Isolamento social no Japão: representações no animê NHK ni Yōkoso!

Personagem Satō, vivendo isolado dos familiares e amigos no apartamento alugado. Crédito: https://miro.medium.com/max/2560/0*wXL-MQRqj4Wo_9YD.jpg

Será que o animê pode representar algumas vivências de jovens e adultos enquanto influenciadas por processos históricos e culturais? Essa é uma das questões que nortearam a conferência “O fenômeno hikikomori: representações na cultura japonesa” apresentada em 2020 na mesa redonda “Cultura pop japonesa e a circulação da ciência” organizada pelo Prof. Dr. Luís Piassi e direcionada a estudantes da disciplina Divulgação Científica na perspectiva dos Estudos Culturais da Universidade de São Paulo (USP).

Considera-se que algumas animações japonesas podem interpretar e ressignificar alguns fenômenos sociais de forma a sensibilizar tanto o interlocutor do ocidente, quanto o do oriente, devido a linguagem dessas animações. Tal inciativa pode ser familiar e interessante ao abordar esses fenômenos a partir das vivências dos personagens de animações japonesas, tornando-se experiências verossímeis ao cotidiano de ambas as culturas.

Como exemplo dessa aproximação de fenômenos sociais ao cotidiano dos interlocutores, na conferência, discutimos brevemente sobre o fenômeno hikikomori representado no animê NHK ni Yōkoso! (NHK にようこそ) dirigido por Yūsuke Yamamoto, escrito por Satoru Nishizono e lançado em 2006 no Japão com vinte e seis episódios. Essa produção também foi baseada na light novel homônima produzida por Tatsuhiko Takimoto e ilustrada por Yoshitoshi Abe em 2002.

O fenômeno hikikomori 

O fenômeno de isolamento social no Japão, conhecido pelo termo hikikomori, tem sido investigado cientificamente por especialistas da área de ciências sociais, psicologia e psiquiatria em universidades de alguns países tanto orientais, como também ocidentais. O psiquiatra e psicólogo japonês Tamaki Saitō é reconhecido por ter popularizado o termo hikikomori, quando publicou em 1998 o livro “Hikikomori: adolescence without end”.

Ele observa que essa condição envolve majoritariamente jovens e adultos do sexo masculino que se tornam reclusos em suas próprias casas, por pelo menos seis meses, quando não apresentam transtornos psiquiátricos que favorecem esse isolamento. Os indivíduos que também estão nessa condição hikikomori  também são reconhecidos por dormirem durante o dia após terem assistido TV e jogado videogame por longas horas, limitando a interação com os próprios familiares com quem moram.

O Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar do Japão compreende como critérios para identificar a condição hikikomori o fato de jovens ou adultos apresentarem, por pelo menos seis meses consecutivos, os seguintes comportamentos:  reclusão dentro da moradia; falta de interação com os familiares, pessoas externas e ausência de frequência na escola ou trabalho. Além de estabelecer os critérios para classificar essa condição de isolamento social, o Ministério também coordenou uma pesquisa realizada em 2003 que considera a condição hikikomori como um problema social que não tem relação com diagnóstico de transtorno mental:

O grupo de pesquisa distribuiu um questionário entre centros de saúde em prefeituras e comunidades no Japão em 2003 […]. Esta investigação identificou 14. 069 casos. A idade média foi de 26,7 anos e 32% deles tinham mais de 25 anos de idade. Cerca de 50% estavam sofrendo dessa condição hikikomori por mais de cinco anos enquanto  23% durante 10 ou mais anos. Em relação ao gênero, 76,4% eram homens. Outros 41% eram pessoas que dormiam durante o dia e ficavam acordadas durante à noite […]” (OGINO, 2004, p.122, minha tradução).

Capa do animê Welcome to the N.H.K. em DVD. Versão em inglês lançada em 2007. Crédito: https://cdn.archonia.com/images/1-28449003-1-1-original1/welcome-to-the-nhk-complete-collection-dvd-uk.jpg

Alguns pesquisadores ponderam que, embora sejam majoritariamente os homens que são identificados nessa condição de isolamento social, se torna necessário dedicar mais atenção às mulheres japonesas que podem não estar sendo identificadas com esta condição, devido às expectativas sociais que convencionam suas vivências como naturalmente voltadas ao âmbito doméstico. Enquanto para os homens se torna mais visível esse isolamento quando não estão cumprindo as expectativas sociais de autossuficiência financeira no âmbito público.

