no site do Koreapost.
Link direto: https://www.koreapost.com.br/colunas/cine-coreia/o-cataclismo-familiar-de-rastros-de-um-sequestro/
Título: “Rastros de um sequestro”
Título em coreano: 기억의 밤 (Gieokui Bam)
País: Coreia do Sul
Direção: Jang Hang Jun
Roteirista: Jang Hang Jun
Elenco: Na Young Hee, Moon Sung Geun, Kim Moo Yul, Kang Ha Neul
Duração: 1h48min
Lançamento: 21 de fevereiro de 2017
Idioma: coreano
Legendas: inglês, português
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