
O sangrento e doloroso processo de divisão da Índia após a sua independência, que resultou na criação do Paquistão e separou famílias, amigos e amantes, é uma fonte inesgotável de roteiros cinematográficos indianos. Em “Chhalia“ (Malandro), de 1960, um filme clássico de Bollywood encenado e produzido pelo astro Raj Kapoor (1924- 1988), e dirigido por Manmohan Desai (1937- 1994), o drama indiano é inspirado em uma novela russa de 1848: “Noites Brancas”, de Fiódor Dostoiévski.
Os filmes de Manmohan Desai são no estilo masala (ou seja, que mistura vários gêneros, como são em geral os filmes de Bollywood), e focam em histórias de famílias que se separam e reúnem-se. Durante os anos 50 e 60, a Índia e a então União Soviética tinham uma relação muito estreita, inclusive culturalmente. Os filmes indianos, especialmente os de Raj Kapoor, faziam muito sucesso entre os soviéticos.
Na novela russa, o cenário é a majestosa e fantasmagórica São Petersburgo, na beira do Rio Nievá, durante o verão das noites brancas, quando o sol praticamente não se põe. O sonho do amor de um homem por uma moça dura apenas quatro dias. Não foi apenas o cinema indiano que bebeu na fonte de “Noites Brancas”, Luchino Visconti também filmou a novela de Dostoiévski com seu olhar neorealista, três anos antes de “Chhalia”.
Na trama indiana, o sonho também acaba em frustração, mas o cenário é bem mais conturbado do que as calmas águas dos afluentes do Nievá na cidade construída por Pedro, o Grande. As primeiras cenas do filme indiano são em Lahore, cidade que foi um importante polo cultural da Índia pré-partição, hoje situada no Paquistão. Kewal e Shanti, recém-casados, têm a sua noite de núpcias interrompida devido ao caos que tomou conta da cidade, com os sangrentos conflitos religiosos entre muçulmanos e hindus e também sikhs. Era véspera da Partição, quando milhões de pessoas foram obrigadas a fugir de suas casas.
Hindus e sikhs que moraram no futuro Paquistão dirigiam-se para a Índia de trem, a cavalo, em carros de boi, ou mesmo a pé. E muçulmanos da Índia fugiam para o Paquistão com o que conseguiam levar nas malas. Foi a maior migração forçada da história: 10 milhões de deslocados. E pior ainda, entre 1 a 2 milhões de mortos. Foi um momento da história em que “o sangue é mais barato do que água”, como lamenta a personagem Shanti no filme.
Na fuga para a Índia, Shanti é deixada para trás por Kewal. Cinco anos depois, ela consegue ir para Delhi, a capital indiana, e procura o marido, com um filho no colo. Mas Kewal e sua família a rejeitam, porque o filho tem o nome muçulmano, o que faz com que desconfiem da paternidade da criança, suspeitando não ser do hindu. Mas a verdade é que Anwar, o bondoso homem muçulmano que ajudou Shanti, o fez porque ele próprio tinha o seu trauma da Partição: ao salvar a hindu Shanti, ele pensava na sua irmã muçulmana que ele havia perdido no processo de divisão da Índia.
Assim, o menino é de fato filho de Kewal e Shanti não havia envolvido-se com o muçulmano. Então, surge pela primeira vez no filme uma analogia ao épico “Ramaiana”, no qual Sita, mulher do príncipe Rama, também é rejeitada por ele, após ter sido raptada pelo demônio Ravana. Voltaremos ao Ramaiana no final. Chhalia é o personagem de Raj Kapoor, um malandro bonitão, pobre e boa praça que canta (sim, é um filme musical): “Eu saúdo a todos, muçulmanos, hindus, sikhs e cristãos. Eu sou o príncipe dos pobres, não ligo para castas ou para religião. Nem sei à qual casta ou religião pertenço”. A mensagem da Índia secularista e socialista do então primeiro-ministro Jawaharlal Nehru está sempre presente nos filmes de Kapoor.
Quando Chhalia vê Shanti chorando na rua, observa que ela deixou cair no chão uma carta. Ele a lê: era uma carta de despedida da vida. Chhalia a convida para o seu barraco de madeira. E o inevitável acontece: Chhalia apaixona-se por Shanti. “Eu escorreguei no amor sem ter bebido”, canta ele na chuva. A atriz principal que faz o papel de Shanti é um ícone na Índia: Nutam Samarth (1936- 1991), filha de um diretor e de uma atriz, ela é tia da estrela bollywoodiana Kajol, que brilhou principalmente nos anos 90 ao lado do mega astro Shah Rukh Khan. Tudo em família como costuma ser na Índia. Nutam Samarth começou a atuar com apenas 14 anos de idade e acabou transformando-se em uma referência para outras gerações de atrizes que se seguiram após ela.
Como nos filmes dirigidos por Desai, as famílias acabam reunindo-se e Chhalia é responsável por esse final glorioso. Ele mesmo amarra o reencontro de Shanti e Kewan, durante o grande festival do Dussera. Quando o demônio Ravana, de dez cabeças (do épico Ramaiana) é queimado neste festival de rua, como manda a tradição, Kewan percebe que suas dúvidas sobre Shanti foram dissipadas, uma referência ao destino de Sita, que teve que se submeter ao teste do fogo para provar a sua pureza.
No filme, Shanti é recebida de volta. A Índia dos anos 60 fez uma releitura do épico milenar. No Ramaiana, Sita não é aceita de volta ao coração de sua família, nem mesmo após ter saído ilesa da prova de fogo. Se fosse refilmado na Bollywood do século 21, com várias personagens femininas cada vez mais fortes e independentes, a história de Chhalia e Shanti provavelmente seria outra e a mulher provavelmente não correria atrás do marido o filme inteiro.
Fonte: Texto originalmente publicado no Beco da Índia.
Link direto: http://becodaindia.com/quando-bollywood-se-inspira-em-dostoievski/
Florência Costa
Jornalista freelancer, especializada em cobertura internacional e política, foi correspondente na Rússia pelo Jornal do Brasil e serviço brasileiro da rádio BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia para ser correspondente do jornal O Globo É autora do livro “Os Indianos”. E editora do site Beco da Índia
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