No que diz respeito ao contexto que pode favorecer esse fenômeno, os sociólogos acreditam que alguns fatores sociais como a crise econômica do Japão e a precarização das relações de trabalho têm corroborado para o aumento do número de casos. A Bolha Econômica no Japão, durante os anos 90, é um dos fatores apontados pelos especialistas como responsáveis pela dificuldade que os jovens japoneses têm em ingressar em algum trabalho regular. Esse período também é reconhecido pela diminuição da oportunidade de emprego para os jovens japoneses, provocando a redução do número de jovens formados no ensino médio capazes de conseguir um emprego estável, logo após concluir o ensino médio.

Atualmente os japoneses que vivenciam esse isolamento social podem contar com o trabalho de aconselhamento por mulheres em centros de reabilitação. Estas, geralmente, são jovens estudantes de psicologia, artes e outras áreas das ciências humanas. Essas estudantes buscam incentivá-los para realizarem atividades fora de casa, frequentar cinemas e cafeterias, no intuito de estabelecer uma relação de proximidade e confiança que possa tornar a pessoa na condição hikikomori mais segura e autônoma para o convívio social em diferentes ambientes públicos. Ainda, jovens e adultos que sofrem com esta questão podem concluir o ensino médio, participando de aulas ofertadas em alguns desses centros de reabilitação, embora esse tipo de diploma geralmente só permita que consigam trabalhar em atividades manuais demandadas por fábricas, restaurantes e lojas de conveniência.

Crédito: Shifter/Reprodução.

O isolamento social na cultura pop japonesa

O fato de o fenômeno hikikomori parecer ser algo tão particular da cultura japonesa ainda pode gerar as seguintes questões: como os brasileiros podem identificar-se com as representações de histórias de vida de jovens e adultos na condição de hikikomori em narrativas de animação japonesa? O que o animê tem apresentado sobre algumas questões que impactam a inserção dos indivíduos com este problema na sociedade japonesa tanto na vida familiar, quanto na escola e no mercado de trabalho?

Essa possibilidade de identificação pode ser compreendida a partir das características da linguagem e narrativa dessa animação japonesa, que apresenta potencial de tornar íntimo ao interlocutor algumas reflexões sobre fenômenos da sociedade que são geralmente encarados, no senso comum, como pertinentes apenas para compreensão de especialistas. Como exemplo, o animê NHK ni Yōkoso! aborda as repercussões sociais do isolamento de jovens e adultos, homens, que estão vivenciando essa condição de hikikomori.

Nesse animê, o protagonista dessas vivências chama-se Tatsuhiro Satō. Ele é um jovem que não teve sucesso ao buscar ingressar na faculdade e no mercado de trabalho, optando por viver isolado dos familiares e amigos, e morar num pequeno apartamento alugado às custas de seus pais. Esse jovem começa a ter o interesse em retomar o convívio social quando recebe a visita de uma jovem voluntária chamada Nakahara Misaki. Ela, por sua vez, busca ajudar pessoas em isolamento social, incentivando-as a terem uma rotina fora de casa, retomarem os estudos na faculdade e ingressarem no mercado de trabalho. Durante esse processo, o animê mostra como o sentimento de timidez e frustração do personagem em falhar nos exames acadêmicos e profissionais, diante do mercado de trabalho cada vez mais competitivo, torna-se uma questão que o impede de construir relações de confiança com o outro.

Essas emoções também foram identificadas por pesquisadores que analisaram alguns relatos de jovens e adultos que vivenciam essa condição de isolamento social. Entende-se que tais emoções podem ser geradas diante da não realização de expectativas sociais que tanto valorizam a autossuficiência financeira dos homens, enquanto trabalhadores assalariados de colarinho branco, e os vínculos constituídos em instituições acadêmicas e profissionais que podem favorecer o êxito na vida pessoal e profissional.

Também se observa que alguns valores e costumes culturais da sociedade japonesa propiciam esse fenômeno, como a timidez e a introspecção. Acredita-se que a narrativa do animê NHK ni Yōkoso! tem muito potencial para proporcionar discussões sobre a representação do fenômeno de isolamento social hikikomori, quando esse é situado em vivências cotidianas que são passíveis de serem conhecidas e experimentadas no ensino formal, pois envolve as dificuldades de lidar com as diferenças no ambiente escolar, bullying, baixo desempenho acadêmico, decepções amorosas e expectativas sociais para inserção no mercado de trabalho.

Clique Aqui! Para mais informações sobre o animê NHK ni Yōkoso! 

Fonte: texto originalmente publicado na plataforma Minuto Otaku.
Link direto: https://minutootaku.com/noticias/cultura-asiatica/o-fenomeno-hikikomori-representacoes-na-cultura-pop-japonesa/

Bruna Navarone Santos
Bacharel em Ciências Sociais (UERJ)
Mestranda em Ensino em Biociências e Saúde (PGEBS/IOC/Fiocruz)

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